Jornalista. No Brasil, trabalhou no Jornal do Brasil, O Globo, Abril editora. Em Portugal, na Vida Mundial, entre outras publicações. Foi um dos fundadores do portal Esquerda.net em 2006.

Propaganda, desinformação e mentiras: a guerra contra Gaza e a opinião pública mundial

A desinformação sempre foi uma arma de guerra, mas ganhou novos contornos no século XXI. Uma população informada e cética é vista como ameaça e as blitzes de propaganda tentam criar falsos consensos nas sociedades. Dissecamos três casos de desinformação que desumanizam os palestinianos e legitimam a ofensiva israelita.

Ensaio
23 Novembro 2023

A desinformação é uma arma de guerra. Não é novidade para ninguém nem é característica exclusiva do século XXI. Numa guerra, as forças beligerantes procuram sempre atribuir enormes baixas ao inimigo enquanto minimizam as suas. Esforçam-se por passar a ideia de a vitória estar ao virar da esquina ao mesmo tempo que o inimigo só acumula desastres. Demonizam o inimigo de todas as formas possíveis, desumanizando-o, com a sua propaganda.

Não deixa, no entanto, de surpreender o volume e a rapidez com que informações distorcidas, manipuladas ou tiradas de contexto — ou mesmo puras mentiras — chegam ao público. São acompanhadas quase sempre por discursos de ódio e não poucas vezes são replicadas sem confirmação pela comunicação social. Um documento recente das Nações Unidas define a desinformação como informação imprecisa, com a intenção de enganar as pessoas e de causar sérios danos. A mentira mais eficaz é aquela que tem um pouco de verdade.

A mais recente guerra do Estado de Israel contra os palestinianos de Gaza e dos restantes territórios ocupados é um estudo de caso de como a propaganda de guerra está a ser usada para disputar a opinião pública mundial. E a desinformação desempenha um papel essencial: a disputa tem sido feroz nas redes sociais e a comunicação social também tem desempenhado (mal) o seu papel. 

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui. 

Repete-se exaustivamente que Israel está a lutar pela sobrevivência — uma das narrativas mais falsamente usadas pelo Estado israelita desde a sua fundação, em 1948 — e que qualquer crítica ao sionismo genocida não é nada mais nada menos que antissemitismo, o que é totalmente falso, como explica o historiador israelita Haim Bresheeth-Zabner em An Army Like No Other. Até os judeus que se opõem às políticas coloniais de Israel são encarados como inimigos do Estado judaico. A propaganda serve para legitimar estas narrativas enquanto o número de palestinianos mortos, a grande maioria civis, não pára de aumentar.

Os princípios usados na propaganda de guerra são transversais a todos os conflitos. Podem, no entanto, ter mais ou menos força nas respectivas narrativas consoante cada momento, os meios tecnológicos disponíveis e os interesses em causa. Como explica a historiadora belga Anne Morelli, os princípios são: 

  • Nunca quisemos esta guerra, o outro lado é que nos forçou a isso, a responsabilidade recai sobre os seus ombros; 
  • O inimigo (normalmente o seu líder) personifica o diabo na terra, quando não o é todo um povo; 
  • Defendemos uma causa nobre e não interesses específicos; 
  • O inimigo é responsável por inúmeras atrocidades e crimes, demonstrando a sua perfídia; 
  • O inimigo usa armas não autorizadas; 
  • O inimigo sofre bastantes mais perdas que nós, está à beira do colapso e da derrota; 
  • Há um consenso na sociedade em torno da justeza da guerra e a nossa causa é sagrada, é a defesa dos pilares da nossa civilização e regime político; 
  • E, por fim, os que põem em causa a nossa narrativa são traidores, são uma quinta coluna do inimigo que devem ser desmascarados, silenciados e reprimidos.

Com o advento dos canais noticiosos 24 horas por dia e das redes sociais, somos constantemente bombardeados com informação e desinformação, criando uma (muito) limitada e imediatista representação da realidade. Quando se trata de uma guerra, na qual atores e interesses poderosos se digladiam, a conquista da opinião pública é essencial. “A experiência dos nossos tempos mostra que aqueles príncipes que fizeram grandes coisas não tiveram em conta a boa fé e conseguiram, com astúcia, confundir os cérebros dos homens”, escreveu Nicolau Maquiavel, pai do realismo político, no século XVI.

Qualquer intervenção militar exige, por natureza, o consentimento (ou passividade) da população e, portanto, é necessário convencê-la da sua justiça e moralidade. E quando não há consenso nem passividade, mas protestos, então aí passa-se ao ataque: ou reprime-se com as forças de segurança ou vilipendia-se os manifestantes — como tem acontecido um pouco por todo o mundo com as manifestações em defesa dos palestinianos ao serem acusadas de antissemitismo. A maior ameaça é uma população informada e cética que se mobiliza em oposição.

Joe Biden põe em dúvida os números do massacre

O ritual repetia-se todos os dias de forma macabra. Ao início da tarde, o ministro da Saúde de Gaza anunciava o número de palestinianos mortos, muitos deles civis, causados por bombardeamentos israelitas. As atualizações eram sempre na ordem das centenas. Depressa a informação fluía pela imprensa internacional, demonstrando a brutalidade indiscriminada dos ataques israelitas. 

Como veremos, a contagem do Ministério da Saúde de Gaza baseava-se nas certidões de óbito dos hospitais e centros de saúde de Gaza e tinha um alto padrão de rigor que não foi possível manter. A causa disto foi o encerramento de muitos hospitais do Norte de Gaza devido à falta de eletricidade, de combustível para os geradores, de água potável, de medicamentos e material cirúrgico. 

Além disso, a falta de combustível também provocou dificuldades na recolha dos corpos das vítimas dos bombardeamentos aéreos e do fogo de artilharia israelita.

A divulgação das estatísticas de mortes palestinianas passou a ser em parte estimada. No dia 22 de novembro, as autoridades de Gaza afirmavam que as vítimas mortais palestinianas eram mais de 14 100, das quais 5 800 crianças e 3 900 mulheres. Os feridos são mais de 30 mil e há 6 mil desaparecidos, a maioria dos quais deve estar morta debaixo dos escombros das suas casas e prédios demolidos pelos bombardeamentos.

A “guerra aos hospitais” veio mostrar o objetivo final da extrema-direita sionista que ocupa o governo em Tel Aviv: provocar uma nova Nakba, aterrorizar a população palestiniana para que abandone as suas terras. É a limpeza étnica.

Esta rotina de se anunciar a cifra acumulada de morte tem sido essencial para se fazer um acompanhamento preciso da guerra desencadeada por Israel. Fazendo as contas, as mortes palestinianas já são 11,75 vezes superiores às israelitas, que as autoridades de Tel Aviv, depois de anunciarem 1 400, estimam agora em 1 200. Assinale-se ainda 66 soldados israelitas mortos na invasão terrestre a Gaza.

Um outro número impressionante é o dos deslocados: cerca de um milhão e meio de pessoas da Faixa de Gaza (60% da sua população) foram forçadas a abandonar as suas casas, quer por estas terem sido destruídas pelos brutais bombardeamentos do exército de Israel, quer para procurar um lugar mais seguro ao abrigo das bombas.

A CNN fez vários levantamentos que traduzem em números e gráficos a brutalidade da ofensiva israelita. Por exemplo, o número de crianças mortas até agora em Gaza já supera em quatro vezes a cifra de crianças mortas em conflitos armados, em todo o mundo, nos últimos quatro anos. Outra comparação significativa faz-se com a guerra da Ucrânia: até 8 de novembro deste ano, a invasão russa causou a morte de 477 crianças em 2022 e de 83 em 2023. 

Além das imagens que vemos de uma Gaza destruída e de hospitais em colapso, estes números são o indicador mais fiável das consequências humanas da ofensiva israelita. E, portanto, na lógica dos aliados do Estado de Israel, é necessário descredibilizá-los. Foi o que o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, fez ao mostrar desconfiança pública sobre as estatísticas vindas de Gaza. “Não tenho a noção de que os palestinianos estejam a dizer a verdade em relação a quantas pessoas morreram. Estou certo de que morreram inocentes, é o preço das guerras… Mas não tenho confiança nos números que os palestinianos usam”, disse Biden a 25 de outubro.

O presidente dos Estados Unidos não disse em que números acredita, até porque o governo de Israel não divulga as estatísticas das mortes que a sua ofensiva militar provoca, apenas as baixas dos seus militares (66 na presente ofensiva contra Gaza, segundo as notícias de 20 de novembro). Mas a desconfiança lançada sobre as estatísticas das autoridades de Gaza permite desacreditar os números impressionantes de mortos, ou, pelo menos, deixar a dúvida no ar. 

Não é incomum o Estado de Israel, que diz ter o “exército mais moral do mundo”, avisar o alvo poucos minutos antes de o bombardear. 

Quando ouviu os comentários de Biden, o ministro da Saúde de Gaza, Medhat Abbas, disse ter ficado tão incomodado que publicou uma lista de 212 páginas com o nome das vítimas palestinianas em Gaza, incluindo o nome, a idade, o sexo e o número do registo de identidade. A lista continha, naquela altura, quase 7000 nomes.

O fact check do Washington Post sobre a credibilidade dos números divulgados pelo Ministério de Saúde de Gaza mostrou que são de confiança. A notícia citou o Escritório para Assuntos Humanitários da ONU (OCHA, sigla em inglês) dizendo que os dados oficiais de Gaza “são de alta precisão”. 

Lembrando a Guerra de Gaza de 2014, o Washington Post cita as estatísticas de mortes daquele conflito, segundo diferentes fontes. As diferenças não são significativas: o Ministério da Saúde de Gaza registou 2 310 mortes; a OCHA 2 251; e o Ministério dos Negócios Estrangeiros de Israel, 2 125.

No final do fact check, o Washington Post conclui que, ao rejeitar como não credíveis os números das autoridades de Gaza, a opinião de Biden demonstra uma notável desinformação da História e de acontecimentos anteriores. 

“Propaganda blitz”

Há uma expressão que se enquadra que nem uma luva nas guerras pela opinião pública dos dias de hoje: a blitz de propaganda. “Uma propaganda blitz é muitas vezes lançada com base em novas provas alegadamente dramáticas que indicam que um inimigo do sistema deve ser visto como algo desprezível e ser ativamente visado. O tema básico: isto muda tudo”, escreveram David Edwards e David Cromwell no livro Propaganda Blitz — How the Corporate Media Distort Reality

É imperativo cativar constantemente o interesse dos leitores e espectadores para manter elevado o apoio militarista, e a constante novidade (novos supostos crimes e atrocidades, movimentos no campo de batalha, etc) é essencial. O choque moral, a indignação, a raiva e a revolta são as emoções pretendidas. Mesmo quando as informações são erradas, os “propagandistas estão bem cientes de que a atenção dos meios de comunicação social passará rapidamente para as alegações de novas provas dramáticas, pelo que a durabilidade das alegações não é uma preocupação fundamental”, escreveram Edwards e Cromwell. 

A exibição da brutalidade do Estado de Israel contra os palestinianos está a fazê-lo perder a opinião pública mundial.

A novidade, usando imagens televisivas de violência espectacular (viciando e insensibilizando o espectador), é o motor deste género de propaganda que tenta impor o emocional sobre o racional, simplificando os acontecimentos numa dicotomia bom/mau. Só existe aquele momento, não existe história nem contexto, as posições e discussões assumem uma vertente totalitária: ou estás connosco ou contra nós, não há meios termos. E o direito internacional humanitário só existe contra o outro lado, é esgrimido como se fosse uma arma que apenas se aplica a um dos lados beligerantes. 

Daí que as características das propagandas blitz, explicam Edwards e Cromwell, sejam as seguintes:

  • São baseadas em novas e dramáticas alegações que justificam ações militares presentes ou futuras, demonizando e desumanizando o inimigo.
  • São comunicadas com grande intensidade emocional e indignação moral, fazendo com que os leitores/espectadores sobreponham a emoção à racionalidade.
  • São aparentemente apoiadas por um consenso informado de recorrentes académicos e especialistas nos meios de comunicação social. Os constantes debates e comentários televisivos, mais de combate político do que de caráter explicativo e informativo, com grandes soundbites, são a forma. 
  • São reforçadas por condenações e acusações contra qualquer pessoa que se atreva a pôr em causa esse suposto consenso. As acusações mais comuns são de traição, aliados do terrorismo, de não condenarem certas ações, criando assim uma imagem de descredibilização, marginalizando. 
  • São caracterizadas por dissonância moral tragicómica, usando falsas equivalências ou recusando equivalências individualizando situações em que os mesmos princípios se deveriam aplicar. 

As propaganda blitzes tornam-se tão mais eficazes consoante a fragilidade do jornalismo a nível internacional e nacional. Ou seja, a crise do jornalismo é um factor essencial para o sucesso das agências de relações públicas ou de órgãos estatais na promoção da propaganda de guerra. 

O número (muito) diminuto de correspondentes nos locais dos acontecimentos, obrigando as redações a dependerem das agências noticiosas internacionais (historicamente divididas por áreas de influência geopolíticas), limitando a pluralidade informativa sobre determinado acontecimento. A crescente concentração de propriedade dos órgãos de comunicação social, a que se acrescenta o grau de intromissão dos conselhos de administração nas políticas editoriais. Os baixos salários, os longos turnos e a precariedade nas redações diminuem significativamente a possibilidade de dissidência dos jornalistas, em tempos uma das características inabaláveis do jornalismo. A constante pressão das chefias para o imediatismo noticioso, replicando acriticamente notícias de outros órgãos, muitas vezes sem confirmação. São todos factores que ameaçam o jornalismo e a sua credibilidade.

A fragilidade das redações faz com que a pluralidade informativa seja seriamente afectada. A consequência é um mimetismo noticioso que prejudica não apenas a democracia como salvaguarda os grandes interesses, muitos deles do complexo militar-industrial. As decisões de política externa deixam de ser questionadas para serem replicadas acriticamente, até mesmo justificadas. 

Por exemplo, ao invés de escrutinar as alegações, decisões e ações da administração Bush filho sobre as supostas armas de destruição maciça no Iraque, o The New York Times foi um verdadeiro porta-voz do belicismo ilegal do executivo neoconservador com os editoriais, opiniões e notícias que publicou ao longo de mais de dois anos, entre 2002 e 2004. Hoje, depois de mais de um milhão de iraquianos mortos, sabemos que era tudo mentira. O próximo caso é um caso clássico de uma propaganda blitz.

O caso dos “40 bebés decapitados”

O mundo ainda vivia a ressaca das ações armadas do Hamas do dia 7 de outubro. O exército e a espionagem israelitas, humilhados ao verem estilhaçar-se a sua imagem de invencibilidade militar e de suprema eficácia na área de intelligence, passaram da estupefação ao contra-ataque. O primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, declarou que Israel estava em guerra e deu ordem para o início dos bombardeamentos contra a Faixa de Gaza. 

Mas Gaza tem uma das maiores densidades populacionais do mundo, com organizações de direitos humanos a classificarem-na como a maior prisão a céu aberto, e portanto muitas das vítimas mortais seriam inevitavelmente civis. Os bombardeamentos não iriam discriminar entre combatentes do Hamas e a população civil. Daí que tenha entrado na equação um dos princípios da propaganda de guerra: desumanizar o Outro apresentando os palestinianos como bárbaros sedentos de sangue. Ou, como lhes chamou o ministro da Defesa de Israel, “animais humanos”. 

“Não tenho a noção de que os palestinianos estejam a dizer a verdade em relação a quantas pessoas morreram. Estou certo de que morreram inocentes, é o preço das guerras… Mas não tenho confiança nos números que os palestinianos usam”, disse Biden

Uma das primeiras operações de relações públicas montada pelo governo israelita foi levar alguns jornalistas a visitar o kibbutz de Kfar Aza, um dos alvos do ataque do Hamas de 7 de outubro, e verem in loco o massacre de civis. Na manhã de 10 de outubro, uma notícia horrenda espalhou-se à velocidade da luz pela imprensa israelita e mundial: no kibbutz de Kfar Aza tinham sido descobertos os corpos de 40 bebés mortos e decapitados. 

Quem deu a notícia foi a jornalista Nicole Zedeck, do canal de notícias israelita i24 News. Ela fez vários lives a partir do kibbutz que fica a menos de um quilómetro da fronteira com Gaza. As imagens evidenciavam que ali tinham sido travados combates ferozes. O Exército israelita terá demorado 17 horas para chegar ao local. 

A jornalista descrevia o que via, procurando, com a voz embargada, ganhar mais dramaticidade. Foi então que soltou a bomba: “Pelo menos 40 bebés foram retirados daqui em macas!”, disse. Ia prosseguir, mas, no estúdio, o apresentador do programa interpelou-a: “Tenho de te interromper: disseste 40 bebés mortos?” “Foi o que me disse um dos comandantes.” A menção às decapitações viria depois, quando Zedeck se referiu a corpos de mulheres e crianças decapitados. Estava lançada a “notícia” que iria fazer manchetes em todo o mundo. 

Kfar Aza, o local onde o Hamas assassinou 40 bebés”, titulou a SIC Notícias. A CNN Portugal não lhe ficou atrás: “Bebés decapitados e corpos em cada casa. Israel continua a testemunhar a passagem do Hamas”.

No Brasil, a Globo abraçou a falsa notícia de imediato, tal como a CNN Brasil. Nos Estados Unidos, a Fox News não esperou para pôr no ar essa “prova definitiva” do barbarismo do Hamas. No Reino Unido, os tablóides também não esperaram, ou não fossem imprensa que vive do sensacionalismo; foram, porém, acompanhados por jornais de prestígio como o The Times, The Daily Express, The Scotsman, e o Financial Times.

Com tanta pressa em dar a notícia-bomba, esqueceram-se de um pormenor: confirmá-la oficialmente com o Exército israelita. Nesse mesmo dia, a jornalista do i24 News pôs no ar uma entrevista com a sua única fonte, um vice-comandante da unidade 71 do Exército israelita, David Ben Zion, que é também um colono extremista conhecido por, meses antes, incentivar ataques de colonos contra os palestinianos da Cisjordânia. 

“Fomos de porta em porta, matámos muitos terroristas. Eles são muito maus. Cortam as cabeças das crianças, cortam as cabeças das mulheres. Mas nós somos mais fortes que eles.” E acrescentou: “Sabemos que eles são animais, mas agora descobrimos que não têm coração”.

A Blitz de propaganda das autoridades israelitas corria à velocidade da luz pelas redes e pela comunicação social quando alguns “desmancha-prazeres” vieram emperrar a engrenagem.

A maior ameaça é uma população informada e cética que se mobiliza em oposição.

A Sky News estava no kibbutz ao mesmo tempo que a repórter da i24 News. O correspondente-chefe Stuart Ramsay falou com dois majores do IDF (Israel Defence Forces, o Exército israelita), um dos quais era porta-voz. Mas em nenhum momento se referiram ao Hamas ter decapitado ou matado 40 bebés. “Acredito que se fosse esse o caso eles me teriam dito, e a outros aqui”, afirmou Ramsay.

Outro jornalista que participou na mesma visita foi o repórter fotográfico Oren Ziv, que afirmou na rede social X (antigo Twitter): “Estou a receber muitas perguntas sobre os relatos de ‘bebés decapitados pelo Hamas’ que foram divulgados após a visita a Kfar Aza. Durante a visita não vimos nenhuma evidência disso, e o porta-voz ou os comandantes do Exército também não mencionaram nenhum desses incidentes”.

A esta altura, a Sky News levava aos ecrãs três jornalistas da casa para explicar porque não estavam a noticiar a história dos 40 bebés. E a explicação era simples: não tinham qualquer prova de que acontecera, e tinham pedido três vezes ao Exército israelita a confirmação, sem que os seus porta-vozes a tenham dado. Sem isso não podiam dar a notícia, como mandam os preceitos mais elementares do jornalismo.

Quem primeiro anunciou que o Exército israelita não confirmava a história dos 40 bebés foi a agência de notícias turca Anadolu, que falou com um porta-voz do Exército de Israel. Questionado sobre a história dos bebés, o militar israelita disse e repetiu: “Vimos os noticiários, mas não temos outros detalhes ou confirmação”.

Poucos, porém, seguiram a mesma ética. E o resultado foi que a informação de que não se confirmara a notícia dos 40 bebés decapitados não chegava às pessoas. Quem deu um forte contributo para que essa desinformação se espalhasse foi, mais uma vez, Joe Biden. 

Usar imagens televisivas de violência espectacular é o motor deste género de propaganda que tenta impor o emocional sobre o racional, simplificando os acontecimentos numa dicotomia bom/mau. 

Num encontro com líderes judeus norte-americanos, o chefe de Estado comentou nunca ter pensado que veria “imagens de terroristas a decapitar crianças”. Mas, segundo o Washington Post, um porta-voz da própria Casa Branca disse mais tarde que o presidente não vira fotografias nem tivera confirmação independente das decapitações. Apenas se baseara em declarações do porta-voz de Netanyahu e em notícias dos média israelitas.

Entretanto, já a jornalista e pivô da CNN Sara Snider pedia desculpas públicas por ter dado a notícia. “Ontem, o gabinete do Primeiro-ministro de Israel afirmou ter confirmado que o Hamas tinha decapitado bebés e crianças (…) O governo israelita diz agora que não pode confirmar a decapitação de bebés. Eu devia ter tido mais cuidado com as minhas palavras, e por isso peço desculpa.”

O mal, porém, já estava feito: a agência Anadolu ouviu um especialista, Marc Owen Jones, que calculou em 44 milhões o número de impressões da primeira notícia dos bebés decapitados, 300 mil “gostos” e mais de 100 mil partilhas em 24 horas no X. 

No meio de tanto mau jornalismo, resta destacar o excelente trabalho feito pelo brasileiro Diário do Centro do Mundo. Em Portugal, o Público, ao contrário da SIC, negou-se a validar a notícia dos 40 bebés, explicando que “esta informação não foi avançada por nenhum outro meio de comunicação internacional e um porta-voz das Forças Armadas israelitas disse à agência turca Anadolu que ‘não tinha quaisquer detalhes ou confirmação sobre isso”.

No dia seguinte, porém, nova reviravolta: o exército israelita deu o dito por não dito, afirmando haver provas das mortes e decapitações de bebés. Entregou aos jornalistas fotos de três bebés, dois carbonizados e o terceiro com marcas de bala. Não disseram onde as fotos tinham sido tiradas, se no kibbutz de Kfar Aza ou não. O secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, mostrou-se muito comovido com a visão das fotos, mas a principal preocupação era não desmentir o que Biden dissera na véspera.

O caso das incubadoras roubadas

As crianças criam naturalmente empatia e, por isso, são muitas vezes usadas como propaganda de guerra. Este caso dos “40 bebés decapitados” não foi único. Em outubro de 1990, quando os Estados Unidos estavam a montar uma coligação internacional para expulsar o Iraque de Saddam Hussein do Kuwait, surgiram notícias de que soldados iraquianos tinham entrado no Hospital da Cidade do Kuwait, retirado 312 bebés de incubadoras, levado os aparelhos e deixado os bebés no chão, onde acabaram por morrer. Era mentira. 

“Fui voluntária no hospital al-Addan”, disse Nayirah no Comité de Direitos Humanos do Congresso dos Estados Unidos. “Enquanto lá estava, vi os soldados iraquianos entrarem no hospital com armas e irem para a sala onde (...) os bebés estavam em incubadoras. Tiraram os bebés das incubadoras, levaram as incubadoras e deixaram os bebés no chão frio a morrer.” 

Dois anos depois descobriu-se que o seu testemunho era falso, bem como a sua identidade. Nayirah não era quem dizia ser, era sim filha de Saud Nasir al-Sabah, embaixador do Kuwait nos Estados Unidos, e tinha sido treinada pela empresa de relações públicas Hill & Knowlton. 

“De todas as acusações feitas contra o ditador [Saddam Hussein], nenhuma teve tanto impacto no público norte-americano como a dos soldados iraquianos terem removido 312 bebés das suas incubadoras, deixando-os para morrer no chão frio do hospital da Cidade do Kuwait”, escreveu o jornalista John MacArthur no livro The Second Front: Censorship and Propaganda in the 1991 Gulf War, de 1992.

Com os canais noticiosos 24 horas por dia e as redes sociais, somos bombardeados com informação e desinformação, criando uma limitada e imediatista representação da realidade.

Mas esses eram tempos anteriores ao das redes sociais, as televisões ainda dominavam. A jornalista Victoria Elms, especializada em investigação nos meios digitais da Sky News, confirmou que desde o dia 7 de outubro, as redes sociais tinham sido “inundadas de desinformação acerca do novo conflito de Israel com Gaza”. Imagens do conflito na Síria, de clipes de videojogos, de vídeos do TikTok feitos meses antes estavam – e estão – a ser partilhados na Internet como se fossem dos últimos acontecimentos em Gaza. Para a jornalista, isto “é particularmente perigoso em tempos de conflito” onde pode haver mais dificuldades que o habitual para verificar de forma independente as informações do material postado.

No episódio dos “bebés decapitados”, as autoridades israelitas e dos Estados Unidos em nada contribuíram para a verificação independente das fotos exibidas a alguns meios de comunicação, nem conseguiram demonstrar a veracidade dos bárbaros crimes que denunciaram. Mas a mensagem teve o impacto desejado naquele espaço de tempo: reforçou a desumanização dos palestinianos e contribuiu para justificar os bombardeamentos aos olhos de uma parte da opinião pública mundial. 

As notícias continuaram a fluir, ora sobre Gaza ora sobre a brutalidade do ataque do Hamas, e o público virou a sua atenção para outras dimensões da ofensiva israelita. E as crianças voltaram a ser um foco de atenção, desta vez do lado palestiniano: o número de crianças palestinianas mortas em Gaza já ultrapassava as 400, e não parou desde então de aumentar. O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, deixou um sério aviso: Gaza ia transformar-se num “cemitério para as crianças”.

Nem sempre a propaganda de guerra resulta como os seus promotores esperavam, por vezes a realidade troca-lhes as voltas. Mesmo com a blitz de propaganda, a exibição da brutalidade do Estado de Israel contra os palestinianos está a fazê-lo perder a opinião pública mundial, à semelhança do que aconteceu durante a Primeira Intifada (1987-1993). No atual conflito, a invasão terrestre a Gaza e a perseguição aos centros de controlo e comando do Hamas supostamente instalados em túneis sob os hospitais acabou por tornar o ataque às tropas do Hamas num ataque aos hospitais de Gaza. Um dos primeiros a ser atacado foi o Al-Ahli, num momento em que o exẽrcito israelita ainda afirmava “não bombardear hospitais”.

A carnificina no Hospital Batista Al-Ahli

No dia 17 de outubro, o Hospital Batista Al-Ahli Arabi foi atingido por uma bomba que matou 471 pessoas, de acordo com o Ministério da Saúde de Gaza. Além dos doentes, o hospital albergava muitas famílias que tinham ficado sem casa e que consideravam o hospital o lugar mais seguro para se abrigarem. A bomba explodiu na entrada do hospital, numa praça de estacionamento onde havia muita gente acantonada.

Pouco tempo antes, o hospital tinha recebido das autoridades israelitas uma ordem de evacuação, dada a todos os hospitais situados no norte de Gaza. Os médicos, cientes de que os hospitais situados no sul de Gaza não tinham a menor possibilidade de atender os doentes do norte, optaram por ignorar a ordem. Assim, de certa forma, o pessoal hospitalar estava alerta para a possibilidade de haver algum tipo de atentado ou intimidação.

Não é incomum o Estado de Israel, que diz ter o “exército mais moral do mundo”, avisar o alvo poucos minutos antes de o bombardear. Fê-lo, por exemplo, em maio de 2021 quando bombardeou o escritório da televisão Al-Jazeera em Gaza: avisou os jornalistas dez minutos antes de pulverizar o prédio de 11 andares. “Pensámos que o bombardeamento da torre em que nos encontrávamos era muito improvável. Só albergava gabinetes de imprensa, empresas e o resto eram apartamentos residenciais", disse um ano depois Wael Al Dahdouh, chefe do escritório da Al-Jazeera

Os minutos que se seguiram à explosão no Hospital Batista Al-Ahli foram dantescos. Corpos despedaçados e/ou queimados estavam por todo o lado. O Ministério da Saúde de Gaza acusou o Exército israelita de ser o autor do bombardeamento, afirmando que nele tinham morrido mais de 500 pessoas (número que mais tarde seria de 471).

As reações ao atentado não se fizeram esperar. O presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, declarou três dias de luto e cancelou uma reunião marcada com o presidente dos Estados Unidos. Arábia Saudita e Jordânia cancelaram a mesma cimeira em que iriam participar com a Autoridade Palestiniana e o presidente Joe Biden. 

As crianças criam naturalmente empatia e, por isso, são muitas vezes usadas como propaganda de guerra.

Justin Trudeau, primeiro-ministro do Canadá e forte aliado de Israel, classificou o atentado como “horrível” e “inaceitável”. Egito, Irão, Qatar e Turquia também o condenaram. Protestos contra o ataque a um hospital – um crime de guerra pela Convenção de Genebra – aconteceram em Ramallah e noutras cidades da Cisjordânia. Em Aman, manifestantes tentaram invadir a embaixada de Israel na Jordânia. No Líbano, houve protestos diante das embaixadas da França e dos Estados Unidos em Beirute; e, no Irão, os manifestantes concentraram-se em frente às embaixadas da França e do Reino Unido. Também houve protestos nas capitais de Marrocos e do Iraque.

No dia seguinte, as autoridades militares de Israel rejeitaram a autoria do atentado atribuindo a culpa à organização palestiniana Jihad Islâmica. Na versão de Israel, um dos rockets disparados contra o território israelita sofreu uma avaria e acabou por atingir o Hospital Al-Ahli. Mas, antes desta versão ser apresentada oficialmente pelo Exército, um assessor do primeiro-ministro israelita Hananya Naftali escreveu no X: “A Força Aérea atingiu uma base terrorista do Hamas dentro de um hospital de Gaza.” 

“Vi os soldados iraquianos entrarem no hospital com armas e irem para a sala onde (...) os bebés estavam em incubadoras. Tiraram os bebés das incubadoras, levaram as incubadoras e deixaram os bebés no chão frio a morrer”, disse Nayirah. Era mentira. 

A publicação durou pouco tempo, foi apagada à pressa, mas esteve online o tempo suficiente para levantar suspeitas. O seu autor pediu depois desculpas pela precipitação, e ainda afirmou: “o Exército de Israel não bombardeia hospitais”. Passado um mês de guerra, com dezenas de ataques a centros médicos e hospitais em Gaza praticados pelas tropas israelitas, essa afirmação não faz o menor sentido. Israel começou, entretanto, a argumentar que combatentes do Hamas usam ambulâncias para assim justificar os seus ataques contra socorristas. 

Para reforçar a sua tese sobre o ataque ao hospital, os militares israelitas apresentaram uma suposta gravação de uma conversa telefónica interceptada em que dois militantes do Hamas comentam a explosão no Hospital Al-Ahli. Nela reconhecem ter sido a Jihad a responsável pelo desastre. Mas a gravação não resistiu à primeira análise profissional. 

A Earshot, organização não-governamental que faz investigação de som para comunidades afetadas por injustiças cometidas por empresas, por Estados ou crimes ambientais, concluiu que a gravação não era de uma conversa. Tratava-se de duas gravações independentes, editadas e intercaladas posteriormente para parecerem um diálogo. A Earshot concluiu que “o nível de manipulação necessário para editar as duas vozes daquela peça a desqualifica como prova”. O Exército israelita já tivera antes de retirar um vídeo que supostamente mostraria o rocket desgovernado, gravado quase uma hora depois da explosão no Hospital Al-Ahli.

Apesar da sucessão de provas canhestras apresentadas – e retiradas – pelo comando militar israelita, dezenas de países, a começar pelos Estados Unidos, adotaram a versão israelita de que a explosão no hospital fora causada pelos palestinianos e não por Israel. Mais uma vez, Joe Biden comandou a onda, dizendo a Netanyahu que já sabia que a autoria do morticínio no hospital era “da outra equipa, não vossa”. O presidente dos Estados Unidos diria à imprensa que chegara a essa conclusão com base “nos dados que me apresentou o meu Departamento de Defesa”.

A disputa em torno da autoria do bombardeamento do Hospital Al-Ahli não foi tecnicamente resolvida, não houve provas irrefutáveis a confirmar uma ou outra versão. O exército de Israel afirmou que não precisava de apresentar provas, já que tudo estava documentado num vídeo da Al-Jazeera

Assim, o canal de televisão com sede no Qatar fez uma reconstituição minuciosa do seu próprio vídeo, tirado de uma câmara apontada na direção de Gaza e que naquele momento transmitia em streaming. Montou esse vídeo com outros gravados nos mesmos momentos, mas a partir de outros pontos e perspetivas. Isso permitiu-lhe fazer uma minuciosa reconstituição, quase frame por frame, da sequência dos acontecimentos. 

Desse trabalho pode concluir-se que o Exército israelita, ao contrário do que afirmara, fez disparos que acertaram nas redondezas do hospital poucos minutos antes da explosão da bomba fatídica. Não se confirma assim a afirmação israelita de que o seu Exército não tivera atividade naquela área. O vídeo da Al-Jazeera regista em seguida o lançamento de três rockets a partir de Gaza, intercetados e derrubados pelo sistema de defesa aérea de Israel, o Iron Dome. Um último rocket é lançado a partir de Gaza e é o que Israel afirma ter provocado a explosão no hospital. 

O número de crianças mortas até agora em Gaza já supera em quatro vezes a cifra de crianças mortas em conflitos armados, em todo o mundo, nos últimos quatro anos. 

Mas a reconstituição da Al-Jazeera mostra como, mais uma vez, o rocket foi atingido pelo Iron Dome, explodiu no ar e no ar se consumiu totalmente. Cinco segundos depois houve uma nova explosão em Gaza, seguida de outra, muito maior, que foi a do hospital.

Há, porém, um facto que causou dificuldades aos que procuraram comprovar a autoria de Israel: não haver, no local, uma cratera compatível com a violência da explosão. Especialistas afirmaram à BBC que o tipo de armas usadas por Israel nos seus bombardeamentos obrigaria à existência de uma cratera muito maior, um argumento a reforçar a tese do rocket desgovernado logo a seguir ao lançamento, que teria ainda muito combustível e seria este que teria provocado a enorme e mortífera explosão. 

Contra esta tese há o argumento de que existem sim projéteis capazes de causar grandes explosões sem fazer grandes crateras; por outro lado, mesmo com quase todo o combustível, o poder de fogo de um rocket da resistência palestiniana nunca daria origem a uma explosão de tamanho porte. 

Entre as armas israelitas que podem não causar grandes crateras estão as Joint Direct Attack Munition (JDAM), um kit que transforma bombas antigas em bombas guiadas à distância com grande precisão. Um especialista em armas ouvido pela agência turca Anadolu considerou que pode ter sido usada uma bomba MARk 84 com o kit JDAM, que poderia ter detonado antes do impacto no solo, com o fim de causar danos maiores e sem abrir grandes crateras.

Em casos de análise de bombardeamentos como este, a evidência decisiva para resolver as dúvidas é a recolha de estilhaços. Não foi esse o caso do Hospital Al-Ahli. No local, a corrida para socorrer os feridos fez com que os vestígios desaparecessem. No dia seguinte, funcionários do Hospital ainda recolhiam pedaços de corpos. Enviar peritos de fora de Gaza para procurar os estilhaços era totalmente inviável. E assim não houve conclusão final e cada lado ficou com a sua narrativa.

A fragilidade das redações faz com que a pluralidade informativa seja seriamente afectada. A consequência é um mimetismo noticioso que prejudica não apenas a democracia como salvaguarda os grandes interesses.

Acontece que, além das investigações e avaliações forenses, há também os contextos que têm de ser levados em conta. O bombardeamento do Hospital Al-Ahli aconteceu já a ofensiva se prolongava há dez dias. Passou-se entretanto mais de um mês. O que nos mostrou a realidade nestas semanas? O que fez Israel aos hospitais e centros médicos de Gaza? Tomou-os simplesmente como alvo. A guerra contra o Hamas passou a ser uma guerra aos hospitais. 

O maior hospital de Gaza, o Al-Shifa, foi invadido pelas tropas israelitas que alegavam estar à procura da entrada para os túneis do Hamas, onde estaria instalado o centro de comando operacional de toda a organização. Precisamente sob o hospital. Nada do que supostamente foi encontrado passou por verificação independente. Mesmo o túnel alegadamente encontrado não mostra qualquer traço de nele ter sido instalado um centro de comando. Mas a propaganda vai sendo feita e reproduzida.

Na hora em que terminamos este texto, todos os hospitais do Norte de Gaza deixaram de funcionar por falta de medicamentos, água, energia, eletricidade. O Al-Shifa, o maior hospital de Gaza, teve de retirar os doentes que podiam ser deslocados. Os bebés prematuros fizeram parte desta deslocação. Nove já tinham morrido por falta de condições mínimas para as incubadoras, como a ausência até de água limpa. 

A mostrar que a invasão do Hospital Al-Shifa não foi uma exceção, tropas israelitas cercaram outros hospitais em Gaza e estenderam essas operações à Cisjordânia. O objetivo, além de impedir o bom funcionamento de hospitais já superlotados, é aterrorizar a população palestiniana, mostrando-lhe que não há lugar onde possa encontrar alguma segurança. 

Os dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) confirmam estes ataques do exército israelita aos hospitais: a OMS registou nada menos que 335 ataques a centros de saúde e hospitais no território palestiniano ocupado, sendo 164 em Gaza e 171 na Cisjordânia, desde o dia 7 de outubro.

A desconfiança lançada sobre as estatísticas das autoridades de Gaza permite desacreditar os números impressionantes de mortos, ou, pelo menos, deixar a dúvida no ar. 

Quando terminar a trégua negociada de quatro dias, Israel vai atacar o Sul de Gaza, disse Netanyahu, para onde ordenou que se deslocasse a população do Norte. 

Diante desta situação catastrófica, é estranho que o Hospital Al-Ahli, no dia 17 de outubro, tenha sido alvo de Israel? À luz dos contornos bárbaros que esta guerra tem vindo a tomar, a resposta só pode ser: não. Não é estranho. Nada estranho que o Al-Ahli tenha sido bombardeado por Israel, como fez entretanto com tantos outros. Aliás, à luz dos mais de 14 100 mortos palestinianos, a solução deste enigma já parece um exercício inútil.

A “guerra aos hospitais” veio mostrar o objetivo final da extrema-direita sionista que ocupa o governo em Tel Aviv: provocar uma nova Nakba como a de 1948, aterrorizar a população palestiniana para que fuja para outro país, abandone o que resta das suas terras. É a limpeza étnica de todo o território.

Não, não é uma fake news. A intenção é real e tem sido abertamente declarada. O mundo deixará que leve a sua avante? Nas ruas de Londres, Berlim, Paris, Lisboa, de África, na América, no Próximo e Médio Oriente, a solidariedade com os palestinianos atacados tem sido enorme. A voz das ruas, quando é gigante, é sempre superior, mais forte e mais influente, que as propagandas blitzes.