Editor na Jacobin Magazine. Escreve também nas revistas In These Times, Dollars & Sense, Catalyst The Call.

Os Estados Unidos lucram obscenamente com a ocupação da Palestina e a guerra sobre Gaza

Não se trata apenas da indústria do armamento — muitas empresas sediadas nos EUA fazem negócios com Israel e são cúmplices da violação dos direitos humanos dos palestinianos em Gaza e não só. Aqui estão alguns dos piores culpados.

Ensaio
20 Março 2024

Desde que começou, em meados de outubro do ano passado, o devastador ataque de Israel a Gaza já tirou a vida a mais de 29 mil palestinianos, a grande maioria dos quais civis — incluindo 19 mil mulheres e crianças. Os ministros do governo israelita fizeram declarações que sugerem fortemente que o seu objetivo é a limpeza étnica de toda a população da Faixa de Gaza, e a África do Sul apresentou uma queixa por genocídio contra Israel no Tribunal Internacional de Justiça, que decidiu, em 26 de janeiro, que Israel pode estar a violar a Convenção das Nações Unidas sobre o Genocídio e ordenou-lhe que cessasse imediatamente essas violações, incluindo o assassínio de palestinianos.

Entretanto, apesar das provas crescentes dos crimes de guerra israelitas, o governo dos EUA ofereceu apoio incondicional a essa ofensiva, apesar dos apelos superficiais para que Israel mostre "contenção" e respeite os direitos humanos. A administração de Joe Biden solicitou ao Congresso 14,3 mil milhões de dólares de ajuda militar a Israel, para além dos cerca de 3,8 mil milhões de dólares de ajuda que os Estados Unidos já enviam anualmente.

Essa ajuda tem sido retida no Congresso; mas em dezembro de 2023, Biden contornou duas vezes a legislatura para vender armas a Israel, num valor total superior a 200 milhões de dólares. Tudo isto se passa no contexto de décadas de ocupação de Gaza e da Cisjordânia, de um movimento de colonos radicais que prolifera e é cada vez mais violento e continua a deslocar os palestinianos, e daquilo que a Amnistia Internacional, a Human Rights Watch e outras organizações de defesa dos direitos humanos têm vindo a descrever como um apartheid.

A longa ocupação israelita e a atual guerra sobre Gaza são um grande negócio para muitos empresários de armamento sediados nos EUA. Mas para além dos fornecedores militares, muitas empresas americanas têm investimentos substanciais em Israel. Estas empresas também são cúmplices das violações dos direitos humanos em Israel — e, como o movimento Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) há muito reconheceu, exercer pressão sobre estas empresas pode ser crucial para mudar a política israelita.

O mercado das armas

As empresas norte-americanas com cumplicidade mais direta nos crimes israelitas são, evidentemente, as de armamento e equipamento militar. De acordo com Molly Gott e Derek Seidman, que escrevem para o media de investigação Eyes on the Ties, cinco dos seis maiores fabricantes de armas do mundo têm sede nos Estados Unidos. São eles a Lockheed Martin, a Northrop Grumman, a Boeing, a General Dynamics e a RTX (anteriormente conhecida como Raytheon).

De forma perturbadora, mas não surpreendente, muitas destas empresas viram o preço das suas ações disparar quando a guerra de Israel contra Gaza começou, relataram Gott e Seidman. E os executivos das empresas de armamento têm-se mostrado publicamente entusiasmados com as oportunidades de lucro trazidas pelo genocídio. Discutindo o conflito numa reunião sobre os resultados dos seus negócios, em 24 de outubro, o CEO da RTX, Greg Hayes, declarou: "Penso que em todo o portfólio da Raytheon, iremos ver um benefício deste reabastecimento". Na General Dynamics, no dia seguinte, o diretor financeiro e vice-presidente executivo da empresa, Jason Aiken, afirmou: "Se olharmos para o potencial de procura incremental que daí advém, o maior a destacar, e que realmente sobressai, é provavelmente o lado da artilharia".

Não há dúvida de que as forças israelitas estão a utilizar estas armas para cometer crimes de guerra contra os palestinianos. Como Stephen Semler relatou na Jacobin Magazine, muitas das armas específicas que a administração Biden enviou a Israel foram repetidamente usadas para cometer crimes de guerra no passado. Isso inclui mísseis Hellfire, projéteis de artilharia e espingardas de assalto que foram usados para matar civis claramente identificados. Inclui também o fósforo branco, que Semler descreve como "uma arma incendiária brutal capaz de queimar diretamente a carne, os ossos e até o metal", cuja utilização perto de civis é proibida pelo Protocolo III das Convenções de Genebra. Israel tem utilizado o fósforo branco repetidamente, incluindo na guerra atual sobre Gaza.

Lucrar com a guerra, a ocupação e o apartheid

Para além das empresas de armamento e dos seus investidores, muitas outras empresas americanas estão a lucrar com o ataque brutal a Gaza e com a ocupação e o apartheid israelitas.

O movimento BDS tem uma série de empresas internacionais como alvo das suas campanhas de boicote ao consumo, que são "cuidadosamente seleccionadas devido ao registo comprovado de cumplicidade da empresa com o apartheid israelita", de acordo com uma declaração no sítio do BDS. Entre as empresas sediadas nos Estados Unidos estão a Hewlett-Packard (conhecida como HP; e a sua subsidiária de serviços empresariais e governamentais Hewlett-Packard Enterprises), a petrolífera Chevron e a empresa imobiliária RE/MAX.

A Hewlett-Packard fornece equipamento informático e outras tecnologias às forças armadas, à polícia e aos serviços governamentais israelitas. A Hewlett-Packard Enterprises fornece servidores para a Autoridade de Imigração e População do país, que o BDS diz que Israel usa "para controlar e impor o seu sistema de segregação racial e apartheid contra os cidadãos palestinianos de Israel". O gigante da energia Chevron, por sua vez, extrai gás reclamado por Israel no Mediterrâneo Oriental; segundo o BDS, fornece ao Estado israelita milhares de milhões de dólares em receitas vindas de pagamentos de licenças. 

Para além disso, segundo o BDS, a Chevron está “implicada na transferência ilegal, por parte de Israel, de gás fóssil para o Egipto, através de um gasoduto que atravessa ilegalmente a Zona Económica Exclusiva (ZEE) palestiniana em Gaza, devendo aos palestinianos milhões em taxas. É também potencialmente cúmplice da pilhagem israelita das reservas de gás palestinianas ao largo da Faixa de Gaza ocupada, um crime de guerra ao abrigo do direito internacional”.

Em 2017, o SOMO, um  think tank sediado em Amesterdão que investiga empresas multinacionais, produziu um extenso relatório sobre o envolvimento da Noble Energy na violação dos direitos dos palestinianos, relacionada com a sua extração de gás no Mediterrâneo Oriental — a empresa foi adquirida pela Chevron em 2020. Para além de participar no bloqueio ilegal do acesso da Autoridade Palestiniana às suas pequenas reservas de gás ao largo da costa de Gaza, através da colaboração com a marinha de Israel, a SOMO relata que as actividades de extração da Chevron nos campos de gás israelitas podem também estar a drenar as reservas de gás palestinianas.

"Ao não envidar esforços para assegurar o consentimento palestiniano para a extração de gás de [campos de gás israelitas contíguos às reservas de gás palestinianas]", concluiu a SOMO, "a Noble Energy não cumpriu as Directrizes da OCDE [para Empresas Multinacionais] e [os Princípios Orientadores das Nações Unidas sobre Empresas e Direitos Humanos] e não levou a cabo as devidas diligências em matéria de direitos humanos para identificar e prevenir potenciais impactos adversos nos direitos humanos". 

O relatório prossegue: “a empresa também contribuiu potencialmente para uma violação do direito coletivo de autodeterminação. Além disso, se o gás natural palestiniano foi efetivamente drenado [...] pode argumentar-se que a Noble Energy participou num ato de pilhagem, em violação do direito internacional humanitário e penal.”

O comércio e os investimentos dos EUA em Israel têm um papel significativo na economia de Israel, constituindo uma fonte potencialmente poderosa de influência sobre o Estado israelita.

A RE/MAX comercializa e vende propriedades em colonatos israelitas na Cisjordânia ocupada, que são amplamente considerados ilegais ao abrigo do direito internacional. O movimento dos colonos israelitas há muito que comete ataques violentos contra os palestinianos, muitas vezes com a bênção implícita ou explícita das forças armadas israelitas. Desde o início da guerra, este movimento tem-se tornado mais ousado e violento. Outras empresas norte-americanas que fazem negócios em Israel e que foram escolhidas pelo BDS para desinvestimento ou outras formas de campanhas de pressão (embora não boicotes completos) incluem a Intel, Google/Alphabet, Amazon, Airbnb, Expedia, McDonald's, Burger King e Papa John's.

Seguindo o exemplo de outras campanhas de boicote e desinvestimento bem sucedidas, a BDS selecciona apenas um punhado de empresas como alvos, a fim de maximizar o impacto das suas campanhas. Mas estas empresas são apenas a ponta do icebergue. O American Friends Service Committee (AFSC) mantém uma lista mais abrangente de empresas cúmplices em vários aspectos da ocupação e do apartheid israelitas. Não é de surpreender que muitas empresas sediadas nos EUA também se encontrem na sua lista.

Deixando de lado os fornecedores de armas, entre os outros infractores proeminentes e particularmente flagrantes está a Caterpillar Inc., o fabricante de maquinaria e equipamento de construção, cujo bulldozer blindado D9 é frequentemente utilizado pelos militares israelitas. Israel tem utilizado os D9 da Caterpillar para destruir casas, escolas e outros edifícios palestinianos nos territórios ocupados, bem como em ataques a Gaza que matam civis. Em 2003, a ativista norte-americana Rachel Corrie foi esmagada até à morte por um destes bulldozers "quando tentava evitar que uma casa palestiniana fosse demolida enquanto a família ainda estava lá dentro", segundo a AFSC.

A ExxonMobil Corporation e a Valero, para não serem ultrapassadas pelas violações dos direitos humanos cometidas pela Chevron, fornecem combustível para os aviões israelitas que têm bombardeado Gaza sem tréguas nos últimos meses. A Motorola Solution Inc., empresa de comunicações e vigilância, há muito que fornece a tecnologia de vigilância que Israel utiliza para vigiar os palestinianos nos colonatos ilegais da Cisjordânia e nos muros de separação e postos de controlo em Gaza e na Cisjordânia. A empresa de viagens e turismo TripAdvisor, por sua vez, está envolvida na ocupação de uma forma mais mundana: tal como a Airbnb, os seus sítios Web apresentam frequentemente listas, e actuam como agentes de reserva, de propriedades em colonatos ilegais na Cisjordânia e nos Montes Golã.

Globalmente, de acordo com o Gabinete do Representante Comercial dos Estados Unidos, em 2022 os Estados Unidos exportaram 20 mil milhões de dólares em bens e serviços para Israel, representando 13,3% do total das importações deste país. Israel, por sua vez, exportou 30,6 mil milhões de dólares para os Estados Unidos, representando esse valor 18,6% de todas as exportações israelitas. O comércio e os investimentos dos EUA em Israel têm um papel significativo na economia de Israel, constituindo uma fonte potencialmente poderosa de influência sobre o Estado israelita.

A importância dos boicotes

O movimento BDS inspira-se em parte nos boicotes de décadas contra o sistema de apartheid da África do Sul. Os boicotes começaram quando o líder do Congresso Nacional Africano, Albert Luthuli, apelou a eles em 1958, e o Movimento de Boicote (mais tarde Movimento Anti-Apartheid), com sede no Reino Unido, foi fundado no ano seguinte. Inicialmente apelava a um boicote aos produtos sul-africanos, mas expandiu-se para exigir o desinvestimento total e sanções económicas contra a África do Sul.

Eventualmente, a pressão internacional criada pelo Movimento Anti-Apartheid ajudou a pôr fim ao apartheid sul-africano. A esperança dos apoiantes do BDS é que um movimento semelhante possa um dia ajudar a pôr fim à opressão de Israel sobre a Palestina.

Neste momento, as perspectivas de acabar com a ocupação e o apartheid israelitas parecem bastante sombrias. A exigência imediata que os defensores da Palestina estão a fazer nos Estados Unidos é a de um cessar-fogo permanente no ataque devastador de Israel a Gaza; alguns activistas também têm protestado e tentado interromper a venda de armas dos EUA a Israel. No entanto, a longo prazo, para se conseguir justiça na Palestina será provavelmente necessário pressionar os nossos próprios governos, e as muitas empresas norte-americanas que são atualmente cúmplices dos crimes israelitas, a mudar de rumo.

 

Artigo originalmente publicado na revista Dollars & Sense.