Cofundador da República dos Pijamas, newsletter de economia e política. Membro do conselho editorial do Shifter.

Lula não se vai salvar se replicar a estratégia dos mandatos anteriores

Depois dos primeiros seis meses de presidência Lula, a estratégia económica para o seu mandato fica cada vez mais evidente. Para ter sucesso, o governo tem de se libertar das amarras orçamentais autoimpostas nos últimos anos.

Ensaio
20 Julho 2023

No primeiro dia de janeiro deste ano, Luiz Inácio Lula da Silva deu início ao seu terceiro mandato como presidente do Brasil — exatamente 20 anos depois de se ter tornado o primeiro e único operário a chegar à presidência do país. A situação política, tanto interna como externa, mudou profundamente entre os dois mandatos de Lula. 

Em 2003, a China ainda era um país bem mais pobre (em termos de PIB per capita) que o Brasil. Hoje, a China compete com os Estados Unidos no desenvolvimento tecnológico e por influência global. Com o milagre económico chinês, que levou a um aumento do consumo de bens alimentares, a nação asiática tornou-se o principal parceiro comercial do Brasil, destronando os Estados Unidos no seu próprio hemisfério. Em quase todos os países da América Latina, a China tornou-se no parceiro comercial mais relevante que a maior economia do mundo.

No plano interno, Lula herdou de Jair Bolsonaro um mundo muito diferente daquele que recebeu de Fernando Henrique Cardoso e isso tem consequências para qualquer tipo de política remotamente progressista. Mesmo com a derrota de Bolsonaro, o Congresso brasileiro continuou a trajetória de viragem para forças ultra-conservadoras e reacionárias, iniciada ainda antes da eleição de Bolsonaro. Depois de vários governos fracos e instáveis, os executivos brasileiros estão menos poderosos perante o congresso nacional.
 

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Os governos Bolsonaro e Temer deixaram o governo com menos instrumentos de política económica: ambos conduziram uma série de privatizações de empresas estratégicas, como a Electrobras, a distribuidora de gás TAG, várias refinarias e a Embraer. Na gestão Bolsonaro-Guedes o Brasil adotou a dita “independência” do Banco Central, um dos tripés do neoliberalismo tecnocrático que ainda não tinha chegado ao Brasil.

Estas mudanças confirmam o óbvio: o terceiro governo Lula não pode simplesmente replicar a estratégia dos seus dois primeiros mandatos. Mesmo que a história não se repita (e a história não se repete, tem continuidades), é útil analisar os dois primeiros mandatos de Lula, que, combinados com os seus primeiros seis meses de governação, revelam a estratégia petista para os próximos quatro anos. 

O regresso da austeridade expansionista em busca de uma nova base

Até agora, a grande medida económica de Lula foi a aprovação do "arcabouço fiscal", uma nova regra orçamental altamente restritiva para substituir o anterior teto de gastos — política do governo Temer, constantemente descumprido por Bolsonaro, que previa congelar os gastos públicos por 20 anos. Os críticos à esquerda do governo apontam corretamente que, apesar de Lula ter prometido revogar "uma estupidez chamada teto de gastos", acabou por aprovar uma versão suavizada do mesmo. 

As evidências são tantas que o projeto liderado pelo Ministro das Finanças Fernando Haddad recolheu elogios variados da direita. O ministro já foi duas vezes capa da Revista Veja, um importante braço do antipetismo, pelo seu suposto bom senso económico. Para piorar a situação, a nova regra orçamental recolheu os elogios envenenados de João Doria e de Bolsonaro, que impuseram fortes derrotas eleitorais a Haddad, em 2016 e 2018, respectivamente. A agência de rating Standard and Poor's, representante do capital financeiro externo, também deu a sua benção ao ministro petista ao melhorar as perspectivas do Brasil.

No entanto, isto não significa que o executivo Lula planeie seguir rigorosamente o guião neoliberal que o Brasil tem adotado acriticamente, pelo menos desde 2016. Ao mesmo tempo que o governo anunciava a sua regra orçamental, que restringe o poder do Estado como motor económico (e outras medidas para agradar aos mercado financeiros), o executivo garantiu algumas boas medidas sociais: a expansão do Bolsa Família, o reforço da Farmácia Popular, o corte de impostos para os trabalhadores mais pobres e a redução do preço do gás, da gasolina e dos carros mais baratos do mercado (“carros populares”).

Esta dualidade política não é novidade em gestões petistas. A estratégia asemelha-se bastante à dos primeiros anos do governo Lula, com o antigo ministro Antonio Palocci no comando da Economia. O Estado foi um agente económico altamente restritivo e conservador em nome da estabilidade dos mercados — com altas taxas de juros e cortes da despesa pública — enquanto o aumento do salário mínimo, a introdução de novos programas sociais, como o Bolsa Família e o crescimento da China (via exportações de matérias primas) garantiam o crescimento e redistribuição. Como afirmou Nelson Barbosa (ex-ministro dos governos do PT), para o livro “PT, uma História”, o Brasil foi um raro caso de “austeridade expansionista”. 

Este termo pseudo-científico foi criado por economistas neoliberais da Bocconi, uma espécie de Nova School of Business and Economics italiana, para alimentar um suposto racional por detrás da austeridade imposta no sul da Europa. Ironicamente, o conceito acabou por resumir o modelo de crescimento do Brasil durantes os primeiros anos do governo Lula, que combinava austeridade monetária e orçamental do Estado, com a expansão do setor privados através do boom das matérias primas (exportadores) e a redistribuição de rendimentos (serviços locais consumidos pelas classes populares).

Esta combinação política reorganizou a base eleitoral de Lula. Passou a conquistar novas bases eleitorais beneficiadas pelos seus programas sociais, em especial no norte e no nordeste do Brasil. Enquanto isso, o PT perdia apoio no sul, que continuava o seu processo nefasto de desindustrialização precoce

Políticas ativas para reduzir os preços dos combustíveis e automóveis parecem querer conquistar uma aliança com o novo proletariado altamente precarizado da gig economy enquanto incentiva a produção automóvel doméstica, num exercício clássico de conciliação de classes lulista.

As medidas sociais do terceiro governo Lula têm em mente esta constante reconfiguração de bases políticas e eleitorais. O reforço do Bolsa Família e a redução de impostos sobre o rendimento dos mais pobres cimenta a força de Lula entre os mais desfavorecidos e tenta conquistar eleitores mais jovens sem grandes memórias dos seus mandatos anteriores. 

Políticas ativas para reduzir os preços dos combustíveis e automóveis, sendo positivas para a classe trabalhadora, parece terem outro objetivo: conquistar uma aliança com o novo proletariado altamente precarizado da gig economy enquanto incentiva a produção automóvel doméstica, num exercício clássico de conciliação de classes lulista. 

Da mesma forma que Lula foi uma liderança do novo sindicalismo dos anos 1980, os entregadores estão a criar novos movimentos laborais e mantêm a sua postura combativa no início do governo Lula.

O presidente do Brasil está consciente disso e sabe que criar pontes políticas com estes trabalhadores é fundamental para o seu partido e governo manterem uma forte identidade ligada ao mundo do Trabalho. Durante a campanha, Lula falou vezes sem conta da precariedade dos entregadores e da reforma laboral espanhola, chefiada pela ministra Yolanda Diaz (líder e fundadora do SUMAR, novo movimento de esquerda espanhol), como inspiração para o Brasil. No mês passado, o governo anunciou um grupo de trabalho para a regularização desta classe.  

Na incerteza de um novo boom das matérias primas, Lula tenta usar o seu peso diplomático, e a importância global da Amazónia, para criar um outro boom de procura externa, desta vez de investimento estrangeiro que ajude a segurar minimamente a economia brasileira enquanto o Estado mantém uma política austera (tanto a nível orçamental como nos altos juros do banco central).

Essa estratégia torna-se evidente pelo número de viagens que o Presidente brasileiro fez, mesmo com o Brasil a passar por uma várias de crises domésticas (ataques a Brasília, desastres naturais e os ataques ao povo Yanomami). O chefe de Estado brasileiro já viajou para onze países diferentes e, na sequência dessas viagens, anunciou alguns investimentos estrangeiros, tanto no Fundo Amazônia como em capacidade produtiva (refinarias e outros). 

O Brasil tenta usar habilmente a sua posição de não alinhamento geopolítico para promover uma competição económica entre os Estados Unidos e a China. Nada melhor para resumir essa competição que o anúncio da chinesa BYD, a maior fabricante de carros elétricos do mundo, de que irá abrir uma fábrica no antigo (e último) pólo industrial da Ford no Brasil.

Dois em um, versão Lulista

Mesmo que uma “nova austeridade expansionista” não seja uma total catástrofe económica e social, dificilmente vai garantir popularidade e uma base social ao governo de Lula durante quatro anos. 

À primeira vista, os números da economia são animadores para o executivo e podem ser usados como prova de que a sua estratégia está a resultar na perfeição. No primeiro trimestre do ano, o crescimento da economia foi acima das expectativas, a inflação mantém-se numa trajetória de queda e a confiança do consumidor atinge o seu máximo dos últimos quatro anos. 

Contudo, as políticas do governo Lula dificilmente tiveram um efeito substancial e imediato nos primeiros três meses de governo, principalmente quando o motor do crescimento foi a agropecuária. 

A exportação de bens alimentares cresceu brutalmente e a indústria sofreu uma queda. Camuflada num “bom PIB”, esta é uma realidade difícil para o governo. A agropecuária é um setor que cria poucos empregos, altamente concentrados na mão de poucos, paga poucos impostos e, para piorar a situação, o setor tem-se expandido com o roubo de terras protegidas e públicas. Enquanto a indústria e outros setores foram asfixiados por taxas de juro estratosféricas e uma política orçamental austeritária, a agropecuária atalha com um processo que se assemelha com a acumulação primitiva de capital. 

A apropriação de terras, além de ser um crime ambiental, acaba por ser um programa tóxico de privatizações sem qualquer retorno para os cofres do Estado.

A intensificação do atual modelo de superexportação agropecuária não trará ganhos substantivos para Lula. Nos governos Temer-Bolsonaro, o Brasil tornou-se num grande exportador líquido por meio da venda de bens alimentares para a China e de uma constante supressão das importações. 

Na prática, isso significa um sector agropecuário pujante que coabita com uma classe trabalhadora sem rendimentos suficientes para consumir bens importados de forma substancial, e a indústria mantém um baixo nível de investimento em máquinas e equipamentos estrangeiros. Se este modelo fosse minimamente popular, Temer não teria saído da presidência com 5% de aprovação e Lula não teria sido reeleito com o forte apoio da classe popular

Uma sobrevivência política através de um modelo agroexportador porá em causa os próprios objetivos económico-diplomáticos de Lula. A diplomacia ambiental com a Amazónia na vanguarda, sinalizada na ‘OPEC das florestas’, e nos compromissos de preservação ambiental não são compatíveis com o modelo de governação da última década.

A intuição política e o carisma de Lula não serão suficientes para criar um boom de investimento competitivo entre a China e os Estados Unidos, em solo brasileiro, que compense uma política económica austera.

Para obter bons resultados nas próximas eleições municipais e garantir que o PT consiga a reeleição presidencial, a combinação de contração do Estado com expansionismo agropecuário terá de ser revertida. Quando Lula saiu da presidência com 83% de aprovação, o seu executivo tinha deixado a "austeridade expansionista" para trás e abraçado o expansionismo keynesiano.

Em resposta à crise financeira, o governo promoveu a expansão de crédito através de bancos públicos, e o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), um projecto de obras públicas para retomar o crescimento económico. Ao contrário do Norte Global, a economia brasileira recuperou rapidamente e levou o Brasil Petista para a capa da revista The Economist, em 2009.

Lula e o PT sabem perfeitamente que este período expansionista foi a chave para o seu sucesso pós-Lula. Caso contrário, não teriam apresentado a relativamente desconhecida Dilma Rousseff como “a mãe do PAC”. Por isso é expectável que o executivo petista tente acelerar o crescimento na segunda metade do seu mandato. 

A mudança da presidência do Banco Central, no final do próximo ano, para uma figura menos hostil ao governo deverá dar alguma margem de manobra para uma política monetária mais relaxada. Neste momento, o “independente” Banco Central opera a maior taxa de juro real do mundo, criando um verdadeiro paraíso do rentistas que asfixia o setor produtivo e a classe trabalhadora. Uma eventual exploração de novos poços de petróleo próximos da Foz do Amazonas - contestada e incerta do ponto de vista ambiental - pode dar um fôlego económico e maior poder ao executivo perante um poderoso congresso.  

O terceiro governo Lula parece tentar replicar a estratégia dos seus mandatos anteriores em apenas quatro anos. Uma tática bastante arriscada, sem qualquer margem de erro e vulnerável a vários fatores fora do controlo do executivo. A recente decisão do Tribunal Superior Eleitoral de tornar Bolsonaro inelegível e a morte política das principais figuras do lava jatismo (aqui e aqui) criam um vazio de liderança na direita que dão, pelo menos temporariamente, alguma margem de manobra política ao governo Lula. Mas a intuição política e o carisma do Presidente não serão suficientes para criar um boom de investimento competitivo entre a China e os Estados Unidos, em solo brasileiro, que compense uma política económica austera. 

Aguardar por uma nova bonança do petróleo não é um projeto de governo mas apenas fé. As hipóteses  de um presidente sobreviver politicamente a um início de mandato economicamente fraco são baixas, mesmo para o veterano Lula. O governo deu alguns passos importantes para consolidar e expandir a sua base popular, mas podem ser sabotados pela sua própria condução orçamental. Para a aposta de Lula ter a mínima viabilidade, a prioridade do Presidente deveria ser a revogação das suas próprias regras orçamentais. O mais depressa possível.

Ensaio adaptado de um outro originalmente publicado na newsletter República dos Pijamas.