Doutorado em Ciências da Educação e em História Moderna e Contemporânea. Foi reitor da Universidade de Lisboa, entre 2006 e 2013, e candidato independente às eleições presidenciais de 2016. 

A educação como espaço público comum

O povo precisa da escola para ganhar cidadania. A metamorfose da escola deve passar pela construção de processos que permitam aos alunos trabalhar o conhecimento, uns com os outros e com os professores em prol da valorização da dimensão humana e individualização dos percursos. Mas a metamorfose da escola tem uma quarta face: a construção do espaço público da educação.

Ensaio
13 Outubro 2023

1 | A grande operação histórica de escolarização das massas começou no século XIX. Em todo o mundo, a escola tornou-se obrigatória e difundiu-se um modelo escolar que, nos seus traços fundamentais, prevalece ainda nos dias de hoje. Em língua inglesa, a expressão que designa este processo, mass schooling, tem uma força que se perde na tradução para as línguas românicas. O conceito de educação popular vai ganhar outros significados, mas, no século XIX, é o que melhor traduz a necessidade de “educar as massas” para as transformar em nações.

A escola promove um processo de homogeneização cultural que tem como justificação a necessidade de construir uma cidadania nacional. Como explica Pierre Bourdieu, a criação das sociedades nacionais dá-se em conjunto com a afirmação da educabilidade universal: “uma vez que todos os indivíduos são iguais perante a lei, o Estado tem o dever de os fazer cidadãos, dotados dos meios culturais para exercer ativamente os seus direitos cívicos”.

A escola produz uma língua, uma cultura e uma história comuns. Pouco importa se são imaginadas, ou não. O que importa é a sua força, a maneira como se tornam “naturalmente” comuns. Talvez Flaubert tenha razão numa das entradas do seu Dicionário das ideias feitas: “Instrução – O povo não precisa dela para ganhar a vida”. Mas precisa dela para ganhar a cidadania. Basta lembrar que os analfabetos serão, durante muito tempo, impedidos de votar.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.

Quero sublinhar a ideia de comum. O processo de construção da cidadania nacional faz-se através de uma escola que adquire uma forma comum (idêntica e homogénea em todo o mundo) e um currículo comum (a cultura geral que todos devem possuir). A forma escolar consolida-se ao longo do século XX, de tal maneira que, pouco a pouco, vamos esquecendo a existência de outras formas de educar. Simultaneamente, definem-se as bases de um currículo escolar que adquire configurações muito semelhantes em todo o mundo. Este duplo comum traduz uma lógica de canonização tanto da estrutura da escola como do conhecimento que nela se deve transmitir.

Nas décadas finais do século XX, tem lugar um novo processo de canonização. Depois da cidadania, a economia. Em torno do “capital humano” vulgariza-se a tese de uma ligação direta entre a educação e o desenvolvimento económico, uma visão que domina as políticas educativas nos dias de hoje.
 

2 | Estes três comuns – a forma da escola, o conhecimento escolar e a ligação à economia – têm de ser repensados à luz das realidades contemporâneas, num processo que tenho vindo a designar por metamorfose da escola.

A primeira face da metamorfose é a mudança da forma escolar. As escolas continuam organizadas segundo modelos que serviram no passado, mas já não servem no presente: espaços fechados, tendo como núcleo central a sala de aula, na qual um professor dá as suas lições aos alunos durante um determinado período de tempo.

Hoje, precisamos de organizar uma diversidade de espaços, ambientes abertos, com novas dinâmicas educativas. O pensamento dicotómico tem-nos feito perder muito tempo. A questão não é um ensino centrado no professor versus uma aprendizagem centrada no aluno. A questão é a construção de espaços e de processos educativos que permitam aos alunos trabalhar o conhecimento, uns com os outros e com os professores.

A segunda face é a conceção de currículo, não só enquanto “curso dos conhecimentos”, mas também enquanto “percurso dos alunos”. Deve haver uma base comum, mas o mais importante é a aquisição das linguagens (alfabética, matemática, científica, artística).

Estas linguagens são parte das disciplinas, do seu património histórico, mas não podemos ignorar as evoluções recentes da ciência, nomeadamente a “revolução da convergência”, e a necessidade de avançar para aprendizagens por temas e problemas. Não se trata apenas de valorizar o “comum” de cultura geral, mas sobretudo o “comum” do domínio das linguagens.

Também os percursos dos alunos devem ser individualizados, permitindo ritmos e escolhas impossíveis num modelo escolar uniforme. Mas esta diferenciação tem de ser abertura de possibilidades e nunca confirmação das desigualdades de nascimento. Devemos ter muito cuidado com as vias que acabam em becos sem saída.

A terceira face é a valorização da dimensão humana. A educação não pode ser reduzida a mera formação técnica para o desenvolvimento económico. Juntemos uma filósofa e um neurocientista. Martha Nussbaum refere-se à empatia como elemento decisivo para a aprendizagem. Assume, assim, a importância de uma relação humana que não se limita à aquisição de técnicas e de competências. António Damásio fala-nos das emoções e dos sentimentos como provocadores das aprendizagens. Ao fazê-lo, enriquece o fenómeno educativo com dimensões subjetivas que são centrais para o processo de conhecimento.

A escola, na formulação feliz de Olivier Reboul, deve ensinar aquilo que une e aquilo que liberta. Educa-se dentro de uma determinada comunidade (familiar, religiosa, cultural), mas não se educa apenas para essa comunidade, antes para a humanidade inteira. A viagem é a melhor metáfora da educação. O grande ensino é aquele que desperta dúvidas, que encoraja a dissidência, que prepara o aluno para a partida, diz-nos George Steiner. Educar não é apenas formar “recursos humanos”.
 

3 | Por um momento, acreditámos que o digital ia ser uma imensa janela para todos os mundos, culturas e conhecimentos. A ilusão tornou-se pesadelo. Uma das nossas maiores surpresas é a fragmentação e o hiper-individualismo que reinam no cibermundo. Na rede podemos ser tudo o que quisermos, transformar-nos nos heróis exaltados, gloriosos, que proclamam a sua “liberdade total” num universo totalmente vigiado.

Contrariamente ao que esperávamos, a rede não tem sido uma porta de acesso à diversidade, mas antes um lugar onde vamos à procura dos que pensam como nós e dos argumentários que reforçam as nossas crenças e convicções. Hoje, mais do que nunca, a escola tem de reconstruir o comum como elemento central da educação e da sociedade.

Este comum não remete para uma “comunidade de identidade”, mas para uma “comunidade de trabalho”, isto é, para aquilo que fazemos uns com os outros, independentemente de quem somos ou de onde vimos. Neste sentido, assenta num princípio de comunicação, de encontro, não entre semelhantes, mas entre diferentes. Importante é “um modo comum de compreender”, o que implica a capacidade de enriquecermos mutuamente as nossas experiências pessoais e a inteligência do mundo.

Já não nos basta uma pátria comum (a cidadania nacional). Precisamos de recorrer a duas outras metáforas para explicar o que se espera da escola: uma Terra comum e uma Humanidade partilhada.

A Terra comum, a Terra-pátria de Edgar Morin, revela-nos a importância da ciência, de uma cultura científica sem a qual não há aprendizagem. A Humanidade partilhada chama-nos a atenção para a importância das artes e do diálogo. Num mundo fragmentado, dividido, a escola tem de construir as condições para uma vida em comum. Não se trata de unir, artificialmente, o que é diferente, mas de criar os ambientes que permitam trabalhar em comum, pensar em conjunto, partilhar uma reflexão sobre os mesmos objetos.

Este trabalho, este pensamento e esta partilha não se fazem no vazio, necessitam de instrumentos, de linguagens, que só a ciência, a criação e o conhecimento nos podem dar. O cibermundo está a incentivar uma sucessão interminável de monólogos entre iguais. A escola tem de construir as condições para um diálogo entre diferentes, assente no conhecimento, na compreensão mútua e num debate esclarecido e informado.
 

4 | Deixei para o fim a escola pública, a “escola do povo”, que não se limita a servir um público, mas a formá-lo. Não é um serviço, é uma instituição. A metamorfose da escola tem uma quarta face: a construção do espaço público da educação.

No século XIX, a educação foi trazida para dentro de um lugar “sagrado”, a escola. Hoje, precisamos de um movimento de profanação, no sentido que lhe dá Giorgio Agamben, devolver um objeto sagrado ao uso público. Dito de outro modo: precisamos de rever o contrato social assinado no século XIX – “dêem-nos os vossos filhos, nós os educaremos nas escolas” –, trabalhando em conjunto para a constituição de um espaço público que junte a escola com outras instituições, professores com pais e outros atores sociais. Não se educa apenas no interior do recinto escolar.

O espaço público da educação tem de ser uma esfera de discussão, mas também de deliberação e de ação. Não se trata apenas de ouvir os cidadãos, mas de os inscrever como parceiros num esforço educativo que pertence ao conjunto da cidade, da polis. Só assim conseguiremos criar novos vínculos e responsabilidades, e evoluir para uma maior presença dos professores e da sociedade na construção das políticas públicas de educação.

Um passo mais nestas várias digressões pelo comum. Será que podemos prolongar para as instituições escolares a reflexão sobre os “bens comuns” que vem sendo elaborada em domínios como a habitação e os transportes, a energia e os recursos hídricos? Será que podemos, também aqui, imaginar uma alternativa à dicotomia Estado/mercado, concebendo um caminho do meio?

Volto-me para um dos últimos relatórios da Unesco, no qual a educação é apresentada como um bem comum mundial: “Numa perspetiva de bem comum, não é apenas a vida harmoniosa dos indivíduos que importa, mas também a harmonia da vida que os seres humanos têm em comum”.

O comum é mais do que o público, na medida em que assenta necessariamente num esforço de partilha, de participação e de decisão coletiva. Não é unificação a partir de um qualquer imaginário do mundo, seja nacional ou outro, mas antes abertura a práticas de colaboração e de cooperação. Chegou o tempo de assumir a educação como um bem comum, como um espaço público comum?

Enfim. Outra vez a escola, a sua metamorfose, a construção de um espaço público comum. Outra vez a necessidade de instaurar espaços de trabalho conjunto, um comum agora definido pelo prisma da diferença (e da diversidade) e não pelo prisma da semelhança (e da uniformidade). Não vale a pena alimentar ilusões. A educação não pode tudo. Nunca pôde. Nunca poderá. Mas não temos o direito de desperdiçar nenhuma oportunidade para combater a barbárie e a fragmentação do mundo. Se não for através da educação e do conhecimento como será?

 

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