Doutorando em Economia na Universidade de Sapienza, Roma. Escreve no blogue Ladrões de Bicicletas.

Diz que é uma espécie de milagre económico

O nobel da Economia Paul Krugman disse que a experiência portuguesa é “uma espécie de milagre económico”. Milagre para quem? Temos hoje uma economia dominada por baixos salários, precariedade e dependente do turismo. O governo apostou no pagamento da dívida pública em detrimento dos serviços públicos.

Ensaio
23 Novembro 2023

Paul Krugman, economista norte-americano e prémio Nobel da Economia em 2008, veio a Portugal para participar numa conferência organizada pelo Jornal de Negócios. Krugman destacou-se durante a última grande crise financeira, quando criticou frontalmente as medidas de austeridade levadas a cabo por vários governos e instituições internacionais, desafiando o consenso dominante na altura.

Por ter assumido essa posição num contexto em que a esmagadora maioria dos economistas apoiava os programas de austeridade desenhados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Central Europeu e Comissão Europeia, Krugman tornou-se uma referência importante para quem, à esquerda, se opunha à estratégia de empobrecimento de quem trabalha. O economista nunca deixou de se considerar um liberal, mas mesmo assim opôs-se a esta estratégia seguida por governos como o português, procurando desconstruir a ideia de que a solução para a crise passava pelo corte de salários e aumento do desemprego.

As suas últimas declarações apanharam, por isso, muitas pessoas de surpresa. Ao Jornal de Negócios, Paul Krugman classificou a experiência portuguesa como “uma espécie de milagre económico” e disse que é “um pouco misterioso como é que as coisas correram tão bem” a Portugal depois da última crise financeira. Talvez o grande mistério esteja na própria afirmação: se olharmos para os dados da última década, as coisas correram bastante menos bem do que é dito.

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Portugal recuperou da crise sem dor?

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Krugman começou por estabelecer um paralelo entre as economias de Portugal e Espanha: depois dos desequilíbrios acumulados na primeira década de adesão ao euro, Espanha passou por desemprego elevado e por uma desvalorização interna, mas Portugal teria evitado esse caminho. Para Krugman, “Espanha acabou por alcançar a recuperação económica, mas fê-lo passando por anos e anos de desemprego elevado, desvalorização interna e queda dos custos. Portugal teve uma recuperação sem isso”.

No entanto, os dados sobre a evolução dos salários nos dois países sugerem uma história diferente: em ambas as economias, a parte dos salários no PIB - ou seja, a fatia do rendimento produzido que é paga aos trabalhadores - caiu acentuadamente com os programas de austeridade. Essa evolução reflete o pacote de medidas de desvalorização do trabalho e de desregulação laboral aprovado nos anos da Troika (2011-2014). A opção pela desvalorização interna foi, aliás, assumida pelo governo PSD-CDS como estratégia para promover as exportações do país. Após um “aumento” artificial durante a pandemia (resultado da enorme quebra do PIB), o peso dos salários no PIB continua abaixo do valor pré-crise.

O desemprego também aumentou substancialmente nos países que passaram por programas de austeridade. A taxa atingiu um valor superior em Espanha, em parte porque partia de um valor mais elevado, mas Portugal também passou por um aumento significativo do desemprego, além de uma das maiores vagas de emigração alguma vez registada.

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Um “milagre económico” para quem?

A ideia de que a última década foi "uma espécie de milagre " para a economia portuguesa, como nos diz Paul Krugman, pode ser enganadora. Tudo depende do termo de comparação utilizado. Se olharmos para a história recente do país, os sinais não são tão positivos. Comecemos pela evolução do PIB. Após a quebra entre 2011 e 2013, a economia cresceu ligeiramente acima da média da década anterior. 

No entanto, o crescimento médio anual continuou a ser baixo quando comparado com o de outros períodos (nomeadamente, antes da adesão ao euro). Os valores elevados de 2021 e 2022 têm de ser lidos com cautela, visto que é preciso ter em conta o efeito de recuperação face à enorme quebra do PIB registada em 2020, após o início da pandemia e das medidas de confinamento que interromperam uma parte substancial da atividade económica. Depois de uma quebra tão acentuada, a reabertura gradual das economias estaria sempre associada a uma subida, que não indica necessariamente que algo de estrutural tenha mudado nos fatores que determinam o crescimento do país.

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A taxa de desemprego diminuiu mas, além do volume do emprego, temos de olhar para a composição. A precariedade alastrou-se após o programa da Troika e Portugal tornou-se o 3º país da UE com maior peso de contratos a termo, sendo também o 3º com mais emprego a termo involuntário. No contexto atual, mais de metade dos trabalhadores por conta de outrem recebe menos de €1000 brutos por mês, sendo que essa percentagem ainda é maior no caso dos jovens.

A evolução do produto e do emprego refletem o modelo de crescimento adotado pelo país após a Troika: um modelo que se baseou na aposta em setores de baixo valor acrescentado, intensivos em trabalho e assentes em baixos salários, como o turismo e os serviços associados. O "milagre económico" da última década está essencialmente associado à expansão dos setores do turismo e do imobiliário. Não há nada de misterioso nessa expansão: é o resultado da criação de uma série de esquemas destinados a atrair o investimento estrangeiro.

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Entre a liberalização do mercado de arrendamento, vistos gold, benefícios fiscais do regime de residentes não habituais (que oferece uma taxa de imposto de apenas 20%) e benefícios fiscais a fundos de investimento, tudo contribuiu para alimentar a bolha. Houve ainda a compra de apartamentos para serem convertidos em alojamento local: em 2019, em número de alojamentos locais, Lisboa ultrapassou Barcelona, uma das cidades com maior pressão turística do mundo. Há mais ALs per capita em Lisboa do que em Nova Iorque

Resultado: os preços da habitação cresceram muito acima dos salários de quem trabalha no país. A monocultura do turismo e do imobiliário ajudou a mascarar a fragilidade da recuperação pós-Troika, mas agravou as condições de vida para boa parte das pessoas.

Da economia que lemos à economia que temos

Ao contrário do que é dado a entender na entrevista de Paul Krugman, e que, de resto, é também dito por alguns dos responsáveis políticos nacionais da altura, é difícil encontrar indicadores que nos mostrem que a economia portuguesa saiu reforçada na última década. É certo que o país deixou de registar défices externos - ou seja, a importar mais do que aquilo que exporta - mas isso deveu-se a fatores pouco animadores: numa primeira fase, a quebra acentuada do poder de compra das pessoas e à consequente redução das importações e, numa segunda fase, a expansão das exportações de serviços (ou seja, do turismo).

Na verdade, o modelo de crescimento adotado reflete-se também noutros indicadores, como o da produtividade: o crescimento médio anual deste indicador após o programa de ajustamento da Troika foi cerca de metade do que se tinha verificado na década anterior. Para isso terá contribuído a referida expansão dos setores de baixo potencial produtivo (turismo, restauração, alojamento, etc.). Mais uma vez, é difícil encontrar sinais de um "milagre" para a economia.

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Quando olhamos para o cabaz de exportações da economia portuguesa, percebemos que o país se especializou na produção de bens e serviços pouco sofisticados e de baixo valor acrescentado.

Em resumo: na última década, a economia intensificou um padrão de especialização em setores pouco produtivos e assentes em baixos salários. Houve crescimento e criação de emprego, mas a precariedade alastrou-se e os rendimentos continuam a ser muito baixos. 

Durante este período, o governo apostou na redução do rácio da dívida pública – que continua, ainda assim, bastante acima do valor pré-Troika – sacrificando o investimento nos serviços públicos, com reflexos que já se fazem sentir de forma expressiva em áreas como a saúde, os transportes ou a habitação. Está muito longe de ser um milagre.