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Investimento público: para o ano é que é, não era?

A promoção do investimento não só é compatível com a sustentabilidade das contas do Estado, como pode ajudar a reduzir de forma mais sustentada a dívida pública, especialmente num país com necessidades significativas de investimento. Mas a obsessão do governo com os excedentes orçamentais é uma escolha que sai cara ao país.

Crónica 74
19 Outubro 2023

A discussão sobre o Orçamento do Estado para 2024, apresentado pelo governo na semana passada, tem-se centrado no lado da receita. A redução dos impostos, com destaque para a diminuição do IRS para os primeiros cinco escalões, foi o tema que mereceu maior destaque na apresentação da proposta pelo governo e nos espaços de comentário. Do lado da despesa, o governo tem colocado ênfase na importância da contenção, tendo em conta o “objetivo essencial [de] redução da dívida pública”, embora não deixe de expressar ambição no que diz respeito ao investimento público, em que promete o melhor registo desde a Troika.

Não é nada de novo. Em 2016, sobre o investimento público, António Costa dizia que “há duas formas de estar na vida, os que ficam à espera que aconteça e os que fazem acontecer”, colocando-se, sem hesitar, do lado dos segundos. Em 2017, o primeiro-ministro prometia aumentar o investimento público em 20% e distribuir fundos por “escolas, centros de saúde, hospitais, instalações de forças de segurança [e] rodovias”. Em 2018, anunciava novamente “um crescimento mais significativo” desta rubrica. Em 2019, garantia que o investimento público era “absolutamente essencial”. Em 2020, já com o país a enfrentar a pandemia, o investimento passara a ser “absolutamente inadiável”. Em 2021, Costa salientou que “nestes momentos de crise, é mesmo a altura de apostar em fazer aquilo que há muito está por fazer” no que toca ao investimento. Já no ano passado, sublinhou a “forte aposta” do governo no investimento público.

Só houve um problema: em todos estes anos, o país registou os níveis de investimento público mais baixos da sua história recente. Na verdade, na última década, Portugal foi o segundo país da União Europeia em que o Estado menos investiu.

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Todos os anos, houve uma enorme diferença entre as promessas feitas pelo governo no início de cada ano e o valor realmente executado no fim. Entre 2017 e 2023, face aos valores orçamentados, ficaram por aplicar 5802 milhões de euros. E isto é se aceitarmos a previsão do próprio governo sobre a execução do investimento neste ano, que também pode não se concretizar.

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O que é certo é que isso não acontece por falta de necessidades. No Serviço Nacional de Saúde, o desinvestimento degrada o serviço público e promove a contratação de serviços aos privados. Nos transportes, a falta de investimento tem levado ao encerramento de várias linhas ferroviárias e à supressão sistemática de comboios ou autocarros. Na habitação, o país continua a ter um dos mais reduzidos parques habitacionais públicos da União Europeia, além de falhar na manutenção da pouca habitação social existente. Serve de pouco reduzir impostos se o desinvestimento no Estado Social empurrar as famílias para serviços privados mais caros.

Desta vez, o governo apresenta aquilo que parece ser uma justificação antecipada para o seu registo desapontante neste campo: a criação de um Fundo de Investimentos Estruturantes, supostamente destinado a armazenar dinheiro para financiar investimentos necessários no futuro. O ministério das Finanças até já avança que poderá financiar a construção da linha de alta velocidade (TGV). Não deixa de ser irónico que se refira a este projeto, que vem sendo adiado por sucessivos governos há décadas, ainda para mais num ano em que o investimento na ferrovia já sofreu um corte de 25% face ao valor inicialmente orçamentado. O problema desta opção prende-se precisamente com o eterno adiamento dos investimentos necessários no país, apesar das necessidades evidentes.

O argumento do governo para justificar a estratégia de contenção orçamental é o de que o único caminho que permite reduzir a dívida pública passava, antes, pela eliminação dos défices orçamentais e, agora, pela acumulação de excedentes. Só que há bons motivos para pensarmos que esta é uma estratégia orçamental contraproducente. Isso deve-se ao «efeito multiplicador», isto é, ao impacto que a política orçamental tem no funcionamento da economia. A maioria dos estudos sobre multiplicadores da despesa conclui que estes são superiores a 1: por cada aumento de 1 euro na despesa (e, sobretudo, no investimento) do sector público, o PIB cresce mais do que 1 euro.

O que isto significa é que os benefícios que o investimento gera para a economia não só compensam, como tendem a superar os seus custos iniciais, por vários motivos. O investimento permite assegurar a provisão de elementos indispensáveis à atividade económica e tem potencial para alavancar o investimento privado, que responde sobretudo ao dinamismo da economia. Além disso, pode ajudar a substituir importações: ao investir em transportes públicos e na eficiência energética dos edifícios, reduz-se o consumo de combustíveis fósseis importados (e as emissões de carbono associadas).

Nesse sentido, a promoção do investimento não só é compatível com a sustentabilidade das contas do Estado, como pode ajudar a reduzir de forma mais sustentada a dívida pública em percentagem do PIB, especialmente num país com necessidades significativas de investimento, como até a OCDE reconheceu recentemente. Já a obsessão do governo com os excedentes orçamentais é uma escolha que sai cara ao país.

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