Cofundador da República dos Pijamas, newsletter de economia e política. Membro do conselho editorial do Shifter.

A "cidade dos 15 minutos" não é alternativa ao desinvestimento nos transportes públicos

Os passes sociais não devem ser vistos como o início e o fim de uma política de mobilidade de esquerda em Portugal. O seu sucesso é fundamental para combater o discurso de privatização dos transportes públicos. Devemos evitar embarcar nas novas modas internacionais, como a "cidade dos 15 minutos".

Ensaio
1 Junho 2023

Nas primeiras décadas de integração europeia, a política do alcatrão dominou por completo a política nacional. O transporte público e outras formas de mobilidade tornaram-se ligeiramente mais presentes no debate público, mas o alcatrão continua a dominar os orçamentos nacionais. Os passes sociais, uma política de simplificação e redução significativa dos preços dos transportes públicos, tornaram-se numa das principais marcas do primeiro governo (2015-2019) de António Costa, apoiado pela esquerda parlamentar. 

A proposta não estava nas posições conjuntas dos partidos em 2015, e constava apenas no programa eleitoral do PCP. Contudo, o sucesso é tanto que, quase quatro anos após a sua implementação, o terceiro executivo de Costa continua a apresentar os passes sociais como uma das suas principais medidas de alívio do custo de vida. Fá-lo sem que tenha um pacote de medidas eficazes e populares para combater a inflação.

Os passes sociais não devem ser vistos como o início e o fim de uma política de mobilidade de esquerda em Portugal. O seu sucesso será fundamental para combater o discurso de privatização dos transportes públicos, recentemente ressuscitado pela direita. Os passes sociais devem ser a bitola para construir uma política de transportes que empodere a classe trabalhadora, em vez de se embarcar, de forma acrítica, nas novas modas internacionais, como a "cidade dos 15 minutos".

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O regresso do privatismo

Depois de não terem conseguido entregar os principais transportes públicos a privados nas últimas semanas do governo PSD e CDS, as direitas têm usado a mobilidade no combate político de forma bastante heterogénea. E, recorde-se, o executivo de Pedro Passos Coelho (2011-2015) era contra os passes sociais. 

Com um pé num executivo municipal e outro na oposição, Carlos Moedas ziguezagueou entre discursos sobre as cidades de 15 minutos, uma guerra contra uma ciclovia e sobre a gratuitidade de transportes públicos para pessoas maioritariamente fora do mercado de trabalho. Já a Iniciativa Liberal e o seu think tank ‘independente e apartidário', com os dois pés na oposição, ressuscitam a narrativa do governo dos anos da troika argumentando: i) os serviços de transporte público estão em iminente colapso ii) perdem muito dinheiro porque são mal gerido e capturados por sindicatos, sob a tutela PCP; iii) apenas a privatização pode solucionar estes problemas.

A narrativa dominante da direita ignora, convenientemente, fatores chave que explicam o atual estado dos transportes públicos. Os problemas financeiros da CP são em grande medida consequência da "dívida histórica" que o Estado português tem com a empresa, pelo não pagamento de serviços públicos contratualizados. Situação que tem limitado a sua capacidade de investimento. O Estado jamais teria prolongado a dívida nestes termos com uma concessão privada, como a Fertagus. Infelizmente, na hora de cobrar pelos seus serviços, a CP não é tratada como credor privado. 

Alegar que décadas de subinvestimento na rede transportes públicos serão resolvidas através de privatizações é simplesmente delirante, sem qualquer base nas experiências de outros países, como o Reino Unido e a Grécia.

Em 2022, a CP teve o maior número de passageiros transportados nos últimos 20 anos e obteve lucros históricos. Isto demonstra que quando são financiadas devidamente, algo que o Estado faz com qualquer concessão privada, as empresas públicas de transportes entregam resultados materiais importantes.

Mas, atenção, os resultados positivos da CP não provam que os transportes públicos portugueses atingiram o potencial desejado. A rede de transportes públicos, que viu o número de usuários aumentar drasticamente depois da implementação dos passes sociais, tem sido vítima do seu próprio sucesso. As principais linhas suburbanas estão sobrecarregadas e despertaram a atenção de Luís Montenegro, presidente do PSD, numa tentativa (falhada) de encontrar problemas no serviço da CP na linha de Sintra.

Ao contrário do que é pregado pelos "privatistas", estes constrangimentos não seriam magicamente solucionados com uma concessão privada (ou de uma empresa pública estrangeira, uma lição do privatismo britânico, da EDP e da REN). A falta de capacidade instalada nas principais linhas resulta de um subinvestimento público crónico e que nunca foi verdadeiramente revertido. Alguns investimentos estruturais estão a decorrer (aqui, aqui e aqui), mas naturalmente levarão tempo. Além disso, a aquisição de novos comboios — suspensa durante quase duas décadas — sofre filas de vários anos no mercado internacional, que também se aplicam a qualquer empresa privada. 

Entretanto, os ferroviários da CP — que no imaginário dos privatistas são uma espécie de fantoches do PCP —  têm tentado colmatar essas deficiências com a recuperação de material existente, uma poupança na casa das centenas de milhões de euros — material que foi misteriosamente abandonado. Quando as “gorduras e ineficiências do Estado” são combatidas pelos próprios trabalhadores de empresas públicas — sem recorrerem a powerpoints de consultores externos ou a um Sergio Monteiro com um salário chorudo —, não merecem a atenção dos supostos defensores do contribuinte.

Alegar que décadas de subinvestimento na rede transportes públicos serão resolvidas através de privatizações é simplesmente delirante, sem qualquer base nas experiências de outros países, como o Reino Unido e a Grécia. O exemplo dado pelos "privatistas" portugueses é a concessão privada da Fertagus. 

Segundo eles, tem “índices de satisfação do cliente muito superiores à CP”. Primeiro, essa comparação é pouco útil, na medida em que a Fertagus opera numa das principais linhas suburbanas do país, em que a infraestrutura (do Estado) é relativamente moderna. Ao contrário da CP, tem de operar em condições muito menos favoráveis, no interior do país, e em linhas com várias décadas. Por último, o período de concessão da Fertagus já foi estendido, para benefício dos privados, e existem chances de que aconteça de novo. Entretanto, a CP continua a aguardar que o Estado ‘limpe’ a sua dívida histórica. 

Em resposta ao enorme sucesso dos passes sociais, alguns setores da direita tentam habilmente usar as recentes onda de greves como oportunidade para recuperar o discurso da privatização. As sugestões de incluir usuários nas decisões sobre serviços mínimos, e a devolução do valor dos passes em dias de greve, são parte dessa tática. O oportunismo desta proposta é tanto que os mesmos partidos nunca defenderam o mesmo para serviços privados, como as telecomunicações, quando estes apresentam uma qualidade abaixo do contratualizado.  

A cidade como espaço de disputa

O geógrafo britânico David Harvey diz que a cidade é o principal palco da luta de classes. Daí que o transporte público e a mobilidade sejam um componente da correlação de forças nesta luta. 

Em larga medida, os trabalhadores conseguiram ganhos materiais através da organização laboral e sindical, o que permitiu avanços em áreas como a legislação do trabalho e Estado Social (salário indirecto). O Norte Global, n qual Portugal se insere, tem vivido um longo processo de desindustrialização (e consequente redução da atividade sindical) e de concentração da atividade económica em áreas metropolitanas. Neste contexto, uma política de transportes como os passes sociais traz benefícios que vão além do aumento do salário disponível: maior a mobilidade, maior o poder da classe trabalhadora. 

O pensamento dos economistas Joan Robinson e Michał Kalecki ajudam a perceber como uma política de transportes pode empoderar os trabalhadores. Joan Robinson, no desenvolvimento do conceito de monopsónio, teorizava que os patrões conseguem suprimir (ainda mais) o poder negocial dos trabalhadores quando se localizam em regiões com poucas empresas. As ideias de Robinson não são uma mera teoria exótica de manual de economia: investigação científica confirma que os salários em grandes cidades são parcialmente mais altos, porque os empregadores não conseguem exercer este poder com a mesma intensidade. É que os trabalhadores têm mais facilidade em trocar de emprego (um poder negocial invisível) e este mecanismo tornou-se bastante evidente no fenómeno da "Grande Renúncia".

A criação de transportes públicos universais, regulares e gratuitos faz parte de um leque de medidas que aumentam o poder negocial do Trabalho.

Contudo, o Reino Unido mostra como uma política de mobilidade que se opõe aos interesses dos trabalhadores consegue corroer este poder negocial invisível. Desde os governos de Margaret Thatcher, entre 1979 e 1990, que o Reino Unido embarcou numa política de privatização e liberalização dos transportes tanto na ferrovia como nos autocarros. Esta experiência resultou nos preços mais altos da Europa e num serviço medíocre. Os trabalhadores britânicos vêem-se forçados a aceitar salários mais baixos para reduzir os custos (tempo e dinheiro) do transporte entre casa e o trabalho. Em suma, ao promoverem uma política de transporte caríssimo e de fraca qualidade, os sucessivos governos britânicos limitaram as alternativas dos trabalhadores, o que naturalmente reforçou o poder dos patrões.

No seu mais famoso ensaio, Os aspectos políticos do pleno emprego, Kalechi argumentou que os trabalhadores têm maior poder negocial em períodos de pleno emprego, devido à relativa escassez de mão de obra disponível. O economista polaco defendia que a oposição da classe empresarial a uma política de Estado que promova o pleno emprego não é económica (na medida em que não reduz lucros) mas política ao reduzir o poder desta classe na sociedade. Daí que uma das suas propostas tenha sido o reforço da importância de se subsidiar o consumo dos trabalhadores, a partir de bens públicos, como uma forma aumentar o seu poder negocial do Trabalho. 

No espírito kaleckiano, a criação de transportes públicos universais, regulares e gratuitos faz parte de um leque de medidas que aumentam o poder negocial do Trabalho. Logicamente, estas medidas serão incapazes de reverter os efeitos nefastos de décadas de declínio sindical e desregulação laboral. Ainda assim, não podem ser ignoradas.

Um claro exemplo deste tipo de estratégia política foram alguns dos primeiros governos municipais do Partido dos Trabalhadores (PT). Na década de 1980, vários municípios petistas deram um forte ênfase à regulação dos cartéis de transporte coletivo, com reformas semelhantes à Carris Metropolitana, 30 anos antes. Ainda nos seus anos de maior radicalidade, e com pouca influência na política nacional brasileira, o PT entendeu que os transportes públicos seriam uma forma eficaz de melhorar rapidamente as condições materiais da classe trabalhadora. 

Tal como os governos municipais do PT décadas antes, os sindicatos britânicos têm-se manifestado favoráveis à regulação dos transportes públicos porque entendem a sua importância num contexto de desindustrialização, liberalização económica e de fraca influência dos sindicatos nos círculos de poder.

Transporte público como substituição de importações

Portugal sofre desequilíbrios externos crónicos que se acentuaram com a entrada no Euro e perda de soberania económica. A Troika e os governos tutelados por si apresentaram como solução para este problema a "desvalorização interna". Cortaram-se salários e pôs-se fim a direitos sociais em nome das exportações. Todavia, nada foi feito (além de empobrecer a população) para reduzir estruturalmente o outro lado do desequilíbrio externo português: a necessidade de importações.

Uma parte significativa deste desequilíbrio resulta da importação de petróleo e automóveis, vindos de países como Arábia Saudita e Alemanha, respetivamente. Dentro dos constrangimentos europeus, a expansão agressiva do transporte público é uma das poucas reformas estruturais que permite substituir (e não abdicar, via empobrecimento) importações. Os japoneses fizeram-no ao longo do seu processo de desenvolvimento. Através de planeamento económico, e com a missão de fugir da dependência fóssil externa, o Estado japonês, com as suas empresas estatais, criou o primeiro comboio de alta velocidade e desenvolveu uma das redes ferroviárias mais impressionantes redes do mundo.

Uma política de transportes que vá muito além dos passes sociais, e que crie uma rede de transportes públicos realmente universal, será uma forma de substituir importações, e cumprir metas climáticas com a redução de emissões de gases efeito estufa. Ironicamente, o governo da PaF — que alegava estar a resolver os equilíbrios externos portugueses — interrompeu os passos tímidos que estavam a ser dados nessa direção: cancelou o TGV e suspendeu a obra de expansão do metro para a Reboleira. Nesse período, Portugal passou da política do alcatrão para a austeridade do alcatrão. Manteve-se um modelo económico pronto a importar automóveis (vindos dos centro da Europa) e petróleo assim que a economia voltasse a dar alguns sinais de vida. 

Apesar de alguns anúncios de novo investimento em transporte público, os executivos de António Costa não têm uma estratégia que reverta o modelo económico altamente dependente do alcatrão e do petróleo. Portugal continuará com uma rede de transportes públicos muito abaixo do padrão europeu (talvez sem ligações a Madrid) e vários projectos-chave continuam no papel. 

Confrontado com esta realidade, e após o sucesso dos passes sociais, o governo anunciou lançar um passe nacional ferroviário para regionais, uma medida proposta pela Livre e que é uma réplica de uma política alemã. Esta política facilita o uso de uma rede ferroviária fraca, disfarçando a falta de investimento para a melhorar. Dada a realidade ferroviária fora das áreas metropolitanas, esta é apenas uma forma de o governo camuflar a falta de investimento público para melhorar o transporte e o contínuo compromisso em dar benefícios às PPPs rodoviárias na ordem de centenas de milhões de euros.

Não existe um atalho de 15 minutos

Desenvolvido por Carlos Moreno, urbanista e professor na Universidade de Sorbonne (Paris), a "cidade dos 15 minutos" tornou-se uma referência em diversos círculos do urbanismo associados a algumas forças progressistas. Um conceito relativamente simples - que defende a existência de serviços básicos próximos de casa sem o uso do carro — depressa se tornou alvo de várias teorias da conspiração. 

O conspiracionismo de figuras como Jordan Peterson, guru motivacional do reacionarismo millennial, não se deve ao facto de Carlos Moreno ter sido membro da guerrilha urbana M-19. Estes ataques demonstram algo bem mais profundo sobre a nova extrema-direita no Norte Global. Dentro de uma lógica de criação de guerras culturais constantes, a extrema-direita passou a usar o carro como um dos principais símbolos da propriedade privada em sociedades onde os jovens estão cada vez mais precarizados e longe de serem proprietários. Depois de se culparem as feministas, o movimento sindical e os imigrantes, chegou a vez dos pedestres e ciclistas.

Uma política de transportes que vá muito além dos passes sociais, e que crie uma rede de transportes públicos realmente universal, será uma forma de substituir importações e de cumprir metas climáticas com a redução de emissões de gases efeito estufa. 

Ser atacado pela extrema-direita não torna uma ideia imediatamente útil, ou prioritária, para um projeto político de esquerda. A "cidade dos 15 minutos" é um ideal que ignora por completo o papel do espaço urbano nas disputas entre patrões e trabalhadores no mundo do trabalho. O problema é focar-se quase por completo no consumismo de proximidade. 

Anne Hidalgo, presidente da câmara de Paris e maior embaixadora política deste conceito, governa um município bastante rico de dois milhões de habitantes, inserido numa área metropolitana de 11 milhões. A cidade dos 15 minutos que Hidalgo defende depende de milhões de trabalhadores das periferias de Paris, cujas deslocações para o trabalho ultrapassam os 15 minutos. Talvez não seja surpreendente que Carlos Moedas (insuspeito de ser socialista), que governa uma cidade com dinâmicas semelhantes, tenha abraçado a cidade dos 15 minutos, pelo menos nos seus discursos de campanha. 

Em última instância, este conceito reflete o imaginário e a experiência de cidade dos mais ricos, que já vivem em zonas numa lógica de bairro, onde o local de residência dos trabalhadores desse mesmo bairro é ignorado. É o mesmo tipo de imaginário em que todos nós ambicionamos viver no Chiado ou Alvalade.

Uma política de mobilidade urbana de esquerda, como argumenta David Harvey, terá de olhar sempre para a cidade como palco de disputas entre classes, ao ser um mercado de trabalho, e um dos pilares do capitalismo. A esquerda nunca poderá reproduzir urbanisticamente a experiência de consumo da classe dominante, ignorando a própria existência de quem diz defender.

Ensaio adaptado de um outro originalmente publicado na newsletter República dos Pijamas.