O Setenta e Quatro tentou comprar comprimidos abortivos e o que descobriu foram burlas, clínicas falsas e preços exorbitantes. Contamos a história de duas mulheres em que a questão de fundo é sempre a mesma: o difícil acesso ao direito ao aborto. Dos 77 países em que é permitido abortar por opção da mulher, Portugal é um dos países com o prazo legal mais restrito.
Uma simples pesquisa na Internet, não foi preciso muito mais. Não fomos à dark web, nem houve um esforço extraordinário. Fizemos a procura que qualquer mulher pode fazer quando se depara com obstáculos para interromper a gravidez. Seja por dificuldades no acesso ao Serviço Nacional de Saúde (SNS) ou por ter ultrapassado o prazo legal das dez semanas.
“Olá, encontrei este número online, dizia que podiam ajudar a fazer um aborto”, escrevemos aos vários números de WhatsApp que prometiam ajudar mulheres a abortar. Nas conversas e pesquisas prometeram-nos a “venda de comprimidos abortivos”, “clínicas” que não existem e sites que aparentam ser “farmácias”, mas cuja veracidade foi desde logo duvidosa.
O padrão com que nos deparámos traça um aproveitamento do desespero das mulheres que procuram estes meios, recebendo em troca uma falsa sensação de segurança e a garantia de descrição. Além disso, os preços praticados são exorbitantes. E, se forem fraudes, são os alvos perfeitos: não poderão queixar-se às autoridades, pois o aborto inseguro entra no campo da ilegalidade quando ultrapassa as dez semanas ou é realizado sem acompanhamento médico e fora de um estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido.
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“De quantas semanas estás?”, responderam-nos em inglês ou português do Brasil. Foi sempre a primeira pergunta que nos fizeram e a nossa resposta alternou entre as 11 e as 12 semanas, referindo sempre que estávamos em Portugal. O objetivo era claro: dar a entender que não podíamos recorrer à saúde pública.
Nas conversas no WhatsApp deparámo-nos com uma realidade distinta da que nos é retratada no SNS. A experiência das mulheres no sistema público é caracterizada pela morosidade, estigma e falta de empatia e, por vezes, desconhecimento dos profissionais de saúde. Nestas fraudes confrontámo-nos com o oposto: termos carinhosos como “querida”, a segurança de que “sabiam o que estávamos a sentir”, a certeza de que “tudo ficaria bem” e de que a ajuda estava ali, bastava transferir o dinheiro.
Encontrámos vários tipos de esquemas. Uma “clínica” que se fazia passar pela Clínica dos Arcos, um estabelecimento de saúde privado em Lisboa. E os alertas não tardaram a soar: o português do Brasil, o pedido de pagamento em reais, várias tentativas para que enviássemos exames médicos e uma morada no Brasil. Tudo indicava que era uma fraude e, quando perguntámos o valor em euros, foram-nos pedidos 1500.
A burla mais comum que encontrámos em sites consistia na venda de comprimidos abortivos sem receita médica. O preço variava entre os 37 e os 110 euros, aos quais se acrescentavam os portes de envio. Há inclusive sites que permitem a opção de se receber os comprimidos numa “embalagem discreta”. Uns diziam ser de Portugal, apresentando nomes que poderiam ser de qualquer farmácia portuguesa, outros eram supostas “farmácias” online com envio para território nacional.
Dos cinco sites que encontrámos, e depois de uma pesquisa mais aprofundada, percebemos que três já tinham sido classificados como “não recomendados” pela Associação Nacional de Conselhos de Farmácias, entidade norte-americana que identificou até ao momento mais de 40 mil sites farmacêuticos online inseguros. Esses três estão sinalizados por não cumprirem os requerimentos farmacêuticos e de segurança.
A identificação de sites enganosos também tem sido uma preocupação nacional, e não é de agora. Em 2006, o Infarmed publicou um comunicado a alertar para o problema da venda de comprimidos abortivos online. “O comércio de medicamentos através da Internet é uma realidade em expansão e de muito difícil controlo”, escreveu a entidade pública. É que, explica, tornou-se muito difícil, num mundo globalizado, “sediar” as páginas a nível nacional, o que faz com que a sua fiscalização seja muitas vezes impossível.
Encontrámos termos carinhosos, a segurança de que “sabiam o que estávamos a sentir”, a certeza de que “tudo ficaria bem” e de que a ajuda estava ali. Contrastaram com a morosidade, o estigma e a falta de empatia do SNS.
A compra de medicamentos através da Internet é uma das principais preocupações das organizações internacionais que ajudam mulheres a abortar, alertando para os riscos para a saúde. “Cuidado com essas páginas - são fraudulentas, podem prejudicar a sua saúde, e não ajudam a interromper a gravidez”, escreveu a Women on Waves (WoW), organização holandesa sem fins lucrativos. A organização conseguiu provar que vários sites não enviam quaisquer comprimidos e os que o fazem enviam fármacos que não são abortivos. Houve até casos em que é usado o nome (e o prestígio) da organização, e outros em que são “vendidas” injeções abortivas, o que não está, diz a WoW, “disponível para seres humanos”.
Também a Women on Web, organização sem fins lucrativos canadiana, alerta para este problema. Perguntámos-lhe se recebia reclamações de fraudes em Portugal, mas garantiu-nos que não. Há, no entanto, muitos sites e fraudes em língua portuguesa, sendo a maioria proveniente do Brasil, disponibilizando-nos uma lista de 171 páginas e contactos que comprovaram ser falsos.
Já na venda de comprimidos feita através do WhatsApp, a abordagem e a forma de operar é bastante semelhante. Percebemos isso ao falar com três burlões que diziam enviar os fármacos para Portugal. A conversa era toda em inglês, com “um médico” ou mulheres que “nos queriam ajudar”, fizeram um esforço para “provar” que não era fraude, recebemos capturas de ecrã de conversas com “outras mulheres que teriam comprado” e fotografias das “embalagens enviadas para Portugal”.
Desta vez, o valor que nos pediram variava entre os 250 e os 350 euros e a transferência seria feita via Western Union, empresa de serviços financeiros que permite trocas monetárias. Na conversa mais aprofundada, cumprimos com quase todos os passos necessários para fazer a transferência. O dinheiro seria enviado para a República dos Camarões, na África Central. Pediram-nos para referir ser “uma prenda para uma amiga” e selecionar a opção de levantar o dinheiro numa loja da empresa, ao invés de ir diretamente para uma conta bancária.
Além disso, foi-nos descrito todo o processo. Os comprimidos seriam enviados dentro de uma caixa de telemóvel, para simular a compra do aparelho eletrónico. Desta forma, argumentaram, garantir-se-ia que o seu envio seria imperceptível na alfândega. Também nos foram enviadas imagens a explicar como fazer o aborto e dos comprimidos que iríamos receber, que correspondiam aos aconselhados pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
A escolha pelo aborto medicamentoso “começa a ser uma grande maioria ou quase a totalidade” dos abortos inseguros, diz-nos a médica de família Mara Carvalho. É uma realidade que também se vê quando olhamos para a interrupção voluntária da gravidez no SNS. No relatório de análise preliminar dos registos das interrupções da gravidez da Direção-Geral de Saúde, referindo-se aos anos 2018 a 2021, a preferência por este método clínico nas unidades de saúde públicas foi superior a 97%.
Não é, no entanto, o único método disponível em Portugal. O SNS permite a IVG através de dois procedimentos: o cirúrgico e o medicamentoso. O método cirúrgico consiste “na aspiração do conteúdo uterino, com uma sonda plástica, sob anestesia geral ou local”, lê-se na Associação para o Planeamento da Família (APF).
Já o método medicamentoso consiste, tal como o nome indica, na toma de fármacos que interrompem a gravidez. Há dois fármacos: a mifepristona e o misoprostol. A mifepristona bloqueia a hormona responsável pela manutenção da gravidez - a progesterona - e é tomada sob a forma de comprimido no estabelecimento de saúde. Na consulta, a mulher também recebe o misoprostol, que deve ser tomado dois dias depois, seja por via bucal (derretido na bochecha) ou vaginal. O misoprostol provoca contrações do útero, causando hemorragia e a expulsão do feto.
Este método, além de ser a preferência no SNS, é bastante seguro. O uso combinado destes dois fármacos é “o procedimento mais praticado em todo o mundo e recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS)”, lê-se na circular normativa da Direção-Geral de Saúde, de 2007. A norma afirma que este método tem uma eficácia de 98% até às nove semanas de gestação e que apenas 2 a 5% das mulheres precisam de um procedimento cirúrgico.
Estudos mais recentes mostram como este método é seguro durante o primeiro trimestre de gravidez, isto é, até às 13 semanas de gestação. Para o comprovar, o The New York Times analisou 101 estudos que no total examinaram mais de 124 mil abortos, em 30 anos (de 1991 a 2023) e em 26 países. “A grande maioria relata que mais de 99% das pacientes que tomaram os comprimidos não tiveram complicações sérias”, escreveu o jornal norte-americano.
"Na aquisição de medicação no mercado negro, na Internet, ou noutros sítios, a segurança dos medicamentos está em causa. As pessoas podem achar que estão a comprar uma coisa e estão a comprar outra”, explica a médica de família Mara Carvalho.
A eficácia de que os estudos falam refere-se à toma combinada dos dois medicamentos. No entanto, o habitual no aborto inseguro é o uso de apenas um dos fármacos. Isto porque a mifepristona só é usada em contexto hospitalar, estando fora da circulação comercial, enquanto o misoprostol é de fácil acesso ao ser vendido em farmácias e estar na composição de outros medicamentos, como acontece com alguns dos fármacos para problemas nas articulações.
Foi exatamente o que Cecília fez para terminar a sua gravidez indesejada. Na altura com 24 anos, relembra como “entrou em contato com o suposto pai”, que não lhe “deu muito suporte”. A jovem brasileira residente em Portugal tinha a decisão tomada, mas não sabia como pôr fim à sua gravidez. “Fiz longas pesquisas na Internet para saber quais eram as formas de fazer mais seguras”, conta.
Nas suas pesquisas encontrou a informação de que poderia abortar com o medicamento para os problemas nas articulações. “O suposto pai tinha um problema no joelho e eu falei ‘você se vira e vai no médico que com receita consegue [o medicamento] e resolve a minha situação'”, recorda. Mas, enquanto esperava para saber se conseguiria o medicamento, continuou à procura de outras soluções. “Já estava na ansiedade de que precisava de fazer tudo o quanto antes, que é mais seguro”, explica. “Ele até conseguiu o remédio, mas eu já tinha comprado”, acrescenta.
Conseguiu o contacto de uma pessoa que vendia substâncias ilegais. “Comprei o medicamento sem a receita, mas, na altura, o que ele comprou por três euros a caixa, eu comprei por 120”, conta. Foi no WhatsApp que fez a compra e que teve o acompanhamento dessa mesma pessoa. Foi-lhe explicado por mensagem o procedimento e dadas instruções, mas acabou por seguir as que encontrou na Internet: pôs quatro comprimidos debaixo da língua até que se dissolvessem. Repetiu o processo até ter tomado 12.
Fez o procedimento à noite e quando acordou enviou mensagem para saber se teria feito tudo bem. “Em princípio você fez tudo certo, pode ficar tranquila”, diz ter recebido como resposta. Nunca duvidou da segurança dos medicamentos, uma vez que comprou a um “farmacêutico ou a alguém [que trabalhava] dentro da farmácia”. Recebeu pelo correio um “kitzinho para fazer tudo certo”, com “o remédio necessário, mais o antibiótico e o remédio para dor”. Todos os medicamentos vinham dentro da embalagem e com a devida validade.
A experiência de Cecília contrasta com a de Francisca. Com 39 anos e imigrada em Portugal desde o ano passado, Francisca quase se viu forçada a fazer um aborto inseguro. Teve uma gravidez com uma malformação congénita em que o feto se mostrou inviável. Na segunda ecografia já sabia que o feto não tinha o cérebro, nem os olhos formados, nem o osso nasal. “Dificilmente teria alguma vida”, explica. No entanto, os atrasos, a falta de vagas e de respostas dos serviços de saúde fizeram com que a sua decisão de abortar fosse atrasada quase um mês.
O motivo da espera foi um exame que comprovasse a malformação congénita, para que depois, e de acordo com a lei, pudesse avançar com a interrupção da gravidez. Nestes casos, a gravidez pode ser interrompida até às 24 semanas. Francisca recorda-se que uma das respostas que mais a chocou foi que tinha de esperar duas semanas pelo exame, porque vinha a “semana de Carnaval”, razão para não haver “ninguém para o fazer”. “Depois de [o médico] me responder isso, disse-me que 'duas semanas não fazem diferença’. Talvez para ele, que não estava grávido com um bebé sem cérebro, sem olhos, não fizesse [diferença], mas para mim fazia.”
Estes atrasos levaram Francisca a contactar a Women Help Women (WHW), organização sem fins lucrativos que apoia mulheres a aceder ao aborto. “Peço encarecidamente que me ajudem a ter acesso ao remédio”, escreveu na troca de e-mails a que tivemos acesso. A organização começou por lhe explicar a situação legal em Portugal e, só depois de Francisca expor a sua situação e enviar os exames médicos, para serem vistos pela equipa médica da WHW, é que a organização aceitou ajudá-la.
Foi-lhe pedido que fizesse uma doação de 75 euros para uma “fundação independente” chamada Women's Wallet, “que apoia o ativismo em prol dos direitos sexuais reprodutivos”, explicaram no e-mail. Esta é uma prática habitual nas organizações que apoiam mulheres a abortar. A Women On Web faz o mesmo, explicando no seu site que os comprimidos custam entre 70 a 90 euros e referindo que, caso a pessoa estiver numa “situação financeira complicada”, a ajudarão na mesma.
Francisca fez a doação e esperou que lhe fosse enviado para casa um envelope não identificado. Quando o recebeu, o conteúdo deixou-a surpreendida e desconfiada: era um pequeno saco de plástico transparente com zíper, e lá dentro estavam 13 comprimidos brancos soltos e sem qualquer tipo de identificação. “Podia ser veneno de ratos”, brinca. “Não que fosse, mas eu não conheço o suficiente para ter certeza de que aquilo era o remédio.”
A desconfiança fez com que acabasse por não tomar os comprimidos. Ponderou regressar ao Brasil, onde já tinha feito um aborto inseguro, ou mesmo dirigir-se a outro país. Mas, antes de decidir, optou por pedir ajuda num grupo de mulheres no Facebook, acabando por conseguir uma vaga para o exame. “E na sequência a enfermeira marcou para eu ir na semana seguinte receber o remédio [abortivo]”, conta.
Mas tudo poderia ter sido diferente. Francisca poderia ter tomado os comprimidos e, eventualmente, ter complicações. O aborto medicamentoso é seguro, e pode ser realizado em casa, com o devido acompanhamento médico. No entanto, quando se trata de um aborto inseguro, existem riscos que nem sempre são aparentes.
Há falta de dados nacionais sobre complicações em consequência da interrupção da gravidez. O último relatório da DGS registou 75 abortos incompletos num total de 88 considerados inseguros.
Tal como as ONG’s, os especialistas com quem conversamos concordam que a facilidade no acesso e na compra destes comprimidos é um dos perigos primordiais. “Na aquisição de medicação no mercado negro, na Internet, ou noutros sítios, a segurança dos medicamentos está em causa. As pessoas podem achar que estão a comprar uma coisa e estão a comprar outra”, explica a médica de família Mara Carvalho. Além disso, a profissional alerta que as condições em que o medicamento é guardado também podem ter impacto.
O misoprostol precisa de estar dentro de uma embalagem de blister, isto é, o pequeno compartimento onde são condicionados os comprimidos, explica a farmacêutica Inês Diogo. O medicamento não perde “automaticamente a eficácia”, mas a sua “distribuição dentro do organismo” pode não ser a “100%”. “Se vêm dentro de um saco até pode ser farinha compactada, nada garante que aquele medicamento está corretamente fabricado, nem quem o fabricou”, acrescenta.
Também as condições de envio podem ter impacto na eficácia. “A temperatura e a humidade fora de controlo são potenciais fatores para que não possamos garantir a toma segura, eficaz e correta”, explica o farmacêutico Daniel Baltazar. Esta falta de condições pode ainda levar à “alteração de componentes na formulação que não garantem qualidade e que podem causar efeitos adversos sempre inesperados.”
Outro dos riscos deve-se à toma apenas do misoprostol, que é habitual em situações de aborto inseguro. Quando administrado isoladamente, o aborto dura mais tempo, é mais doloroso e aumenta a probabilidade de complicações, diz a Direção-Geral de Saúde. A eficácia baixa para os 85%, acrescenta a Women on Web. E há maiores probabilidades de dar origem a um aborto incompleto, explicou-nos Mara Carvalho.
O aborto incompleto acontece quando o conteúdo do útero não é totalmente expulso, e é um dos riscos mais comuns do aborto. Quando não tem o devido tratamento este pode dar origem a problemas mais graves. Como “à possibilidade de uma infeção ascendente e uma infertilidade futura”, esclarece-nos Ana Campos, médica obstetra e ginecologista.
Há falta de dados nacionais sobre as complicações devido à interrupção da gravidez. O último relatório da DGS com números é referente a 2013/2014, quando houve 75 abortos incompletos num total de 88 considerados inseguros. Nas interrupções de gravidez num serviço de saúde, os números dividem-se entre os casos até às dez semanas e os com mais semanas. No primeiro houve 1137 abortos incompletos em 1592 casos em que ocorreram complicações, enquanto nos segundos registaram-se 301 casos em 2049.
“Não há nenhuma obrigação para que as mulheres tenham de ir para o hospital. Tornar o aborto num procedimento mais simples, acessível e de proximidade, seria importante”, explica o especialista Miguel Areosa Feio.
Além dos riscos físicos, há ainda impactos psicológicos. “Eu não tinha com quem falar e na altura não estava a fazer terapia”, conta Cecília. “Era muito difícil digerir tudo, por mais que tivesse certeza do que queria e achasse certo. Para qualquer pessoa que eu falasse, ainda tinha um medo do julgamento, de um olhar diferente. Então passei muito do processo sozinha.” Cecília recorda-se de como na noite que fez o aborto inseguro sentiu “muito stress e ansiedade” por causa da incerteza sobre o que deveria fazer e como fazer.
Cada caso é diferente, esclarece Paula Pinto, psicóloga da Associação para o Planeamento da Família (APF). No entanto, o “stress e ansiedade adicional” são as consequências psicológicas mais comuns por causa da hesitação em relação aos comprimidos ou ao procedimento em si. “Posteriormente, o sentir que o processo não está bem terminado poderá ser outro aspeto favorável a causar insegurança e ansiedade”, explica a psicóloga.
Também o facto de se “estar a incorrer numa ilegalidade”, o “estigma” associado e a possibilidade de existirem “consequências negativas” podem influenciar, salienta Pinto. A este contexto acresce o facto de o acompanhamento psicológico não estar garantido, ao contrário do que acontece quando o procedimento é no SNS, onde a mulher o pode pedir. É esta “garantia da integridade física e psicológica” que, apesar de depender de cada mulher, pode criar as condições para que mais facilmente consiga “continuar com a sua vida”, acrescenta a psicóloga.
Em Portugal, a interrupção voluntária da gravidez é permitida até às dez semanas, mas porque não até às 12 ou mais? “A primeira vez que a questão do aborto foi disputada na Assembleia da República, nos anos 1990, foi votada pelos deputados, e chumbou por um voto”, recorda Miguel Areosa Feio, autor da tese de mestrado “Lei do aborto em Portugal: barreiras atuais e desafios futuros”. O projeto-lei da Juventude Socialista estipulava as 12 semanas, mas, ao ser revista, o limite temporal foi diminuído para as dez, e foi assim que se manteve quando foi a referendo em 2007, ganhando o “sim”.
Dos 77 países em que é permitido abortar por opção da mulher, Portugal é um dos países com o prazo legal mais restrito. O limite gestacional mais comum destes países são as 12 semanas, como se pode ver no mapa “Leis do Aborto no Mundo” do Center for Reproductive Rights.
Os obstáculos (poucas unidades de saúde que o fazem, estando concentradas em Lisboa; muitos médicos objetores de consciência, atrasos na marcação) com que as mulheres se deparam e o limitado prazo legal fazem com que muitas mulheres se vejam impedidas de pôr termo à sua gravidez, recorrendo ao aborto inseguro.
O facto de se “estar a incorrer numa ilegalidade”, o “estigma” associado e a possibilidade de existirem “consequências negativas” podem causar “stress e ansiedade adicional” a quem recorre ao aborto inseguro.
Só em 2022 houve 1366 mulheres que foram a uma consulta prévia e acabaram por não fazer uma IVG por as suas gravidezes terem ultrapassado o prazo legalmente estabelecido, de acordo com dados da Entidade Reguladora da Saúde. Nesse ano foram realizados 15 616 IVG, havendo uma subida de 14% em comparação com o ano anterior.
“As mulheres descobrem tendencialmente que estão grávidas por volta das seis ou sete semanas”, explica Areosa Feio, que trabalhou vários anos na Associação para o Planeamento da Família (APF). Descobrem-no mais tarde por terem “ciclos menstruais mais irregulares” ou “um desconhecimento do próprio corpo”, aliado a uma fraca literacia sexual.
Há, então, várias soluções apontadas para melhorar o acesso à IVG. Olhando para o exemplo da vizinha Espanha, a interrupção por opção da mulher é permitida até às 14 semanas. Além disso, o país regulamentou recentemente a objeção de consciência dos profissionais de saúde para garantir que há sempre médicos e enfermeiros disponíveis para este procedimento clínico na saúde pública.
Porque não segue Portugal este exemplo? Por causa do medo de um retrocesso e da ideia de que a luta pela lei do aborto está terminada, argumenta Carolina Monteiro. “Foi muito difícil conseguir a lei do aborto. Parece que a partir do momento em que houve uma lei, ninguém quis mais saber sobre o estado da sua aplicabilidade, de como funciona”, defende a mestranda em Medicina.
Existe ainda a ideia de que “é melhor não se mexer, para não estragar”, acrescenta Miguel Areosa Feio. “Do ponto de vista de quem conquistou este direito, é muito difícil mexer no tema, porque há sempre o receio de que as coisas possam voltar para trás”. O especialista em Políticas Públicas relembra que a penúltima alteração à lei, em 2015, foi um retrocesso ao impor o acompanhamento psicológico obrigatório, a obrigatoriedade de as mulheres verem a ecografia do feto e o pagamento de taxas moderadoras. Mas, também em 2015, já com a Geringonça, a lei voltou a ser alterada, retirando estas imposições.
Uma das soluções apontadas para contornar a falta de unidades de saúde e de médicos que fazem IVG é o aborto passar também a ser feito pelos cuidados de saúde primários, como já aconteceu no Centro de Saúde de Amarante. O próprio ministro da Saúde, Manuel Pizarro, já admitiu essa possibilidade. “Não há nenhuma obrigação para que as mulheres tenham de ir para o hospital. Tornar o aborto num procedimento mais simples, acessível e de proximidade, seria importante”, salienta Areosa Feio.
Já a OMS diz nas suas diretrizes que o aborto medicamentoso pode ser autoadministrado no início da gravidez, isto é, pode ser feito pela própria mulher ou pessoa grávida em sua casa sem ser supervisionado por um profissional de saúde. Para o justificar, a organização internacional aponta a falta de profissionais e as dificuldades em aceder a este tratamento, mesmo nos países em que está disponível.
“Foi muito difícil conseguir a lei do aborto. A partir desse momento, ninguém quis mais saber sobre o estado da sua aplicabilidade”, defende Carolina Monteiro.
As principais vantagens são os custos mais reduzidos, a liberdade de escolher quando se faz, a redução das deslocações das mulheres, a capacidade de gerir o estigma e ser mais rápido terminar-se uma gravidez indesejada. Acresce ainda a possibilidade de a própria pessoa estar em controlo do seu processo abortivo, dando-lhe mais conforto e apoio.
Esta posição é também defendida pela Women Help Women. “A crença de que o aborto medicamentoso só é seguro quando diretamente supervisionado por médicos num estabelecimento médico é estigmatizante, retira o poder [à mulher/pessoa grávida] e muitas vezes consome recursos financeiros e humanos desnecessários ao Estado”, salienta.
Acrescentam que Portugal apesar de ter “leis progressistas” sobre o aborto, “não segue as mais recentes recomendações científicas” da OMS. Cada vez aparecem mais casos em que as leis “resultam na punição e criminalização, especialmente dos mais desfavorecidos. Criam barreiras onde o acesso simples, fácil e seguro podia ser garantido".
Todos os nomes das mulheres que partilharam a sua história com o Setenta e Quatro são fictícios por causa do estigma e ilegalidade ao qual o aborto inseguro é remetido.