Karina lembrou o dia em que o filho foi torturado na esquadra da Rua da Palma com um protesto simbólico. Alice e Luísa homenagearam os filhos com coroas de flores à porta do Estabelecimento Prisional de Lisboa, onde eles morreram na mesma madrugada. Os três têm algo em comum: foram fortemente medicados enquanto cumpriam pena naquela prisão.
Vai fazer um mês que Karina de Paulo saiu de casa, a meio da manhã, carregando uma larga cartolina enrolada sob o braço. Acompanhava-a uma amiga. Pelas onze da manhã de 17 de novembro, chegaram à porta da 2ª Esquadra da Polícia de Segurança Pública, na Rua da Palma, à beira da Praça do Martim Moniz. Na cartolina branca Karina havia escrito um pequeno texto: “Há um ano meu filho ficou assim depois de seis horas em poder dos agentes policiais da esquadra do Martim Moniz. Eles podem ter-se esquecido. Eu, mãe, não”.
“Assim” remetia para as quatro fotografias que mostravam as várias lesões no corpo do seu filho, Rubens Prates, depois de passar pelo que Karina já nos havia descrito antes como “um dia de inferno”. “Faz exatamente hoje um ano que o meu filho foi apanhado no Poço do Borratém por policiais da esquadra do Martim Moniz”, relembrou a mãe do jovem de 19 anos. “Estava à espera para entrar no gabinete da junta de freguesia para uma entrevista de emprego. Foi trazido para aqui e foi espancado, tanto nu como vestido.”
Resumidamente, foi assim que se passou. Pelo menos nas primeiras oito horas. Rubens ainda foi parar à esquadra de Moscavide antes de ser visto no Hospital de São José, onde a mãe o encontrou sentado numa cadeira de rodas e medicado com um calmante e um antipsicótico. Também lhe limparam as feridas e fizeram um raio-x ao braço que um bombeiro havia entalado antes por suspeitar que estivesse partido. Voltou para os calabouços de Moscavide e passou lá a noite. Na manhã de 18 foi presente a juiz (tinha haxixe nos bolsos quando foi atirado ao chão e algemado na manhã anterior) e saiu em liberdade.
Sofreu vários episódios de perseguição e assédio policial desde esse dia até março deste ano. Dois deles acabaram com o jovem a ser levado para uma esquadra sem justificação outra que não fosse averiguar a sua “permanência em território nacional”. Hoje, Rubens já não vive com a mãe e trabalha na construção civil. “Em homenagem a ele, vim aqui relembrar a estes policiais o que eles fizeram, porque já passou um ano e eles podem ter esquecido”, explica Karina, sardonicamente, “pois talvez já tenham enchido outros de porrada, entretanto”. A sua expressão fecha: “mas fui eu que trouxe o Rubens ao mundo, então eu não esqueço”.
Na madrugada de 4 de janeiro de 2022, Rubens foi apanhado em flagrante delito com três telemóveis roubados. No dia seguinte, o juiz Carlos Alexandre ordenou-lhe a prisão preventiva.
Foi uma manhã cinzenta, daquelas em que tudo parece descolorido, sem sombras, mas não fazia frio. Pouco depois de se prostrar em frente à esquadra com a sua amiga, um agente veio dizer a Karina que ela deveria “era ir para a frente do Ministério Público”. No adro da esquadra juntou-se uma meia dúzia de agentes inquietos. Um deles, em nome do seu supervisor, veio transmitir a mensagem de que não podiam estar ali. Outro agente espreitava de dentro da esquadra pela janela, afastando uma cortina com as costas da mão. Disseram-lhes que estavam “a bloquear a passagem dos veículos” e que estarem “ali no passeio frente à esquadra era considerado uma manifestação”. Então, passaram para o outro lado da rua.
Karina passou a seguinte hora e meia a interpelar quem passava, em português e inglês: “the police did this to my son, one year ago”. Alguns paravam para ler, outros, não percebendo bem, tentavam dar a Karina algumas moedas. Um dos objetivos deste ato simbólico, como lhe chamou, é “tentar agilizar o processo na justiça”. Há quase um ano que foi feita a queixa-crime e o Ministério Público abriu entretanto um inquérito ao sucedido. Na queixa são denunciados os crimes de ofensa à integridade física qualificada, abuso de autoridade, injúria, ameaça, coação, tortura e dano. São também requeridas as imagens de videovigilância da esquadra e a escala de serviço daquele 17 de novembro. Um ano depois, Karina ainda não teve quaisquer notícias do Ministério Público.
Pouco antes de decidir enrolar a cartolina e pôr-se a caminho do trabalho, Karina foi interpelada por um homem que afirmou reconhecer Rubens. No início de 2022, tinham passado algum tempo juntos no Estabelecimento Prisional de Lisboa (EPL). Na madrugada de 4 de janeiro de 2022, Rubens foi apanhado em flagrante delito com três telemóveis roubados. No dia seguinte, o juiz Carlos Alexandre ordenou-lhe a prisão preventiva. Saiu em finais de abril, com mais de três anos de pena suspensa. “É um bom rapaz”, disse o homem, “portava-se bem”. Ficou feliz por saber que Rubens estava bem, saudável, e a trabalhar. Gabou Karina e o seu ato memorial de protesto: “já vou daqui com o meu dia melhor”.
No início deste ano havia 12.128 pessoas encarceradas em Portugal, segundo dados da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRS). Cerca de 2400 dessas pessoas estavam em prisão preventiva e 811 tinham entre 16 e 24 anos. Uma larga maioria da população prisional, cerca de 80%, tinha apenas o ensino básico. Mais de 300 não sabiam ler nem escrever.
Um relatório publicado em dezembro de 2022 pela Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados (CDHOA) apurou que um terço das prisões portuguesas estão sobrelotadas e que “o Estabelecimento prisional em estado de maior sobrelotação encontra-se a 175% da sua capacidade”. Sobre o EPL, o relatório diz que esta prisão “possui uma previsão para lotação de aproximadamente 887 reclusos, sendo que a população prisional oscila, em média, na casa dos 1200 reclusos”.
Nas visitas a estabelecimentos prisionais de todo o país (incluindo as ilhas), “foi possível apurar violações de Direitos Humanos, bem como violações aos Princípios Internacionais dos Tratamento dos Reclusos”, lê-se nas conclusões do relatório. E nota-se que “o Estado Português tem sido sucessivamente condenado pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos por violações dos Direitos Humanos e da dignidade dos reclusos”, como sobrelotações, falta de luz natural, falta de contacto com o mundo exterior, restrições de acesso a água quente, restrições de acesso a atividades de lazer ou educação ou infestações de insetos e roedores.
Este mês, o Estado português foi multado em €70 mil na sequência de cinco casos apresentados ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, alguns deles relativos a condições de detenção insalubres. Um relatório do Comité Europeu para a Prevenção da Tortura, divulgado esta semana, confirma-o: "os presos vivem numa situação degradante em celas sujas" e há “janelas partidas, casas de banho repartidas, celas sobreocupadas e instalação elétrica a funcionar mal”.
A Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados considera que a sobrelotação das prisões “muito se deve ao excesso de prisão preventiva”, notando que o tempo médio de prisão preventiva em Portugal é de dois anos, sendo que a média europeia fica nos oito meses. Nas recomendações do relatório destaca-se a necessidade de “dar especial atenção aos problemas de saúde mental, qualificando os gabinetes médicos com profissionais especializados nestas áreas”.
Um relatório publicado em dezembro de 2022 pela Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados (CDHOA) apurou que um terço das prisões portuguesas estão sobrelotadas.
A história de Rubens é estranhamente semelhante à de Danijoy Pontes em tudo menos no desfecho. Depois de ser detido em flagrante delito, Danijoy passou 11 meses em prisão preventiva até o condenarem, enfim, a seis anos de prisão efetiva por roubar telemóveis em transportes públicos, apesar de não ter cadastro.
Pouco depois da condenação, morreu na madrugada de 15 de setembro de 2021 numa cela do EPL. Tinha 23 anos. As perícias ao seu sangue acusaram a presença de valproato (usado para tratar epilepsias e transtornos bipolares), nordazepam e diazepam (benzodiazepinas usadas como ansiolíticos e sedativos) e metadona (opióide usado no tratamento da dependência em heroína). A causa da morte terá sido um enfarte.
A investigação da Polícia Judiciária (PJ) explica que a metadona terá sido obtida por Danijoy via “canais ilícitos que se sabe existirem nos estabelecimentos prisionais”. As restantes substâncias seriam uma terapêutica prescrita por uma médica psiquiatra, para tratar as alucinações que Danjoy afirmava ter. Tanto a mãe, Alice Pontes, como o Instituto de Medicina Legal, onde foi visto após afirmar em tribunal que ouvia vozes, negam que o jovem sofresse de qualquer transtorno psiquiátrico.
Na mesma madrugada, na mesma prisão, morreu Daniel Rodrigues, de 37 anos. A autópsia levou a determinar a sua morte como natural: terá sido vítima de um acidente vascular cerebral (AVC). No seu sangue tinha exatamente as mesmas substâncias que Danijoy. Estava preso desde 22 de dezembro de 2020 e a mãe, Luísa Santos, garante que o filho não tinha qualquer transtorno que justificasse a medicação que tomava. E não deixa de estranhar que no relatório não venha o nome do medicamento anticoagulante que o filho deveria tomar: já sofrera antes um AVC e tinha uma válvula aorta prostética.
“Que psiquiatra prescreveu aqueles medicamentos?”, questiona Luísa, na vigília frente ao EPL que marcou o segundo aniversário das duas mortes, na manhã do passado dia 15 de setembro. “O Daniel não tinha esse medicamento no estômago, mas ele tinha perfeita noção de que se não tomasse esse medicamento poderia voltar a ter um AVC.” Um pouco antes, Alice também já havia dito algo semelhante, exasperada: “o meu filho não tinha epilepsia, não tinha problemas mentais.
A juíza condenou-o e ainda disse que ele tinha mentido em tribunal, que não ouvia vozes nenhumas. Encheram o meu filho de medicamentos. Porquê?”. Ambas sofrem com tantas perguntas sem resposta. E as dadas pelas autópsias e pelo relatório da PJ não lhes parecem suficientes, nem plausíveis. Até porque há indícios que consideram ter sido ignorados.
Luísa recorda os telefonemas nervosos do filho, que constantemente afirmava estar a ser pressionado para guardar contrabando na sua cela: droga e telemóveis. Daniel nunca especificou quem o pressionava, mas um dia ter-lhe-á dito: “qualquer dia apareço morto”. Alice já havia dito que Danijoy “chegou a sentir-se perseguido, tendo-lhe feito queixa de um guarda prisional cujo nome prefere não mencionar para não sofrer represálias”.
Luísa diz não ter tido qualquer resposta aos telefonemas que fazia, nem aos e-mails que enviava à diretora da prisão, temendo pela vida do filho. Daniel relatava-lhe que se sentia “a ficar cego” e sem energia, sempre a ir contra os outros reclusos. “Quando fui ao julgamento, a 7 de setembro, o Daniel tinha os olhos completamente fechados”, lembra com suspeita.
Cerca de 30 pessoas juntaram-se a Alice e a Luísa nessa vigília em memória de Danijoy e Daniel. A manhã estava soalheira, mas os semblantes pesavam. Alguns abdicaram de quebrar o jejum para estar ali a horas. Uma grande faixa disposta por várias mãos em direção à prisão e às cabeças que pelas janelas espreitavam dizia: “Entraram vivos e saíram mortos. Queremos justiça já”. Entre as dezenas de pessoas estava Karina, mãe de Rubens. Era o seu próprio aniversário. Recorda com rancor as vezes em que entrou no EPL pela portinhola da delgada torre ameada, a lembrar um forte, para visitar o filho.
Foi maltratada de diversas maneiras. Num dia em que foi sozinha, um guarda prisional obrigou-a a despir o sutiã, argumentando que o arame da peça estaria a espoletar o detetor de metais e que era obrigatório despi-lo. Também não sabe quem medicou o filho na prisão, nem que medicamentos ele tomava. Sabe que começaram a dar-lhe calmantes “sem perguntas”. Notava a voz arrastada e o raciocínio lento do filho quando falavam ao telefone: “ele só bocejava e dizia ‘está bem’”.
“[Os guardas] Abriram-me a boca à força”, afirma Rubens. A enfermeira ter-lhe-á dito que os medicamentos serviam para ele se acalmar. Resultaram. Rubens lembra-se de passar as três semanas seguintes a dormir entre refeições.
Rubens lembra-se de uma pergunta, pelo menos. Uma enfermeira ter-lhe-á perguntado se ele tinha algum problema de saúde. Falou-lhe do distúrbio de ansiedade diagnosticado em criança. No dia seguinte, diz, guardas vieram dar-lhe medicação. Rubens negou-se a tomar os comprimidos. Um dos guardas terá insistido e Rubens desafiou-o: "vem cá dá-los, então". “Ele entrou, mandou-me virar para a parede com as mãos na cabeça e começou a dar-me socos nos rins”. O corpo de Rubens cedeu, mas nesse dia não tomou a medicação. “Vê se te acalmas, se continuas assim morres aqui dentro”, terá avisado um dos guardas.
Da segunda vez, vieram três guardas. “Abriram-me a boca à força”, afirma Rubens. A enfermeira ter-lhe-á dito que os medicamentos serviam para ele se acalmar. E resultaram. Rubens lembra-se de passar as três semanas seguintes a dormir entre refeições. Estávamos em plena pandemia e os reclusos tinham direito a apenas dez minutos de ar livre por dia. “Os guardas acordavam-me para ir ao pátio, eu dizia que não queria ir e ficava a dormir, trancado na cela.”
Ao fim dessas semanas, começou a sentir-se mais desperto e a notar o que havia à sua volta. “Havia bué pessoas a tomar medicação, tudo calmantes. Muitos eram obrigados a tomar injeções de Largactil [nome comercial da clorpromazina, sedativo antipisótico usado no tratamento da esquizofrenia], amarrados pelos guardas”.
Para encontrarmos menção ao uso de medicação como método de contenção ou controlo de reclusos, precisamos de consultar o relatório sobre as condições nas prisões portuguesas elaborado em 2013, por António Dores, Nuno Pontes e Ricardo Loureiro para o Observatório Europeu de Prisões. O documento refere a existência de “contenção química indiscriminada” de “reclusos cujo comportamento se tornou intolerável”, ao mesmo tempo que salienta que pouco é feito para atender às necessidades de reclusos com doenças mentais.
Os reclusos são medicados, nas prisões portuguesas, com sedativos e antipsicóticos de “forma sistemática e organizada”, reitera António Dores, sociólogo abolicionista, em entrevista ao Setenta e Quatro. “Em tempos, a maior despesa dos serviços prisionais eram os psicotrópicos, que eram dados para complementar as doses de drogas que entram ilegalmente na prisão”, refere. A medicação serve, então, como ferramenta para deixar os reclusos “paralisados” e “manter a ordem dentro da cadeia”.
A contenção química é citada como um dos principais meios de contenção de reclusos, a par da algemagem e da força bruta. Mykola Gnatovskyy, atualmente juiz do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e antigo membro do comité anti-tortura do Conselho Europeu, afirmou numa entrevista em 2016 ter visto “médicos prisionais prescreverem quantidades enormes de medicamentos psicotrópicos, basicamente para manter as pessoas sossegadas”.
Uma noite, Rubens reconheceu a voz de um recluso que gritou “calma, já estou no chão!”. “E depois só ouvi gritos de dor e insultos”, recorda. No dia seguinte, “apareceu todo inchado”. “Os guardas davam porrada à toa, mas batiam mais se alguém fosse apanhado a fumar ou com um telemóvel.”
O relatório de 2022 do Mecanismo Nacional de Prevenção (MNP), entidade independente da Provedoria da Justiça, nota incongruências nos registos de lesões de reclusos, “na sequência de utilização de meios coercivos”. As discrepâncias verificam-se nos registos das “lesões observadas, num mesmo recluso, por elementos de segurança e por elementos dos serviços clínicos”.
Um dos exemplos vem da prisão de Vale de Judeus, em Alcoentre. Num processo consultado pelo MNP, o guarda prisional que registou as lesões de um recluso referiu que este tinha apenas uma “pequena escoriação no pé esquerdo” e uma “ferida abrasiva no joelho esquerdo”. Já os serviços clínicos reportaram, “além dessas, lesões significativamente superiores, entre as quais, ‘dois hematomas na cabeça e ligeira equimose no olho direito’”.
A isto acrescem vários relatos de agressões e maus-tratos a reclusos por parte de guardas prisionais nas prisões de Chaves, Porto, Vale de Judeus e Monsanto, considerados “consistentes” pelo MNP e “corroborados” por outros reclusos. O relatório faz notar que estas queixas e alegações não são tratadas de maneira sistémica: “não há um procedimento uniformizado para queixas de agressão” e “não são instaurados inquéritos próprios”, ficando as queixas enterradas dentro de outros processos. Nas prisões do Porto, Vale de Judeus e Monsanto, o relatório repara que “o número de processos de inquérito por agressão pareceu bastante reduzido quando comparado com o volume de alegações de maus-tratos”.
Mykola Gnatovskyy, juiz do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, afirmou ter visto “médicos prisionais prescreverem quantidades enormes de medicamentos psicotrópicos, basicamente para manter as pessoas sossegadas”.
Como no ano passado, Alice e Luísa depositaram duas coroas de flores nos portões do EPL, em memória dos seus filhos. Sob o olhar de meia dúzia de agentes da PSP destacados para vigiar a vigília e garantir a manutenção da ordem pública (“estamos aqui para vos ajudar”, disse um agente, enquanto outro contava cabeças), um filho de Alice, irmão de Danijoy, transmitiu num live a singela cerimónia e algumas palavras que as mães não quiseram deixar por dizer. “Em dois anos, a diretora da cadeia, a responsável da prisão, nunca pensou em marcar um encontro connosco, nem sequer para nos mentir”, lamenta Alice.
Antes de tudo isso, uma excursão de cerca de 30 pessoas entrou na prisão. Eram investigadores de diversos países europeus, que participavam numa visita ao EPL dinamizada, segundo uma investigadora italiana que confundiu a vigília com a excursão, pela Innovative Prison Systems (IPS). A IPS define-se como “empresa de investigação e consultoria especializada no domínio da justiça e dos serviços penitenciários”, cuja missão é “promover a excelência e a eficiência dos sistemas judiciais e penitenciários, fornecendo aconselhamento, serviços e produtos”. Em vez de encarar os problemas sistémicos ou essenciais do funcionamento das prisões, o foco parece estar em torná-las mais cost-effective.
O já citado relatório do comité anti-tortura do Conselho Europeu, elaborado este ano e publicado esta semana com base em visitas feitas em maio e junho a diversas prisões portuguesas, refere que a delegação recebeu “uma série de alegações credíveis de maus tratos físicos por parte do pessoal do Estabelecimento Prisional de Lisboa, consistindo em bofetadas, murros e pontapés”, sendo que “a análise dos relatórios médicos da prisão, que descrevem os ferimentos, corroborou essas alegações.” O relatório sublinha também que os “maus-tratos a pessoas no momento da detenção”, por agentes da PSP e militares da GNR, são uma “prática frequente”. Destacam-se “pontapés e golpes de cacetete” já depois de o detido “estar sob controlo”.
Nos relatos de reclusas de prisões femininas há referências a pessoas “mantidas altamente medicadas” ou que morrem por "excesso de medicação".
Situações semelhantes acontecem também nas prisões femininas, segundo alguns relatos de reclusas publicados no blogue do coletivo Vozes de Dentro, grupo de apoio às lutas das pessoas reclusas e das suas famílias. Além de descreverem as más condições das prisões (insalubridade, sobrelotação, falta de pessoal médico, alimentação pobre), queixam-se também de violência física, psicológica e verbal por parte das guardas (incluindo injúrias racistas, xenofobia e homofobia), castigos indevidos e uso indiscriminado da cela disciplinar (vulgo solitária, às vezes chamada de “manco”), e de inflação nos preços de bens básicos disponíveis para comprar, como comida e papel higiénico.
Também há referências à tal “contenção química indiscriminada” denunciada nos relatórios. Na carta de uma reclusa anónima de uma prisão não especificada refere-se que há pessoas “mantidas altamente medicadas” e “um psiquiatra que é autoritário[,] que é favorável a castigos e receita medicamentos para manter as reclusas nos castigos”. Numa outra carta, uma reclusa denuncia que viu, para além de assédio sexual e tortura, “pessoas novas a morrer por excesso de medicação”. Num relato enviado por uma reclusa também anónima da prisão de Tires, sobre o suicídio de Patrícia Ribeiro que cumpria pena de 13 anos por homicídio, é referido que Patrícia “fazia a faxina e tinha que trabalhar drunfada [sob o efeito de sedativos], pois a enchiam de medicação”.
Se Rubens ainda cá está para contar aquilo que viveu em quatro meses na prisão, as histórias de Danijoy e Daniel têm de ser contadas a partir dos relatórios e perícias das suas autópsias ou pelas memórias dolorosas das suas mães que, tal como Karina, não esquecem. Se as suas mortes foram tidas como naturais (enfarte, AVC), não se deve ignorar que a mistura de sedativos e antipsicóticos encontrada nos seus sangues nada mostra de natural na maneira como as prisões operam e talvez nos obriguem a questionar, afinal, o seu propósito.