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Guia Para Protestos Ecológicos Bem-Comportados

Um bom protesto não chateia ninguém, tem os alvos que as outras pessoas querem (não vamos dizer quais) e, de preferência, nunca vou ouvir falar dele, para não me sentir culpado por não fazer nada. Um protesto nunca pode ser um crime, não se esqueçam daquele ditado: “pessoas bem-comportadas sempre mudaram o mundo”.

Crónica 74
20 Outubro 2022

Olá, se estás a ler isto é porque estás muito preocupado com a atual emergência climática, perdão, emergência climática talvez seja demasiado… urgente. Implica que temos de fazer algo, mover mundos e fundos, fazer sacrifícios - especialmente as pessoas no topo. E se calhar estavas à procura de activismo mais individual, mais… “segundas-feiras sem carne” e “sacos de pano”* e menos “organizar-me com outras pessoas preocupadas” e  “arriscar-me a ser preso”.

Talvez então lhe possamos chamar algo mais leve e menos incomodativo, afinal, já temos tantas chatices, com preços de gás e gasolina a subir, guerras no mundo, fome ainda me tenho de preocupar com uma “emergência climática”? E se fosse em vez disso um “ inconveniente climático”? Deve ser por isso que o filme do Al Gore se chama A Verdade Inconveniente, faz sentido.

Portanto, se estás preocupado com o inconveniente climático, com as consequências das emissões de efeito de estufa (o aconchegante cobertor de carbono, como eu lhe chamo) resultado da ação humana, este guia é para ti!

É um pouco assustador pensar nas consequências como “erosão dos solos” (ninguém quer namorar com um agricultor, quanto mais ser um agricultor, é na boa), “acidificação dos oceanos” (o peixe está cheio de microplásticos, isso faz-te mal), “agravamento da frequência de fenómenos meteorológicos extremos como secas, cheias, tempestades” (não estás farto de rotina?) e “extinção em massa de animais pela mão do Homem” (animais selvagens não contam para o PIB).

Basta saber que é preciso fazer “qualquer coisa”. Especialmente quando nos apercebemos que ações isoladas de redução de desperdício e de consumo de energia não chegam, porque apesar de reduzirmos a nossa "pegada de carbono” (quem será que inventou este termo e porquê?) parece que as emissões dos grandes poluentes - quero dizer, criadores de riqueza e de emprego - continuam a aumentar.

A questão é então: “O que fazer?” (nota para mim próprio: bom título para um livro).  Já votas nos partidos que estão preocupados com o ambiente, mas eles não têm maioria. Já fazes voluntariado. Já doas a boas causas. Já tens todas as opiniões corretas no Twitter. E mesmo assim o progresso nestas causas parece frustrantemente lento.

Claro que políticos vão gabar-se de metas para 2030 e 2050 para “neutralidade carbónica”. Metas tardias demais para as meias medidas que ficam acordadas (embora muitas não sejam postas em prática ou no caso dos “offsets” e “créditos de carbono” sejam fraudulentos ou assim). Portanto não chega. Qual o próximo passo? Usar o direito democrático a protestar?

Aqui entra o conselho mais importante para os manifestantes. É preciso ter muito cuidado não vá o vosso protesto alienar pessoas que de outro modo estariam do nosso lado. Eu por exemplo, quando vi que aquelas mulheres atiraram uma lata de sopa ao vidro que protegia o Van Gogh na National Gallery pensei “afinal já não me importo que o mundo arda”. Mesmo quando me disseram que o quadro não tinha sido danificado continuei a pensar que prefiro viver num campo de batalha desolado por guerras entre sucateiros por água que num mundo em que possa achar por momentos que um quadro tenha ficado sujo com sopa. Se deixarmos estas coisas avançar impunes, daqui a nada estão mesmo a destruir quadros para fazer NFTs.

Ou por exemplo quando eu vi que ativistas da Climáximo bloquearam a entrada da sede GALP para protestar os lucros feitos às nossas custas e às custas de poluir, o meu primeiro pensamento foi, claro, “coitadinhos dos trabalhadores do escritório da empresa que não podem entrar” e “será que a cola que usaram para se colar às portas é eco-consciente?”.  Não foi “a GALP desde que foi privatizada que já custou mais de oito mil milhões aos portugueses em lucros perdidos” nem “a GALP é das maiores poluidoras de Portugal”.

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Gráfico Guilherme Trindade

Resumindo, um bom protesto não chateia ninguém, tem os alvos que as outras pessoas querem (mas não vamos dizer quais) e, de preferência, nunca vou ouvir falar dele, para não me sentir culpado por não fazer nada.

Nunca pode ser um crime, não se esqueçam daquele ditado “pessoas bem-comportadas sempre mudaram o mundo”

Ah, e nunca tenham um conjunto de acções, propostas concretas e exigências a apresentar associadas ao protesto, convém que o protesto seja o mais vago possível para podermos sempre dizer “eu sei lá o que eles querem, aqueles adolescentes não nos estão a dizer a nós, adultos, como resolver todos os problemas do mundo passo a passo, é suposto fazer o quê?”

Estão à espera que faça o quê? Abdique do meu conforto, arrisque a minha segurança para termos todos um mundo melhor? Enfim, toda a gente sabe que querer coisas boas é virtue signalling. E é perfeitamente racional ter mais medo que me acusem de hipócrita hoje do que do arrependimento de daqui a dez anos sentir que quando as próximas gerações precisavam de mim não fiz nada.

* Não há nada de mal em tentar fazer a diferença individualmente com hábitos melhores. Se formos muitos a fazê-lo vai ter impacto de certeza. O problema é achar que isso chega, sozinho, sem falarmos uns com os outros e sem responsabilizar quem tem mais poder e quem polui mais.

O autor escreve consoante o Acordo Ortográfico de 1990, porque o pai, e cito, “não quer que ele escreva como o Salazar”.

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