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A "fada da confiança" na habitação

Portugal tem um dos parques de habitação pública mais exíguos no contexto europeu e é um dos 17 países da UE que praticamente não dispõem de mecanismos de regulação do arrendamento. Se há coisa que não tem faltado aos agentes de mercado é liberdade de movimentos.

Crónica 74
31 Agosto 2023

Nos recentes debates sobre a política de habitação em Portugal, suscitados desde logo pela profunda crise que atravessa o setor, mas também pela discussão em torno das medidas do Mais Habitação, a questão da "confiança" tem sido crescentemente invocada (ver, por exemplo, aqui, aqui ou aqui). Como se, paradoxalmente, os fatores que nos conduziram à situação atual – de crise de acesso à habitação – tivessem na sua génese um problema de confiança.

De facto, e à semelhança do clamor oco da direita em torno da necessidade de implementar "reformas estruturais", é difícil perceber, para lá do registo proclamatório, em que é que se traduz, no concreto, a "crise de confiança" que alegadamente afeta os agentes e investidores do mercado habitacional.

Com os preços de venda e os valores de renda por m2 a galopar consistentemente nos últimos anos, permitindo ganhos crescentes e afastando-se cada vez mais dos salários médios em Portugal, ter-se-á o investimento imobiliário tornado desinteressante? Com medidas orientadas para a subsidiação da oferta privada, a par da disponibilização de terrenos para edificação e apoios às famílias, com que base se invoca o problema da "incerteza" para os investimentos, nacionais e estrangeiros, no setor? Será que o que estes temem é, na verdade, que os preços baixem e os seus lucros diminuam?

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Fada assassina
(João Tabarra, "Andante Cantabili ma non tanto", 2008)

Para que se perceba melhor o significado político do recurso infundado ao argumento da "confiança" é necessário recuperar a especificidade histórica da habitação no Estado Social português. Ao contrário da concretização do direito à Saúde e à Educação – que se materializaram na criação do SNS e de uma rede pública de estabelecimentos de ensino – a Habitação nunca foi objeto de um investimento público relevante, consistente e sistemático.

Assumiu-se de facto, desde cedo, que a concretização desse direito ocorreria essencialmente através do mercado, cabendo ao Estado apenas a resolução das carências mais gritantes, a subsidiação da iniciativa privada e das famílias e, em termos mais gerais, a criação de condições para a tal "confiança" que alegadamente permite que o mercado funcione. Ou seja, do ponto de vista dos privados, uma lógica de maximização de apoios e de minimização da regulação favorável à confiança de quem necessita de uma casa. E é isto que precisamente retrata, nas últimas décadas, a evolução do setor.

De facto, não só Portugal tem um dos parques de habitação pública mais exíguos no contexto europeu (apenas 2% do total de alojamentos), como é um dos 17 países da UE que praticamente não dispõem de mecanismos de regulação do arrendamento, ao contrário do que frequentemente se pensa. Se há coisa que não tem faltado aos agentes de mercado é, pois, liberdade de movimentos, que claramente não tem evitado, antes pelo contrário, as recorrentes crises de habitação no nosso país.

Do mesmo modo que é ilusório pensar que a subida dos preços resulta da simples "falta de casas" (como demonstra a quase estagnação do número de famílias e de alojamentos na última década), é um erro considerar que a crise se resolve com a mítica "fada da confiança", assinalada por Paul Krugman há uma década atrás, a propósito dos efeitos negativos das políticas de austeridade.

O que importa perceber é que a atual crise habitacional resulta, no essencial, do surgimento de novas procuras nacionais e internacionais, marcadamente especulativas, que encaram as casas como meros ativos financeiros. Procuras essas que apenas poderão ser travadas com a adoção de políticas robustas de regulação, devolvendo às famílias a confiança que realmente importa: a de poderem ter acesso a uma casa a preços compatíveis com os seus rendimentos.

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