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Traumas e mitos do arrendamento e a escassez de regulação

Num estudo europeu, Portugal é referenciado como um dos países onde apenas os contratos de arrendamento anteriores a 1990 se encontram regulados. Integra assim um universo de 17 Estados, maioritariamente do leste e sul, que não dispõem de instrumentos de regulação do controlo de rendas, no mercado habitacional.

Crónica 74
1 Fevereiro 2023

Persiste há muito no nosso país, e sobretudo em setores da direita, a ideia de que existe um excesso de intervenção pública na habitação, que alegadamente impede o normal funcionamento do mercado e que propicia, por essa razão, o surgimento de crises habitacionais.

Sucede, porém, que não só temos um parque habitacional público de reduzida dimensão no contexto europeu (a rondar os 2% do total de alojamentos, quando a média da UE15 se situa em 9%), como não fazemos parte do conjunto de países que ativou, na conjuntura atual, mecanismos de regulação do arrendamento favoráveis aos inquilinos.

De facto, segundo um estudo recente (2021), que procede a um mapeamento da regulação, ou seja, do controlo das rendas em 33 países europeus, Portugal faz parte de um universo de 17 Estados, maioritariamente do leste e sul, que não dispõem de instrumentos de regulação deste segmento do mercado habitacional. Em contraste, portanto, com a generalidade dos países do centro e do norte da Europa (como é o caso da insuspeita Alemanha ou da Espanha, Dinamarca, França, Países Baixos e Suécia, entre outros).

Mais concretamente, e à semelhança da Inglaterra, Portugal é referenciado neste estudo como um dos países onde apenas os contratos de arrendamento anteriores a 1990 se encontram regulados (1989 no caso inglês), sem que exista outro mecanismo (excetuando a indexação dos aumentos anuais ao valor da inflação) de regulação das rendas. 

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Regulação das rendas habitacionais em 33 países europeus (2010-2021)
Regulação das rendas habitacionais em 33 países europeus (2010-2021)

Duas razões essenciais contribuem para explicar a persistência desta ideia, falsa, de que existe um excesso de Estado na habitação e, mais concretamente, um excesso de regulação do arrendamento em Portugal.

Por um lado, como assinala Dulce Lopes, docente na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, o que está em causa é um «trauma coletivo» entre certos proprietários, associado ao congelamento das rendas. Isto é, um receio injustificado, que não só alimentou a convicção de que «a intervenção pública no mercado deve ser limitada», como atribuiu ao congelamento a responsabilidade pela alegada crise do setor (relacionada, na verdade, com o grau de facilidade e disponibilidade no acesso à casa própria), sendo já há muito manifestamente residuais os seus efeitos.

Por outro lado, a ideia ainda prevalecente segundo a qual regular o mercado de arrendamento significa, necessariamente, congelar rendas, medida tida como arcaica e extemporânea. Isto quando, na verdade, o que está em questão – e a ser adotado em diversos países europeus – são mecanismos de regulação de rendas de segunda e terceira geração. Ou seja, formas de regulação que incidem na limitação inicial do valor da renda em zonas de pressão da procura ou no controle da variação do seu valor ao longo da vigência dos contratos.

Têm sido estas, de facto, algumas das soluções adotadas por vários países europeus para enfrentar a crise habitacional que hoje atravessa a Europa, marcada por um aumento vertiginoso dos preços, que nem a oferta (evolução do número de alojamentos disponíveis ao longo da última década), nem a procura (evolução do número de famílias) justificam.

Isto é, respostas adotadas num contexto que sugere que a subida dos preços da habitação se associa à intensificação do turismo e as novas dinâmicas de investimento imobiliário, nacionais e internacionais, que encaram essencialmente a habitação como um ativo financeiro, e não pela sua função residencial. O que suscita, naturalmente, a necessidade de reforçar os mecanismos de regulação dos preços.

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