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Estratégias com escassa energia

Uma verdadeira estratégia de combate à pobreza energética exige investimento público avultado, mas não há um financiamento adequado para a executar. Como se não bastasse a contabilidade criativa do Orçamento do Estado para 2023, o Governo apresenta agora uma Estratégia (mal) reciclada.

Crónica 74
8 Fevereiro 2023

Estamos naquela altura do ano em que, nos dias de sol, pode estar mais frio em casa do que na rua. O desconforto térmico é um problema social estrutural, mas tantas vezes naturalizado em Portugal. Os baixos rendimentos, o fraco desempenho energético das habitações (a que se soma a degradação do parque habitacional) e os preços elevados da energia tornam os invernos portugueses, amenos quando comparados com o centro e norte da Europa, bastante frios para os milhões de pessoas que enfrentam a pobreza energética.

É importante sublinhar que este fenómeno ultrapassa o universo da pobreza monetária ou económica, afetando, igualmente, quem é forçado a restringir o uso de energia, ao ponto de prejudicar a sua saúde e qualidade de vida, na tentativa de conter a subida da fatura da eletricidade e/ou do gás. O que está em causa é a salvaguarda do direito universal a serviços energéticos adequados, entre os quais se inclui o aquecimento no inverno.

Recentemente, uma notícia do Público dava conta que “há pelo menos 660 mil pessoas em pobreza energética severa”, citando os números da Estratégia Nacional de Longo Prazo para o Combate à Pobreza Energética 2022-2050 (ENLPCPE 2022-2050), divulgada para consulta pública no início de janeiro. O mesmo documento estima que o número total de pessoas atingidas pela pobreza energética oscila entre 1,8 e 3 milhões de pessoas, consoante o indicador adotado. O diagnóstico, objetivos e medidas da ENLPCPE 2022-2050 foram veiculados pelo jornal sem qualquer escrutínio crítico. Faltou relembrar que nem os dados, nem a própria Estratégia são novidade. Como se não bastasse a contabilidade criativa do Orçamento do Estado para 2023, já aqui denunciada, o Governo apresenta agora uma Estratégia (mal) reciclada e, sobretudo, sem o financiamento adequado para a executar. Voltemos ao início.

Em abril de 2021, o Ministério do Ambiente e da Ação Climática colocou em consulta pública a então designada Estratégia Nacional de Longo Prazo para o Combate à Pobreza Energética 2021-2050. Quase dois anos depois, surge um novo documento, idêntico ao anterior, mas que, supostamente, incorpora os contributos dessa primeira consulta pública. As secções relativas ao enquadramento e plano de ação, que englobam a caracterização da pobreza energética em Portugal e as medidas para a sua mitigação, foram reproduzidas praticamente na íntegra (salvo algumas revisões das estatísticas e outras ligeiras reformulações e acrescentos que não modificam significativamente a substância).

Este exercício político de copy-paste é ainda mais flagrante quando se constata a coincidência exata dos quatro objetivos de curto-prazo de ambos os documentos, dos quais se destacam a alocação dos mesmos 300 milhões de euros do Plano de Recuperação e Resiliência, até 2025, para a reabilitação dos edifícios residenciais, e a atribuição, no mesmo período, de 100 mil “vales eficiência”, no valor de 1300 euros mais IVA, às famílias em situação de pobreza energética (a ineficácia deste programa também já foi demonstrada aqui).

O Governo esperou dois anos para divulgar uma Estratégia sem atualizações relevantes, ou novos mecanismos de apoio e financiamento. Por mais caricato que possa parecer, o facto de a “nova” Estratégia ter sensivelmente o dobro das páginas da anterior (de 53 passou para 104) não se deve a um maior detalhe relativamente à operacionalização das medidas, mas sim à alteração do tipo de letra e ao aumento do espaçamento entre linhas.

Os três objetivos estabelecidos em 2021, que visavam diminuir a população sem capacidade para manter a casa adequadamente aquecida, a viver em habitações com problemas de infiltrações, humidade ou elementos apodrecidos e cuja despesa com energia representasse mais de 10% do total de rendimentos, mantêm-se. Foi apenas introduzido um quarto objetivo que procura reduzir população a viver em habitações não confortavelmente frescas durante o verão.

Verificam-se, sim, alterações nos valores dos indicadores adotados para aferir a pobreza energética. Em 2021, o Governo estimava que estivessem em situação de pobreza energética entre 1,9 e 3 milhões de pessoas, das quais 660 a 740 mil em pobreza energética severa. Contudo, a redução da população a viver em agregados sem capacidade para manter a casa adequadamente aquecida – de 18,9%, em 2019, para 17,4%, em 2020, de acordo com o INE – faz com que o limiar mínimo do intervalo passe para 1,8 milhões de pessoas na contabilização mais recente. Deste modo, o universo total da pobreza energética é, também ele, estatisticamente reduzido (certamente não por via da aplicação destas Estratégias).

O valor que é mais difícil de compreender na ENLPCPE 2022-2050 é precisamente o da pobreza energética severa, agora situado entre 660 e 680 mil pessoas. Na versão de 2021, o limiar mínimo do intervalo, também 660 mil pessoas, dizia respeito ao indicador “agregados familiares em situação de pobreza cuja despesa com energia representa mais de 10% do total de rendimentos”; já o limiar máximo, 740 mil pessoas, correspondia ao indicador “população em situação de pobreza e a viver em agregados sem capacidade para manter a casa adequadamente aquecida”, refletindo situações cumulativas de pobreza energética e de pobreza monetária ou económica.

Na versão atual, o limiar máximo desce então para 680 mil pessoas. No entanto, o valor do indicador adotado permanece inalterado; a Estratégia cita os mesmos dados do INE, de 2019, que indicam que 38% da população em situação de pobreza vive em agregados sem capacidade para manter a casa adequadamente aquecida, ou seja, aproximadamente 740 mil pessoas. Se o Governo usa os mesmos dados estatísticos e a mesma metodologia, como é que a contabilização pode ser diferente?

Esperemos não ter de aguardar mais dois anos para ver esta questão esclarecida. Uma verdadeira estratégia de combate à pobreza energética exige investimento público avultado, algo que, sendo reconhecido pelo Governo, não é acompanhado pelo financiamento adequado. Para além das intervenções urgentes na reabilitação e renovação energética do parque habitacional, que não devem onerar os residentes, é igualmente imperativo agir sobre os outros fatores que contribuem para a pobreza energética – os baixos rendimentos e o preço da energia. Sem controlo de preços, o que exige controlo público do sector da energia, e sem aumentos dos salários reais, não há verdadeiro combate às desigualdades e, logo, à pobreza energética.

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