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O frio não mata, a pobreza energética sim

Aprendemos a naturalizar as notícias que no pico do inverno contabilizam o excesso de mortalidade causado pelas vagas de frio. O Governo continua a refugiar-se em medidas assistencialistas e estigmatizantes, cuja eficácia na mitigação da pobreza energética é, no mínimo, contestável.

Crónica 74
27 Outubro 2022

Como já vem sendo hábito no Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza, as manchetes dos jornais recordam-nos que Portugal continua a ser atravessado pela pobreza, pela exclusão e pela desigualdade. “Cerca de 16% da população não consegue aquecer convenientemente a sua casa”, noticia o Público. Em 2021, fomos o quinto país da União Europeia com maior percentagem de pessoas que não consegue aquecer convenientemente a sua habitação.

Todos os anos um título semelhante, só vai mudando o indicador, a percentagem e a posição no ranking. Aprendemos também a naturalizar as notícias que, no pico do inverno, contabilizam o excesso de mortalidade devido às vagas de frio. As mesmas que no último parágrafo oferecem dicas para nos mantermos quentes sem ligar o aquecedor. Uma comunicação social pobre num país fustigado pela pobreza, que também é energética.

A pobreza energética resulta de um conjunto de fatores que se reforçam mutuamente: o preço da energia; os baixos rendimentos; a má qualidade da construção, que se traduz em níveis insatisfatórios de eficiência energética e de conforto térmico; ou ainda a ausência de uma política pública de habitação e de renovação dos edifícios. A Estratégia Nacional de Longo Prazo para o Combate à Pobreza Energética, lançada para consulta pública em abril de 2021 (e cuja versão final se desconhece), estima que estejam em situação de pobreza energética entre 1,9 e três milhões de pessoas, ainda que com diferentes graus de intensidade.

Perante este retrato, e num contexto marcado pela crise energética, esperar-se-ia que o Orçamento do Estado (OE) para 2023 avançasse medidas robustas para aliviar a pobreza energética. Contudo, este orçamento, que se diz de “estabilidade, confiança e compromisso” é, na verdade, apenas o último exemplo da política de mínimos que tem norteado os sucessivos governos nesta matéria. Atentemos em duas das principais medidas do OE (que, na realidade, entraram em vigor antes da sua apresentação) para “mitigar as subidas de preços e de juros": a redução do IVA na eletricidade e a transição para o mercado regulado de gás natural.

A redução do IVA na eletricidade para 6% é, na prática, um truque de algibeira, com um impacto residual – pouco mais de um euro – na fatura da maioria das famílias. É seletiva, uma vez que se aplica apenas aos consumos atualmente abrangidos pela taxa intermédia de 13% nas potências contratadas até 6,9kVA. O restante consumo continuará a ser taxado a 23%. Em Espanha, por exemplo, o Governo começou por baixar a taxa de 21% para 10% em junho de 2021 e, um ano depois, reduziu-a para 5%.

Já a transição para o mercado regulado de gás natural – que estabelece um regime excecional e temporário, sublinhe-se –, foi apresentada pelo Governo como a maior salvaguarda face aos aumentos anunciados por diversos comercializadores do mercado liberalizado ainda durante o verão. Talvez convenha lembrar que, em maio, o PS chumbou, ao lado da direita parlamentar, uma proposta do PCP neste sentido. Por outro lado, uma medida que não deveria acarretar quaisquer encargos para os consumidores tem sido ensombrada pela falta de informação clara e por penalizações (por exemplo, perdas de descontos associadas a contratos únicos de gás e eletricidade) que acabam por encarecer a fatura da eletricidade.

De resto, o Governo continua a refugiar-se em medidas assistencialistas e, consequentemente, estigmatizantes, cuja eficácia na mitigação da pobreza energética é, no mínimo, contestável. Por exemplo, o programa “bilha solidária”, criado em março, consiste num apoio de dez euros por cada botija, no limite de uma unidade por mês (há que “incentivar” a poupança de energia, para evitar que se “consuma acima das possibilidades”), e destina-se aos beneficiários da tarifa social de energia elétrica e às famílias titulares de uma das prestações sociais mínimas.

O Ministro do Ambiente reconheceu recentemente que o programa não teve a adesão desejada, muito possivelmente por desconhecimento em relação à medida. Ora, ao contrário do que sucede com a tarifa social de energia, que é atribuída automaticamente aos agregados familiares elegíveis, a responsabilidade no acesso a apoios como a “bilha solidária” recai sobre esses mesmos agregados, que têm de se dirigir às suas juntas de freguesia munidos de uma série de comprovativos que atestem a sua elegibilidade, neste caso, a sua pobreza.

A denúncia de programas desta natureza não deve ser confundida com a crítica estéril que desvaloriza por completo a importância que um desconto de dez euros mensais pode representar para estas famílias. O gás engarrafado continua a ser usado por mais de dois milhões de famílias, nomeadamente as mais pobres, todavia, não é englobado pela tarifa social de energia (que inclui eletricidade e gás natural, perfazendo um total de 860 mil beneficiários) e não conta com qualquer redução de IVA. Por conseguinte, a limitação do preço máximo de venda de gás engarrafado ao público, em vigor pelo menos até ao final de outubro, deveria tornar-se definitiva.

Não deve subestimar-se a importância destas medidas e, sobretudo, da tarifa social de energia – o último reduto, a par das tarifas reguladas da eletricidade e do gás natural, da presença do Estado na provisão de serviços energéticos essenciais. No entanto, a erradicação da pobreza energética está longe de se esgotar em medidas pontuais. Pelo contrário, exige políticas universais e estruturais, que vão da reabilitação e renovação energética do parque habitacional, à extinção dos mercados liberalizados em todo o setor da energia.

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