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Como é que se diz "o problema não é a falta de casas" em inglês?

Desde a crise financeira de 2007/08 que o imobiliário é muito atrativo para vultuosos investimentos financeiros especulativos a uma escala cada vez mais internacional. Para que os preços das habitações possam descer, são necessários mecanismos robustos de controlo e limitação da procura especulativa. Não basta apostar na ilusão da construção de alojamento numa lógica de mercado.

Crónica 74
29 Junho 2023

Numa edição recente de um famoso programa de rádio da BBC (Any Questions), e perante a questão colocada por uma ouvinte – por que razão a sua filha de 29 anos não conseguia pagar uma casa – a economista britânica Ann Pettifor teve uma resposta que surpreendeu os restantes participantes no programa: "não há falta de casas no Reino Unido (…), pois há mais habitações que famílias". E acrescentou: "o que falta são casas a preços acessíveis para a população, uma vez que os preços estão inflacionados por um muro de dinheiro global".

Os dados do ONS (Office for National Statistics) confirmam a tese de Pettifor. Entre 2001 e 2022, o número de alojamentos e de famílias quase não se alterou no Reino Unido (à semelhança do que sucede, de resto, em Portugal e na generalidade dos países europeus). O aumento dos alojamentos (19%) chega mesmo a ser superior, neste período, ao registado em termos de famílias (14%), tendo a variação dos preços da habitação atingido os cerca de 200%. E mesmo considerando o período mais recente, entre 2015 e 2022, em que os preços descolam da oferta (casas) e da procura (famílias), a tendência é a mesma: o número de alojamentos aumenta 7%, o número de famílias 4%, e os preços da habitação 23%.

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Gráfico Nuno Serra

Como bem sublinha Ann Pettifor, não é hoje possível compreender a atual crise de habitação nos termos da "sabedoria convencional". Isto é, a partir da ideia de que a questão se resume a um simples desencontro entre a oferta e a procura, bastando que a alegada falta de casas seja suprida através do aumento da construção. Tese que, como assinala a economista britânica, "todos" – governos, privados e terceiro setor – "compraram" de forma acrítica.

É preciso não ignorar, de facto, que desde a crise financeira de 2007/08, o imobiliário se converteu num domínio muito atrativo para vultuosos investimentos financeiros especulativos – o tal "muro de dinheiro" de que fala Pettifor – que passaram a funcionar a uma escala cada vez mais internacional. Ou seja, numa mudança que torna obsoletos os quadros de análise que assumem a oferta e a procura de habitação à escala das fronteiras nacionais (e, portanto, delimitadas) e circunscritas à lógica da função residencial dos imóveis (que exclui, portanto, o seu "uso" enquanto ativo financeiro).

É a "especulação no mercado imobiliário que está a alimentar a subida estratosférica dos preços da habitação e não a escassez da oferta", sublinha Ann Pettifor. Com a agravante de a própria subida dos preços acentuar essa dinâmica, ao tornar ainda mais atrativos os investimentos especulativos no setor. O que significa, por seu turno, como sublinha também a economista, em artigo no The Guardian, que não é a construção de mais alojamentos que vai resolver a crise de habitação no Reino Unido.

Em suma, para que os preços das habitações possam efetivamente descer, de modo a que fiquem acessíveis aos rendimentos das famílias (que deveriam ao mesmo tempo aumentar), é necessário adotar mecanismos robustos de controlo e limitação da procura especulativa, ao invés de continuar a apostar na ilusão de que o aumento da construção de alojamentos, ainda para mais numa lógica predominantemente de mercado, resolverá o problema.

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