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Até quando a especulação quiser?

Existem hoje novas formas de procura de habitação de natureza especulativa. Veem as casas como um ativo financeiro e não pela sua função residencial. Para responder à crise de habitação não basta ir além do reforço do parque habitacional. Precisamos de novos instrumentos.

Crónica 74
5 Outubro 2023

Um dos dados essenciais para compreender verdadeiramente a natureza da atual crise de habitação, que atravessa o nosso país e a generalidade dos países europeus (e não só), consiste no facto de a subida vertiginosa dos preços, ao longo da última década (e em particular depois de 2013) não ser facilmente explicável pela evolução da relação entre a oferta (alojamentos) e a procura (famílias).

De facto, e como já se demonstrou anteriormente (ver por exemplo aqui e aqui), tanto em Portugal como na União Europeia o número de famílias e alojamentos pouco se alterou na última década (ver gráficos), tendo a evolução do Índice de Preços da Habitação (IPH) disparado, tanto num caso como no outro, e "descolado" face aos rendimentos das famílias.

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Tabela Nuno Serra

Se o número de alojamentos e de famílias não se alterou na última década, como explicar uma subida tão significativa de preços? Como sustentar a tese, simplista, de que a questão se resume a um problema de "falta de casas", quando a relação entre famílias e alojamentos se manteve praticamente inalterada nos últimos dez anos? Porque se considera que deveria ter-se construído mais neste período, quando o acréscimo no número de famílias foi, em traços gerais, acompanhado pelo aumento do número de fogos?

A resposta a estas questões reside naquilo que muitos insistem em não querer reconhecer (por razões ideológicas expectáveis): existem hoje novas procuras de habitação, de natureza eminentemente especulativa, que a encaram como um ativo financeiro, um objeto de investimento, e não pela sua função residencial (e, já agora, social). Trata-se, desde logo, de novas formas de procura indissociáveis da própria crise financeira e dos processos de "ajustamento", com a reorientação dos investimentos para o setor imobiliário, que se internacionalizou de forma crescente desde então. Mas também procuras especulativas internas, nomeadamente as relacionadas com a aplicação de rendimentos e poupanças das famílias mais ricas neste setor.

Por último, e não menos importante, deve assinalar-se a intensificação do turismo e o seu impacto, em termos de "captura" de habitações para fins não residenciais (como sucede com a expansão desenfreada da oferta de Alojamento Local ou, mais recentemente, com o fenómeno dos nómadas digitais).

Resulta daqui que as políticas de habitação com capacidade para responder a uma crise habitacional como a que estamos a atravessar, tanto à escala nacional como europeia, deverão ir além do reforço do parque habitacional público, que é fundamental, e de instrumentos que mitiguem, no imediato, o impacto da crise.

Isto é, adotando medidas robustas de regulação do mercado, capazes de diferenciar os investimentos orientados para a oferta de habitação a preços compatíveis com os rendimentos das famílias, dos investimentos de natureza rentista e especulativa. Sem esta linha de resposta, apenas resta a esperança de que, por uma qualquer razão, estes investimentos, potencialmente inesgotáveis, deixem o imobiliário e se desloquem para outros domínios.

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