Zapatistas a marchar por Madrid, Espanha | Foto de Marta Vidal
O movimento indígena insurgente anunciou que iria marcar os 500 anos da queda de Tenochtitlán em Madrid, durante a sua “invasão” invertida da Europa. Mas também as comemorações deste aniversário foram subvertidas. Recusando aceitar a conquista como consumada, os zapatistas decidiram assinalar nesta data “500 anos de resistência indígena”.
Um barco está atracado à porta da sede da Presidência da Comunidade de Madrid, na praça central da Puerta del Sol. Em redor, um mar de gente com cartazes e bandeiras.
Quem está de passagem pelo centro de Madrid no dia 13 de agosto não percebe bem o que se passa. A proa do barco tem a bandeira negra do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), o convés está cheio de balões coloridos. Mas isto é uma invasão, ou uma festa?
É um dos dias mais quentes do ano, a tarde já está a chegar ao fim e os termómetros ainda marcam 38ºC. Apesar do calor, a multidão que se junta em volta do inusitado barco vai crescendo, marés de gente diferente – mulheres, homens, crianças, idosos.
Uns seguram bandeiras com a sigla EZLN, outros erguem cartazes coloridos. “Alegre rebeldia”, lê-se numa faixa; “outros mundos são possíveis”, lê-se noutra. Para além de mensagens de apoio aos zapatistas em várias línguas, vêem-se cartazes em defesa de causas ambientalistas, feministas, antirracistas, sindicalistas.
Formado maioritariamente por indígenas maias, o movimento rebelde zapatista ergueu-se contra a desigualdade social no estado de Chiapas, no sul do México, em 1994. No início deste ano, os zapatistas anunciaram uma “invasão” da Europa, 500 anos depois de o México ter sido conquistado.
Em maio, uma delegação zapatista chamada “Esquadrão 421”, por ser constituída por quatro mulheres, dois homens, e uma pessoa não-binária, partiu da costa mexicana num barco enferrujado em direção à Europa, atravessando o Atlântico no sentido inverso da viagem de conquista de há cinco séculos.
Depois de 50 dias de viagem, que incluíram uma paragem nos Açores, o barco zapatista aportou em Vigo no dia 22 de junho. Assim que chegaram, os zapatistas decidiram renomear a Europa na língua maia tzotzil.
“Declaro que o nome desta terra, a que os seus nativos chamam ‘Europa’, de aqui em diante se chamará Slumil K’ajxemk’op, que quer dizer ‘Terra Insubmissa’ ou ‘Terra que não se resigna’”, disse solenemente Marijose, uma pessoa não-binária escolhida para ser a primeira a pisar o solo europeu.
A bandeira da União Europeia também foi subvertida. O azul celeste virou negro e as doze estrelas douradas tornaram-se vermelhas, como as cores da bandeira do EZLN. No centro da bandeira, um novo nome para o velho continente: Slumil K’ajxemk’op.
Os zapatistas invertem tudo – nomes, bandeiras, histórias coloniais, o sentido em que viajam os barcos invasores, mas também os objetivos da viagem. Dizem que não vieram à Europa para conquistar nem dominar. Numa série de comunicados publicados online e traduzidos em várias línguas, chamaram à viagem uma “travessia pela vida” e anunciaram que a missão é “abraçar todos os que lutam, resistem e se revoltam.” Para além da partilha de histórias e lutas, prometeram “agitar” o continente com festas, canções e danças.
Na praça da Puerta del Sol, enquanto uns seguram bandeiras do EZLN que abanam ao vento, outros dançam numa roda. São já centenas de pessoas reunidas junto a um barco atracado numa cidade sem mar, à espera que comece um evento que foi antecipado e preparado durante meses.
No verão de 1521, as tropas do conquistador espanhol Hérnan Cortés e os seus aliados indígenas cercaram a capital asteca Tenochtitlán. No dia 13 de agosto, os astecas renderam-se às forças espanholas, que saquearam e destruíram a capital. A Cidade do México foi construída sobre as ruínas.
Os zapatistas anunciaram que iriam marcar os 500 anos da queda de Tenochtitlán em Madrid, durante a sua “invasão” da Europa. Mas também as comemorações deste aniversário foram subvertidas. Recusando aceitar a conquista como consumada, os zapatistas decidiram assinalar nesta data “500 anos de resistência indígena”.
Do outro lado do Atlântico, o presidente mexicano, Andrés Manuel López Obrador, assinalou o aniversário no Palácio Nacional, na Cidade do México, em frente a uma réplica do templo azsteca destruído há cinco séculos. Na cerimónia de dia 13 de agosto, o chefe de Estado pediu perdão “às vítimas da catástrofe originada pela ocupação militar espanhola”.
Não foi a primeira vez que López Obrador fez referência a um perdão pela colonização do México. Em 2019, provocou um incidente diplomático quando exigiu ao governo espanhol e à Igreja Católica um pedido de desculpas pela violência e devastação que a conquista do México causou entre as comunidades indígenas.
O pedido foi rejeitado pelo governo espanhol, mas que a conquista se tratou de uma catástrofe, restam poucas dúvidas. Segundo a professora Caroline Pennock, especialista em história asteca, pelo menos 80% da população indígena morreu com as epidemias trazidas pelos europeus. Em apenas cinco anos morreram cerca de 15 milhões de pessoas. Para além das doenças, a historiadora afirma que as comunidades indígenas foram brutalizadas e escravizadas durante a colonização espanhola.
Caroline Pennock diz que a queda do império asteca, que foi possível porque os espanhóis conseguiram aproveitar divisões internas e recrutar aliados indígenas, significou o início de uma conversão e imposição de normas europeias no território.
“Mas isto não indica o fim das culturas indígenas”, diz a historiadora. “Muitos grupos indígenas resistiram, lutaram contra a dominação espanhola durante séculos”.
Ao contrário do presidente López Obrador, os zapatistas não vieram para exigir um pedido de desculpas, mas para desafiar a ideia que as comunidades indígenas foram derrotadas.
“Viemos para dizer duas coisas simples. Primeiro, que não nos conquistaram. Que continuamos em resistência e em rebeldia. Segundo, que não têm que pedir que lhes perdoemos nada. Já chega de julgar o passado distante para justificar, com demagogia e hipocrisia, os crimes actuais e em curso”, disseram num comunicado, que acusa o governo mexicano de continuar as políticas de apropriação de recursos e marginalização das comunidades indígenas.
“Nós, zapatistas, não queremos voltar a esse passado, nem sozinhos, nem muito menos pela mão de quem quer semear o rancor racial, e quem pretende alimentar um nacionalismo antiquado com o suposto esplendor de um império, o asteca, que cresceu à custa do sangue dos seus semelhantes, e que nos quer convencer de que com a caída desse império fomos derrotados”, dizem.
Foi para rejeitar a derrota, com o lema “Não nos conquistaram”, que os zapatistas convocaram uma manifestação em Madrid no dia 13 de agosto, a começar na Puerta del Sol e a terminar na Praça Colombo.
Quando o relógio na torre da sede do governo na Puerta del Sol marca 20h, já estão mais de mil pessoas reunidas na praça.
“Um mundo onde caibam muitos mundos”, lê-se num dos cartazes. A ambição é que essa frase, que se tornou num dos lemas dos zapatistas, se reflita na concentração deste fim de tarde de agosto.
Juntam-se na praça muitas lutas. Grupos de defesa dos direitos dos migrantes, organizações antirracistas, colectivos LGBTIQ+ e feministas e vários sindicatos. De um lado, há bandeiras da Palestina, do outro, cartazes em solidariedade com o Curdistão. Há quem se identifique como “Indignado”, com o movimento que há dez anos ocupou esta mesma praça, primeiro às centenas, depois aos milhares de indignados em protesto contra políticas de austeridade e as desigualdades sociais.
Os zapatistas dizem que as máscaras que usam servem como espelhos, para que qualquer pessoa que se sinta oprimida ou que lute por justiça, se possa ver e reconhecer nos rostos cobertos.
Para Lola Sepúlveda, madrilena reformada que acompanha os zapatistas desde 1994, o que une estas diversas lutas é o reconhecimento de um problema estrutural, um sistema de exploração e desigualdade.“
Durante muitos anos estive envolvida em lutas sindicais”, diz ao Setenta e Quatro Lola, que faz parte de um dos coletivos que passou meses a preparar os eventos zapatistas na Europa. “Mas as nossas lutas estavam muito compartimentadas. Os zapatistas ajudaram-me a ver para além da luta dos trabalhadores. Aprendi com eles que não há uma luta só, mas muitas, e que não há só uma forma de lutar”.
Apesar de ser a primeira vez que os zapatistas convocam uma ação fora das fronteiras mexicanas, o movimento organiza encontros internacionais no estado de Chiapas desde o início, ou seja, desde da rebelião de 1994.
No verão de 1996, Lola foi uma das cerca de 3000 pessoas que viajaram até ao sul do México para o “Primeiro Encontro Intercontinental contra o Neoliberalismo e pela Humanidade”, uma reunião organizada pelo EZLN que procurou promover a cooperação internacional. Foi lá que encontrou pela primeira vez os zapatistas, que se apresentaram assim:
“Somos o Exército Zapatista de Libertação Nacional. Durante dez anos estivemos a viver nestas montanhas, preparando-nos para fazer uma guerra. Dentro destas montanhas construímos um exército. Em baixo, nas cidades e nas propriedades, nós não existíamos.
Não tínhamos palavra. Não tínhamos rosto. Não tínhamos nome. Não tínhamos manhã. Nós não existíamos.
Para o poder, esse que hoje se veste mundialmente com o nome de “neoliberalismo”, nós não contávamos, não produzíamos, não comprávamos, não vendíamos. Éramos um número inútil nas contas do grande capital”.
Com as caras sempre tapadas com lenços ou balaclavas, os zapatistas dizem que as máscaras que usam servem como espelhos, para que qualquer pessoa que se sinta oprimida ou que lute por justiça, se possa ver e reconhecer nos rostos cobertos.
“Atrás da nossa balaclava está o rosto de todas as mulheres excluídas, de todos os indígenas esquecidos, de todos os homossexuais perseguidos, de todos os jovens desprezados, de todos os migrantes espancados, de todos os presos pela sua palavra e pensamento, de todos os trabalhadores humilhados, de todos os mortos por esquecimento, de todos os homens e mulheres simples que não contam, que não são vistos, que não são nomeados, que não têm manhã”, disseram no encontro internacional.
Depois de vários anos de preparação militar e organização clandestina nas montanhas de Chiapas, no extremo sul do México, na madrugada de 1 de janeiro de 1994, os zapatistas quebraram o silêncio e o esquecimento a que tinham sido condenadas as comunidades indígenas.
“Somos produto de 500 anos de luta”, disseram na Primeira Declaração publicada no dia inicial da rebelião. “Hoje dizemos basta!”
Nesse dia, entrava em vigor no México o tratado de livre comércio com os EUA e o Canadá, conhecido como NAFTA, que os zapatistas consideraram uma “pena de morte” para os camponeses indígenas, por liberalizar o mercado local, abrindo-o ao agronegócio norte-americano, e revogar os direitos constitucionais à terra.
Escolheram o nome do movimento em homenagem a Emiliano Zapata, herói nacional que liderou uma revolta campesina durante a revolução mexicana de 1910, com o lema “a terra é de quem a trabalha”.
Milhares de homens e mulheres armadas e com os rostos cobertos desceram das montanhas e ergueram-se contra a opressão e marginalização das comunidades indígenas, ocupando vários municípios e propriedades rurais de Chiapas.
Apesar de ser uma região rica em recursos naturais, Chiapas era um dos estados com os maiores índices de pobreza e mortalidade infantil no México. Com a propriedade das terras concentrada nas mãos de uma elite latifundiária, grande parte da população indígena não tinha acesso a educação, a cuidados de saúde ou sequer a água potável ou saneamento básico.
O confronto armado entre guerrilheiros indígenas e o exército mexicano durou apenas alguns dias. Durante as negociações de cessar-fogo, os zapatistas tornaram claro que não procuravam tomar o poder, mas antes transformar as suas comunidades, organizando-as de uma forma autónoma e mais democrática, sem interferência do Estado ou do exército mexicano.
Na ausência do Estado nos territórios que foram ocupados, os zapatistas desenvolvem os seus próprios sistemas de saúde, de educação e de economia cooperativa. O princípio fundamental da organização autónoma zapatista é o de “mandar obedecendo”, segundo o qual quem ocupa cargos políticos age como delegado das comunidades que serve. As decisões são tomadas de baixo para cima, e de forma coletiva.
Já passa das oito e meia quando o barco zapatista – um carro alegórico – é finalmente posto em marcha, e as mais de mil pessoas que se encontram na Puerta del Sol começam a caminhar em direção à Praça Colombo, a cerca de dois quilómetros de distância.
“Lento, mas avanço”, lê-se num cartaz ilustrado com um caracol. Os caracóis, desenhados muitas vezes com as cabeças cobertas com gorros tal como os zapatistas, aparecem em muitos dos cartazes e faixas da manifestação.
Em Chiapas, cada região das comunidades zapatistas é conhecida como um “Caracol”. As conchas em espiral, tradicionalmente usadas pelos indígenas para juntar a comunidade, tornaram-se num importante símbolo dos zapatistas e das suas comunidades.
“Tanto os Estados Unidos como o México têm águias como emblemas, predadores que atacam de cima. Os zapatistas escolheram um caracol com uma concha em espiral, uma criatura pequena, fácil de ignorar”, escreveu a autora norte-americana Rebecca Solnit no ensaio A Revolução dos Caracóis, sobre a sua participação numa reunião com mulheres zapatistas em Chiapas em 2007.
“Diz muito sobre modéstia, sobre humildade, sobre proximidade à terra e sobre o reconhecimento que a revolução pode começar como um relâmpago, mas que se concretiza lentamente, com paciência, com firmeza”, lê-se no ensaio. “A velha ideia de revolução era que iríamos trocar um governo por outro, e que de alguma forma este novo governo nos iria libertar e mudar tudo. Mas cada vez mais, mais de nós compreendemos agora que a mudança é uma disciplina que é vivida todos os dias.”
Quando emergem das montanhas, os rebeldes reclamam terra e direitos, mas também dignidade e reconhecimento. Querem conquistar não só território e autonomia, mas também a imaginação e o sentido de possibilidade.
Lola Sepúlveda apercebeu-se do mesmo nos seus encontros com os zapatistas ao longo de quase três décadas. “Surgiram após a queda do muro de Berlim e mostraram-nos que havia uma outra forma de fazer as coisas”, diz Lola. “O que me atraiu não foram só as palavras, belas palavras, mas também a forma como vivem diariamente e se organizam.”
Mas a palavra assume um papel central no movimento zapatista. Apesar de nunca terem abandonado as armas, e de manterem uma força armada que defende as comunidades zapatistas das incursões do exército e de paramilitares, desde o começo que a insurgência dos zapatistas luta tanto com armas como com palavras. Quando emergem das montanhas, os rebeldes reclamam terra e direitos, mas também dignidade e reconhecimento. Querem conquistar não só território e autonomia, mas também a imaginação e o sentido de possibilidade.
A maioria das palavras publicadas é assinada pelo porta-voz histórico dos zapatistas, o Subcomandante Marcos – que em 2014 passou a ser conhecido como Subcomandante Galeano. Sempre a fumar cachimbo e com o rosto coberto, tornou-se na figura mais reconhecida e carismática dos zapatistas. Os comunicados que publica online misturam análise política com beleza poética, ideias revolucionárias com lendas e tradições maias, a dura realidade do sul do México com uma imaginação delirante sem fronteiras.
Acompanhando pelas ruas de Madrid o carro alegórico em forma de barco, reconhece-se neste evento a linguagem que os zapatistas foram desenvolvendo ao longo das últimas décadas, sempre repleta de alegorias, símbolos, humor e ironia.
Do barco, Lupita, Carolina, Ximena, Yuli, Bernal, Felipe e Marijose, os sete membros do Esquadrão 421 que conseguiram estar em Madrid para as comemorações de 13 de agosto, acenam à multidão que os acompanha e atiram aviões de papel.
“É a nossa força aérea”, ri-se uma voluntária que ajudou a dobrar dezenas de aviões em papel impresso com a sigla EZLN.
Em julho, os zapatistas anunciaram que uma “delegação aérea” de 177 pessoas, que incluiria um grupo de seis crianças (chamado “Comando Pipocas”) e uma equipa de futebol feminina, iria juntar-se nos encontros europeus ao Esquadrão 421.
Mas entraves colocados pelos serviços governamentais mexicanos impediram que muitos dos delegados conseguissem passaportes para viajar de avião até à Europa, para além das restrições de entrada relacionadas com a pandemia de COVID-19. Num comunicado, o Subcomandante Galeano, o único representante zapatista que não é indígena, denunciou como racista a negação de passaportes dizendo que os delegados cumpriam todos os requisitos que se exigiam.
“Todos os papéis foram apresentados, mas o problema é que, aos olhos da burocracia da Secretaria de Relações Exteriores, a cor da pele, o modo de falar, a forma de vestir e o lugar de proveniência é que contam”, escreve Galeano, denunciando que a população indígena continua a ser tratada “como estrangeira na sua própria terra”.
Foi contra o tratamento de desprezo, contra o ser estrangeiro na própria terra, que os zapatistas se ergueram há mais de duas décadas.
“Queremos um México que nos tome em conta como seres humanos, que nos respeite e reconheça a nossa dignidade”, disse a comandante Ramona, uma das mais emblemáticas representantes do EZLN, em outubro de 1996, quando foi a primeira zapatista a viajar até à Cidade do México para se dirigir à sociedade civil. “Chegamos aqui para gritar, junto com todos, que nunca mais um México sem nós.”
Ramona, que era bordadora, foi das primeiras mulheres indígenas a juntar plateias de milhares de pessoas, e a ser ouvida nos centros de poder. Para muitos, as suas palavras continuam atuais.
A marcha continua pelas ruas centrais de Madrid. Enquanto passam em frente às sedes de bancos e de multinacionais, os manifestantes gritam slogans contra a desigualdade, contra a destruição ambiental, contra o capitalismo e o neoliberalismo.
Apesar da pobreza, da mortalidade infantil e da desigualdade continuarem a ser uma realidade em Chiapas, os defensores do zapatismo dizem que o movimento conquistou melhorias significativas na vida das comunidades indígenas.
“No zapatismo, as identidades de género são exploradas de formas muito inovadoras. Usa-se o conceito de otroa, uma forma que usa o masculino e o feminino sem os colocar numa estrutura hierárquica”, explica Sylvia Marcos.
Nas áreas controladas pelos zapatistas a terra é propriedade coletiva. Famílias que antes trabalhavam em latifúndios em condições quase feudais podem agora chamar suas as terras que cultivam. Com recursos limitados, e dependendo sempre do trabalho comunitário e de donativos de apoiantes internacionais, construíram-se escolas e centros de cuidados de saúde, e melhoraram-se as condições sanitárias.
Para Sylvia Marcos, investigadora mexicana dedicada aos movimentos indígenas e ao feminismo, uma das principais conquistas foi a melhoria da situação das mulheres.
“A presença das mulheres tem aumentado ao longo das décadas, agora há muitas mulheres em posições de autoridade”, diz ao Setenta e Quatro Sylvia, acrescentando que pelo menos um terço dos combatentes são mulheres. Não se sabe ao certo quantos militantes serão: as estimativas variam entre os 50 e os 300 mil membros nas bases de apoio, e cerca de 7 000 militantes armados.
A investigadora, que fala connosco de Chiapas, conta que o que a atraiu pelo zapatismo foi a forma como reivindicações de uma nova forma de ver mundo própria dos povos indígenas incluíam um importante espaço para as mulheres, para reivindicações feministas e para identidades de género emancipatórias.
“No zapatismo, as identidades de género são exploradas de formas muito inovadoras. Usa-se o conceito de otroa, uma forma que usa o masculino e o feminino sem os colocar numa estrutura hierárquica”, explica.
Como exemplo, aponta o papel central que Marijose, que é otroa, tem na viagem zapatista pela Europa, e o facto de ter sido escolhida para ser a primeira pessoa a desembarcar e a renomear o continente europeu.
“Em Chiapas, Marijose tem um papel muito importante na educação”, acrescenta. “Trabalha com crianças, que aprendem a respeitar e aceitar diferentes identidades de género. Abre um espaço que não discrimina ninguém, que aceita toda a gente, quer se identifiquem como homossexuais, lésbicas, trans, ou não-binárias.”
Antes de viajar até Madrid para as comemorações dos “500 anos de resistência”, o Esquadrão 421 passou em julho por França para participar numa reunião internacional de “Mulheres e Otroas”, um encontro feminista e de pessoas trans, inter e não-binárias em ZAD (Zone à Défendre – Zona a Defender) em Notre-Dame-des-Landres, uma comunidade que nasceu em protesto contra a construção de um novo aeroporto na cidade de Nantes. Participou também em protestos de Sans Papiers (Sem Documentos), de migrantes que exigem a regularização da sua situação, em Montreuil nos subúrbios de Paris.
Está prevista uma vinda a Portugal, onde durante cerca de um mês, em data a anunciar, se estão a planear atividades de norte a sul, desde manifestações públicas a pequenos encontros com comunidades locais.
Durante os próximos meses, os zapatistas visitarão outros países europeus, onde querem organizar encontros com a Europa “de baixo.” Em mais de 20 países foram formados coletivos para os receber, e para organizar eventos com grupos de apoio a migrantes, organizações antirracistas e contra a violência policial, coletivos LGBTIQ+ e feministas e movimentos ambientalistas e pela justiça climática.
Dizem que o objetivo dos encontros é partilhar “histórias mútuas, dores, raivas, sucessos e fracassos” e ouvir e aprender com as várias lutas por justiça social.
Está prevista uma vinda a Portugal, onde durante cerca de um mês, em data a anunciar, se estão a planear atividades de norte a sul, desde manifestações públicas a pequenos encontros com comunidades locais. Conhecida como Caravana Zapatista pela Vida, a coordenação portuguesa conta com cerca de 20 grupos, que incluem organizações contra a mineração de lítio, casas de acolhimento para pessoas trans imigrantes, comunidades racializadas, plataformas antirracistas, coletivos de defesa do direito à habitação e associações ambientais.
A planear encontros e eventos desde as Covas do Barroso à Cova da Moura, passando pelo Alentejo e por repúblicas de estudantes em Coimbra, a missão, diz a Caravana, é “facilitar a comunicação, a solidariedade e a partilha de conhecimento e experiências entre as diferentes lutas sociais e ambientais”.
Já é noite quando a manifestação chega por fim à Praça Colombo, e o barco zapatista para em frente a uma monumental estátua de Cristóvão Colombo.
Do pedestal de 17 metros, um Colombo esculpido em mármore branco segura uma bandeira com uma cruz, apoiado num globo olha para o céu. Cá em baixo, do outro lado da praça, um pequeno palco foi montado para receber e ouvir os zapatistas.
Uma faixa onde se lê “Não nos conquistaram”, que esteve na frente da manifestação, é colocada nos “Jardins do Descobrimento” da Praça Colombo, junto a esculturas conhecidas como “Monumento ao Descobrimento da América”, em homenagem às principais figuras do império colonial espanhol.
"O Estado Mexicano não nos reconhece como nacionais. Somos estranhos, estrangeiros, indesejados, inoportunos nas mesmas terras que foram cultivadas pelos nossos antepassados", disse Felipe.
No centro do jardim está o que se considera ser a maior bandeira de Espanha do mundo, com quase 300 metros quadrados e 35 quilos. Esta praça é normalmente o local escolhido para os eventos nacionalistas e manifestações da extrema-direita, como as organizadas pelo partido Vox.
Quando chegam ao pequeno palco preparado para os receber, os sete zapatistas começam a partilhar uma mensagem de humildade que contrasta em tudo com os monumentos que os rodeiam.
“Queremos agradecer-lhes”, diz Bernal, o primeiro a aproximar-se do microfone. “Isto que fazemos hoje talvez lhes pareça pouco, mas para nós, povos zapatistas, é muito grande.” Em silêncio, centenas de pessoas rodeiam o palco para ouvir a mensagem que as comunidades zapatistas prepararam para a data simbólica.
Os representantes do EZLN raramente dão entrevistas. Publicam comunicados e fazem declarações públicas. Em Madrid, o Esquadrão 421 diz que pela sua voz falam as comunidades zapatistas.
“Atravessámos o oceano para dizer estas palavras, para estar com vocês, para vos ouvir e para aprender convosco”, continua Felipe, assim que toma a palavra. “Com vocês encontrámos carinho, cuidado, respeito. O Estado Mexicano não nos reconhece como nacionais. Somos estranhos, estrangeiros, indesejados, inoportunos nas mesmas terras que foram cultivadas pelos nossos antepassados.”
Debaixo da enorme bandeira espanhola que se impõe no centro da praça, os zapatistas partilham uma mensagem internacionalista e criticam os nacionalismos que dividem as lutas por justiça social.
“Por trás dos nacionalismos escondem-se não só as diferenças, mas também os crimes”, diz Yuli quando é a sua vez de falar. “Sob o mesmo nacionalismo abrigam-se o macho violento e a mulher agredida, a intolerância heterossexual e a alteridade perseguida, a civilização predadora e o povo originário aniquilado, o capital explorador e os trabalhadores subjugados, os ricos e os pobres.”
“As bandeiras nacionais ocultam mais do que nos mostram. Por isso, o nosso empenho pela vida é mundial. Não reconhece fronteiras, línguas, cores, raças, ideologias, religiões, sexos, idades, tamanhos, bandeiras”, continua.
Na mensagem preparada pelas comunidades zapatistas para assinalar cinco séculos de “resistência indígena”, as preocupações com o colapso ambiental ocupam um lugar central.
“Olhamos e sofremos uma destruição gigantesca, a da natureza, com a humanidade incluída. Por baixo dos escombros, das cinzas, do lodo, das águas sujas, das pandemias, da exploração, do desprezo, do despojo, do racismo e da intolerância, há seres humanos sem vida. E cada vida é uma história que se converte num número, numa estatística, num esquecimento”, afirmam, alertando para a necessidade urgente de construir novas relações entre a humanidade e a natureza.
A delegação termina o discurso com um apelo a que se juntem as diferentes lutas para construir um novo sistema, “não perfeito, mas sim melhor.”
“Porque viver não é só não morrer, não é sobreviver. Viver como seres humanos é viver com liberdade. Viver é arte, é ciência, é alegria, é dança, é luta”, garantem os zapatistas em Madrid. “Aprendemos que em cada dissidência, em cada rebeldia, em cada resistência há um grito pela vida”, concluindo que é disso que se trata esta viagem, de uma defesa da vida.
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