Os protestos contra a reforma das pensões do presidente francês têm perdido força, mas há quem continue a resistir. Bloqueios de estradas, de linhas ferroviárias, de liceus e até de incineradoras de lixo acontecem por todo o país. Quando não usa violência física, a polícia desfaz os bloqueios com gás lacrimogéneo.
É sábado de aleluia, véspera de Páscoa, dez e meia da manhã. Os passeios da avenida Saint-Germain, no denominado Bairro Latino, enchem-se de turistas e moradores que se acotovelam entre bancas de queijeiros, padeiros e tapeceiros. Cheira a anis, a erva-doce e a frango assado. Um céu limpo e um sol quente convidam parisienses e visitantes a sair à rua, depois de mais de uma semana de tempo fusco, ventania incomum, e temperaturas baixas, a bater nos 0ºC em certas madrugadas.
Por entre a multidão quotidiana move-se uma pequena procissão de 30, talvez 40 pessoas, em direção à esquadra central dos 5.º e 6.º arrondissements de Paris, na margem esquerda do rio Sena. Não são as primeiras a aparecer: a chegada deste grupo dobra o número de gente à porta do comissariat da Polícia e espoleta um “on est lá, on est là” [“aqui estamos, aqui estamos”], cântico marcante do movimento dos Coletes Amarelos, reapropriado desde janeiro para as ações e manifestações contra a reforma das pensões.
Uma mulher desenrosca a tampa de alumínio da sua garrafa térmica e começa a bater compassadamente numa das grades que bloqueia a entrada da esquadra, enquanto grita: “libertem o nosso camarada!”. Toda a gente se junta aos seus gritos batendo palmas no ritmo, assobiando a cada sílaba. Do outro lado das grades, meia dúzia de agentes da Polícia Nacional observam sem deixar escapar qualquer expressão.
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Sabe-se pouco sobre o “camarada” detido na esquadra. Apenas que é um dos três jovens detidos (arbitrariamente, segundo várias testemunhas) três horas antes, no bloqueio popular à incineradora de resíduos urbanos de Ivry-sur-Saine, a maior da Europa, no limite sudeste da cidade de Paris. Mas não se sabe qual deles. A única informação que se tem sobre as suas identidades é que um se chama Joseph, segundo um homem de 71 anos a quem terá confiado a sua mochila, os seus documentos e o nome do seu advogado enquanto era detido. Ninguém tenciona arredar pé enquanto não for libertado.
Desde o levantamento da greve dos profissionais da recolha do lixo de Paris, no dia 28 de março, que os bloqueios populares das três incineradoras de resíduos da cidade (em vry-sur-Saine, Issy-les-Molineaux, e Saint-Ouen) têm acontecido quase diariamente. Seguem duas estratégias: bloqueios totais ou com “filtragem”, permitindo que um camião do lixo entre de vez em quando. São todos acompanhados de perto pelas autoridades, e desfeitos violentamente quando juntam um número considerável de pessoas.
Há dois grandes objetivos: fazer apagar os altos fornos que queimam lixo para produção de energia elétrica e saturar os aterros e as lixeiras, obrigando a parar a recolha do lixo na cidade. Em 2020, uma greve conjunta dos trabalhadores das três lixeiras criou o perigo de falhas de energia na capital francesa e a empresa estatal que as gere, a Syctom, chegou a falar num possível “desastre ecológico”.
Já a falta de recolha do lixo nas ruas de Paris pode significar um problema alargado de saúde pública, ajudando à propagação de pragas de ratos, ratazanas e baratas. Mas tem ainda uma outra dimensão, mais simbólica: a acumulação de lixo nos passeios da cidade, para “tornar o descontentamento visível”, como disse um manifestante ao Setenta e Quatro, num dos bloqueios à incineradora de Saint-Ouen.
Os bloqueios às incineradoras de lixo têm acontecido por toda a França, em cidades como Toulouse, Nantes, Briec e Rennes. Como em Paris, têm sido, na sua maioria, formados por cidadãos comuns, embora vagamente organizados e sustentados pelas forças sindicais. Repetem-se desde janeiro, quando o presidente francês, Emmanuel Macron, revelou os detalhes da sua reforma dos sistema de pensões, planeada para ser aplicada em 2019, mas atrapalhada pela pandemia de covid-19, e agora prevista para aplicação a partir de outubro de 2023.
A famigerada reforma, que Macron prometia desde 2017, prevê a passagem da idade mínima de aposentadoria dos 62 para os 64 anos e um mínimo de 43 anos de descontos como condição para se receber pensão completa (cerca de €1400), quando antes seriam 42. Além da impopularidade da reforma, a sua passagem sem votação nas duas câmaras do parlamento francês, através da invocação da alínea 49.3 da constituição gaulesa, fez com que as ações de protestos se intensificassem a partir de meados de março.
Desde o final de março que os bloqueios populares das três incineradoras de resíduos de Paris têm sido quase diários. Seguem duas estratégias: bloqueios totais ou com “filtragem”, permitindo que um camião do lixo entre de vez em quando.
A estes bloqueios juntam-se outros em diversas modalidades. Nos últimos três meses, manifestantes e sindicalistas bloquearam diversas estradas, incluindo, em Paris, as de acesso ao aeroporto Charles de Gaulle. Nas últimas semanas, trabalhadores ferroviários bloquearam as gares de Lyon e de Montparnasse, ocupando as linhas de caminhos-de-ferro. Estudantes de todo o país têm bloqueado as entradas dos seus liceus e das suas universidades, complementando os bloqueios com ocupações.
Têm sido uma espécie de alternativa cidadã de resposta ao levantamento de greves e às requisições de trabalhadores para serviços mínimos. Não são táticas novas: foram amplamente usadas nos protestos dos Coletes Amarelos, quando se bloquearam sobretudo estradas e postos de combustível.
Em Toulouse, o bloqueio da incineradora de Mirail foi desfeito por ordem judicial no passado dia 5 de abril, ao fim de uma semana. O presidente da câmara da cidade afirmou que as ações de bloqueio limitaram gravemente a coleta de lixo e, consequentemente, a produção de energia derivante da sua combustão. Mais de 20 mil pessoas terão ficado sem água quente e aquecimento. O sindicato dos trabalhadores afirmou que era mentira, havendo alternativas para o abastecimento de energia, e o presidente da câmara acrescentou que não queimar os resíduos hospitalares, isso sim, poderia criar um problema sério de saúde pública. O tribunal deu razão ao autarca.
Esta quarta-feira, dia 12, os trabalhadores da recolha do lixo da cidade de Paris votaram a favor de uma nova greve, a começar no dia 13. É, uma vez mais, uma greve renovável — ou seja, o seu fim é indeterminado. A recolha do lixo será suspensa e o sindicato dos trabalhadores de saneamento urbano e tratamento de resíduos da CGT espera que os trabalhadores das empresas privadas se juntem. As três incineradoras da cidade serão bloqueadas por piquetes de greve. O objetivo é "tornar Paris numa lixeira pública".
No dia anterior, sexta-feira, foi combinado, pelas redes sociais, um “bloqueio surpresa” da incineradora, a acontecer a partir das 17 horas. Ao início da manhã desse dia, agentes da Polícia Nacional, incluindo alguns da CRS (Compagnies républicaines de sécurité), corpo especializado em “manutenção e restabelecimento da ordem”, desmancharam o bloqueio inicial, com perto de uma centena de pessoas, com a aplicação desmedida de golpes de cassetete e gás lacrimogéneo. A entrada da incineradora foi evacuada e os populares dispersaram.
“O ponto de encontro é o jardim ao lado do Leroy Merlin, a partir das 16 horas”, dizia a mensagem reencaminhada por WhatsApp. A essa hora, o local ainda era vigiado pela Polícia Nacional, com pelo menos 15 agentes e três viaturas presentes. As pessoas foram chegando uma a uma, algumas de bicicleta, a maioria a pé. Uma delas trouxe um garrafão de café e copos de papel, outra biscoitos e uma terceira fruta, e a bebida e as comidas foram distribuídas por quem quis.
Um homem, com barba de dois dias e vestido com o uniforme dos trabalhadores da recolha do lixo, aproximou-se do grupo e queixou-se de ainda estar a sentir um ardor nos olhos, resultado do gaseamento daquela manhã. Uma mulher, mais velha, de boina de ganga e óculos escurecidos, disse-lhe: “andá cá, tenho aqui uma poção mágia”. Tirou do bolso um frasco de perfume com um líquido translúcido, abanou-o, transformando-o numa substância espumosa e leitosa, e exclamou, a sorrir: “é uma velha receita de família”.
Aspergiu-lhe os olhos chorosos e avermelhados com aquela substância e advertiu: “nunca, mas nunca, lavar a cara com sabão depois de levar com gás lacrimogéneo”. Tirou um papelinho escrevinhado de um outro bolso e explicou a receita: “uma colher de café de vinagre de cidra, água destilada e uma pastilha de remédio para a azia”. Mais aliviado, já sem semicerrar os olhos, o homem assumiu a liderança daquele pequeno grupo de gente e perguntou, como quem afirma: “vamos bloquear isto ou vamos para casa? Não estou aqui para contar camiões”.
Eram já 17h20 e, perante a presença da Polícia, resolveu-se improvisar uma assembleia geral em frente à entrada da incineradora, para decidir, afinal, o que fazer. Durante sensivelmente meia-hora discutiu-se, numa roda, qual a forma mais sensata de agir, com várias pessoas a apresentar os seus argumentos. “Se não estamos equipados para levar com gás, acho que não devemos bloquear, voltamos amanhã”, propôs um jovem militante do partido La France Insoumise.
A reforma das pensões prevê a passagem da idade mínima dos 62 para os 64 anos e 43 anos de descontos para se receber a pensão completa (cerca de €1400). Além de ser impopular, a aprovação da lei sem votação pelo parlamento francês fez com que os protestos se intensificassem a partir de meados de março.
Num dos portões alguém pendurou um lençol grafitado a tinta cor-de-laranja: “As vossas granadas não pararão a nossa luta! Solidariedade com os feridos!”. A polícia tem desfeito os bloqueios das mais variadas formas, usando nenhuma, alguma ou muita violência. Tem sido comum o uso de gás lacrimogéneo para dispersar piquetes de greve e desfazer bloqueios em estradas, em incineradoras, e até em liceus. Nas manifestações, o seu uso é indiscriminado. Numa delas, o jornalista do Setenta e Quatro foi atingido na cara pouco depois de começar a filmar uma carga policial, apesar de estar claramente identificado como imprensa.
Numa amostra de cerca de 70 pessoas, é visível a diferença de idades, de ofício e de origem. São prevalentes os jovens e os velhos, talvez por terem mais tempo livre a um dia útil. Estudantes de cinema trocam ideias com senhoras reformadas que carregam termos com chá verde e caixas brancas com bolos e biscoitos. Um jovem de origem iraniana, chamado Mehdi, estudante de Engenharia Matemática, explica como “até as faculdades de engenharia estão a virar à esquerda”, porque será a sua geração a ter de encontrar “soluções tecnológicas para o colapso climático e é preciso repensar as lógicas de produção”. A todos é transversal a importância de uma união, alargada, de classe.
Um trabalhador dos serviços de limpeza da incineradora, de origem paquistanesa, prometeu estar ali na manhã seguinte com mais colegas, seus conterrâneos, mas apenas “se formos bem-vindos”, acrescentou. “Também queremos fazer parte desta luta, mas não gostamos de ser postos de parte”, queixou-se, “nem de nos sentirmos desprotegidos, especialmente contra a polícia”. “São todos bem-vindos, somos todos franceses aqui”, garantiu a jovem que conduzia a ordem de trabalhos da assembleia geral. Um pouco atrás, com um dedo no ouvido, uma mulher fala ao telemóvel em grego.
Pouco depois, votou-se, então, que não se faria bloqueio nenhum naquele final de tarde, por receio da repressão violenta da polícia, que entretanto já havia chamado reforços perante a reunião de várias dezenas de pessoas no portão da incineradora. Ficaria para o início da manhã do dia seguinte, sábado, o mais cedo possível, antes da chegada dos primeiros camiões de lixo.
Muita gente decidiu, simplesmente, deixar-se ficar. Acendeu-se um fogareiro para os mais friorentos e alguém trouxe um bolo de aniversário, apesar de ninguém ali fazer anos. Distribuiu-se café quente. “Então, até amanhã”, gritou uma jovem para toda a gente ouvir, incluindo os agentes policiais, “e não se esqueçam das máscaras”. “Eu trago a poção mágica”, rematou a senhora da boina de ganga.
Os primeiros manifestantes chegaram, como combinado, à incineradora de Ivry por volta das 6h30 do dia seguinte, sábado. Pelas 7h30 já se contava cerca de uma centena de pessoas. Havia café quente e dois homens cozinhavam crepes ao lume. Ainda não eram 8 horas quando um dispositivo policial de cerca de 30 agentes carregou sobre a multidão de gente — estudantes, trabalhadores, sindicalistas, aposentados — que impedia os camiões de recolha do lixo de entrar na incineradora.
As três detenções foram feitas nesta primeira carga. Ao contrário do que havia sucedido no dia anterior, a polícia não usou cassetetes nem gás lacrimogéneo para desfazer o bloqueio. Uma testemunha, que não quis identificar-se, terá visto um agente desembainhar o cassetete retrátil e ser repreendido por um superior, que lhe terá dito: “hoje não”. Um representante dos funcionários da incineradora disse ao Setenta e Quatro que o seu sindicato havia informado a Polícia Nacional de que os trabalhadores entrariam em greve se houvesse agressões ou gaseamentos.
A maioria das pessoas permaneceu no local, de forma dispersa, até por volta das 8h30, quando a polícia carregou novamente, sem grande violência, empurrando quem restava pela estrada paralela à incineradora. O trânsito automóvel e o acesso à entrada da incineradora foram fechados por duas carrinhas policiais, enquanto uma linha cerrada de agentes fortemente equipados avançava, lentamente, por essa mesma estrada, repelindo qualquer tentativa de permanência de civis no local.
O bloqueio foi desfeito e a maioria das pessoas dirigiu-se para a esquadra central do 13.º arrondissement, distrito onde se situa a incineradora, procurando saber o paradeiro dos detidos e espalhando a mensagem por variados grupos de chat. Formando-se uma espécie de vigília espontânea, as cerca de 70 pessoas no largo em frente ao comissariado da Polícia só conseguiram obter informações por volta das 10h15, depois de uma deputada municipal entrar na esquadra, envergando a faixa tricolor de representante eleita, para saber quem estava detido e porquê.
Do cimo de um banco, palanque improvisado, informou a multidão de que dois dos detidos estavam em parte incerta, sob custódia policial, e o terceiro estaria, por alguma razão, a ser interrogado na esquadra central dos 5.º e 6.º arrondissements. Convocou-se mais uma assembleia geral, concordou-se verbalmente que a vigília se mudaria para lá. Quem quisesse poderia apanhar o autocarro, se não quisesse ir a pé. Depressa se juntou um grupo disposto a calcorrear a distância até ao Bairro Latino, liderado por quem sabia o caminho mais rápido. Criou-se, espontaneamente, uma procissão.
“É longe?”, perguntou alguém. "Não", responde um homem idoso, alto e encorpado, de boina de tweed, vestido de fazenda e bombazine, com ar de quem veio diretamente da quinta e só se esqueceu do cão-pastor, abrindo um sorriso. "Em Paris tudo é perto, no campo é que andas dois quilómetros e parece que chegaste ao cu do mundo". Efetivamente, foram apenas dois quilómetros, percorridos a pé, por um cortejo de cerca de 40 pessoas, em 20 e poucos minutos, graças à planura de Paris.
Passaram-se duas horas em frente à esquadra, gritando palavras de ordem, batendo com púcaros, e trocando alguns dedos de conversa, com pequenas informações a chegarem de tempos a tempos. Grupos de turistas passavam curiosos, uns acabados de chegar, puxando maletas com rodas, outros empunhando gelados ou pretzels caramelizados dos vendedores da praceta do outro lado da esquina. Os mais jovens entre a multidão apelavam a que os restantes cantassem consigo: “Macron está em guerra com o povo/ E a sua polícia também / Mas nós continuamos determinados / A bloquear o país”. Em francês a quadra rima.
O jovem detido saiu finalmente, depois de identificado e interrogado, sem alguma vez lhe ser permitido contactar a sua advogada ou os pais, o que é ilegal, visto que tem 17 anos. É um dos vários estudantes liceais que estavam no bloqueio. Perguntam-lhe se está bem, diz que sim. Se lhe bateram, diz que não. “Acho que me prenderam porque um bófia estava a apontar o cassetete para mim e eu fiz assim com a mão para o enxotar”, confessa, replicando o gesto, enxotando o ar à sua frente. “Disseram-me que tinha atacado um agente de polícia.”
Várias pessoas aproximam-se dele, dando-lhe contactos de variadas “legal teams”, equipas de advogados e advogadas voluntárias que se dispõem a defender e a aconselhar legalmente pessoas detidas em bloqueios, piquetes e manifestações. O estudante não quer dar o seu nome, mas não é Joseph, um dos outros detidos, cujos pertences ficaram com o homem que aproveita para ironizar: “parabéns, passaste a ser ficha S”. Em França, a “ficha S” é usada para categorizar alguém que deve ser monitorizado pelo Estado, considerado uma ameaça à segurança nacional.
Entre as sete da manhã e as cinco da tarde do dia 3 de abril, segunda-feira, nenhum camião entrou na incineradora de resíduos de Saint-Ouen, em Seine-Saint-Denis, fronteira periférica a norte de Paris. À beira do rio, as suas três chaminés, delgadas e cinzentas, destoam sobre as mais recentes edificações: prédios de escritórios e apartamentos de luxo que deverão formar um “ecobairro” de 100 hectares, onde antes se situavam as docas de Saint-Ouen-sur-Seine.
São entre 20 a 50 (o número vai oscilando durante o dia) as pessoas a bloquear a rampa de acesso à incineradora. Revezam-se em turnos informais, especialmente as que ostentam coletes da central sindical CGT, sempre atentas às redes sociais e aos grupos de chat, pedindo que venha mais gente, quem puder, quem conseguir. Um pequeno “coup de main”, para que o bloqueio continue impermeável.
Nas outras duas incineradoras — em Ivry-sur-Seine, a sudeste, e Issy-les-Molineaux, a sudoeste — há mais gente, chega-se à centena. São maiores e é preciso garantir que os fornos continuam apagados. Ainda assim, o grupo que se junta em Saint-Ouen não deixa de ser heterogéneo.
A polícia tem desfeito os bloqueios usando nenhuma, alguma ou muita violência. O uso de gás lacrimogéneo tem sido comum, e nas manifestações é indiscriminado.
Um homem já aposentado, de boina e camisa de flanela, distribui biscoitos de chocolate. Três jovens, estudantes universitários, chegam pouco depois da hora do almoço com dois garrafões de água. Há uma pequena tenda montada, uma churrasqueira móvel e um saco de carvão. “Se calhar acendíamos uma braseira, não?”, pergunta uma sindicalista enquanto enrola um cigarro, encolhendo os ombros com frio.
“É preciso que o lixo se acumule na cidade e que o nosso descontentamento seja visível”, afirma Simon, ator de 37 anos. “Não somos muitos, aqui, mas se multiplicarmos os nossos esforços acabaremos por causar impacto e, talvez, forçar o governo a ceder”, explica ao Setenta e Quatro. “Cada um faz o que pode: eu abdiquei de um dia livre para vir impedir que queimem lixo”, diz, rematando com uma gargalhada.
Francine, com 81 anos, não é tão otimista, e considera que os sindicatos e os partidos de esquerda estão a moderar-se demasiado: “o Partido Comunista [Francês] quer um referendo e os sindicatos dizem que querem negociar, mas quando os trabalhadores se sentam à mesa de negociações é porque já perderam”. Francine está em todos os grupos de WhatsApp, Signal e Telegram, e em alguns no Facebook.
Francine tem passado as semanas em piquetes, assembleias gerais e manifestações. Se algumas das reuniões e ações de protesto têm grande afluência, outras esgotam-se em poucas horas, ou não chegam a acontecer por falta de gente. É comum ver as mesmas caras em sítios e dias diferentes, gente que se desdobra entre protestos e piquetes, e receber mensagens que dizem: “precisamos urgentemente de gente no bloqueio tal” ou “tal ajuntamento acaba de ser dispersado, éramos pouco mais de um dúzia”. Estas ações, planeadas informalmente, quase boca-a-boca, parecem demasiado frágeis e demasiado dependentes da boa vontade, da disponibilidade de horário e da vivacidade de cidadãos desorganizados.
Pelas 17 horas, já o sol se escondeu atrás da incineradora. Os mais friorentos procuram um resto de sol para aquecer o peito e a cara. Outros sacodem as pernas para pôr o sangue a circular. Vai-se fazendo conversa. De tempos a tempos alguém faz a atualização do que se sabe e do que se precisa. Pergunta-se quem é que pode ficar até à meia-noite. As incineradoras funcionam 24 sobre 24 horas.
Subitamente, um camionista tenta furar o bloqueio, avançando perigosamente com o camião sobre as pessoas, aos solavancos, para que se desviem. Ninguém se mexe e toda a gente grita “arrêtez!”. É um camião branco de uma empresa privada de recolha de lixo. A maior parte da recolha é feita por empresas municipais, em camiões verdes, e esses foram passando ao largo durante todo o dia, sem sequer abrandarem, com os condutores a apitar efusivamente de punho erguido dentro das cabines.
Os trabalhadores dos serviços públicos de recolha do lixo estiveram em greve de 6 a 29 de março, em Paris. Trabalhadores de algumas empresas privadas juntaram-se-lhes na última semana da greve recondutível. Estes últimos juntaram-se não apenas em protesto contra a reforma das pensões, mas também em solidariedade para com os colegas do setor público e, especialmente, em luta por melhores condições de trabalho.
Entretanto, dois sindicalistas apressam-se a subir à janela do camionista para apaziguar a situação do camião da empresa privada, mas a discussão arrasta-se, bem acesa, durante mais de dez minutos. O camionista diz que tem de trabalhar. Pega num papel, mostra que tem ordens para estar ali, àquela hora, para descarregar aquele lixo. Um dos sindicalistas pede-lhe um esforço, que “temos todos de nos unir para fazer cair a reforma”. O fura greves infla as bochechas e aperta-as com o polegar, fazendo um barulho de peido, que é como quem diz, em francês, “e a mim que me importa?”.
Descendo a rampa, dois trabalhadores da incineradora intervêm, pedindo compreensão e camaradagem ao camionista — e colocando barreiras de plástico à frente do camião. Mais uns minutos de conversa e uma chamada telefónica (inaudível) e o camionista parece dissuadido a não entrar — mais pela presença de dois trabalhadores que pelo argumento de solidariedade de classe. Acede, aparentemente, fazendo marcha-atrás, obrigando o trânsito a parar no decurso da manobra apertada, e segue viagem.
Segundos depois alguém repara que, ao fundo da rua, o mesmo camião está a entrar na incineradora pela saída. Por momentos, toda a gente se desloca para lá, uns com mais pressa que outros, tentando impedir que o bloqueio se desfaça ao fim de dez horas, encontrando um grupo de oito seguranças privados, cada um maior que o outro, que, na confusão, empurram dois dos homens do grupo com alguma violência.
“Somos todos trabalhadores aqui”, grita um sindicalista com o cabelo grisalho em rabo-de-cavalo e um cigarro pendurado na boca. “vocês querem trabalhar mais dois anos?”. “Eles estão só a cumprir ordens”, ironiza Francine, “estão a cumprir uma missão, deixa-os estar”. Um camião branco que sai, obrigando a pequeníssima multidão a dispersar, coloca água na fervura. O camionista olha cá para baixo e junta as mãos como quem pede desculpa.
Thierry, carpinteiro, lamenta-se: “é assim que nos separam, põem-nos uns contra os outros”. Vive em Champigny-sur-Marne, nos banlieues a leste da cidade, e veio “fazer umas horas, porque todos temos de ajudar um bocadinho”. Considera que os ataques aos trabalhadores se têm intensificado nos últimos anos, em várias frentes, desfazendo “o próprio tecido social”.
“Os imigrantes estão a perder direitos e os jovens estão a ser lançados para um mercado de trabalho cada vez mais precário e degradado”, diz, lentamente. “E agora vão ver os pais a sofrer para trabalhar mais dois anos”, conclui, encolhendo os ombros, esfregando as mãos em frente ao peito para espantar o frio.
Levantando os olhos para os edifícios que ladeiam a incineradora, aponta com o nariz e repara que a maioria daqueles apartamentos serve apenas para especulação imobiliária. “Estão quase todos vazios”, afirma, “à espera de valorizar”. “Esta é uma zona periférica, de bairros operários, de gente de trabalho, e, agora, até aqui as rendas não param de aumentar”. “Não sei para onde vamos”, sentencia, finalmente, antes de dar as boas tardes e se ir embora. “É que daqui a Champigny ainda é uma hora de comboio”, justifica-se.
Os bloqueios de incineradoras continuam por toda a França. Em Paris, são uma tentativa de prolongar, de alguma maneira, a greve dos trabalhadores de recolha de lixo, levantada a 28 de março, e manter a pressão sobre os poderes municipais. Frágeis na sua maioria, uma união de trabalhadores, estudantes e reformados conseguiu, ainda assim, fazer apagar alguns fornos. Alguns dias amanheceram sem o fumo branco do lixo queimado. Não se sabe se é verdade que os bloqueios podem causar falhas de energia na cidade, mas a intensa e desproprocional presença policial em cada um parece mostrar que há essa preocupação.
No dia seguinte, não houve bloqueio em Saint-Ouen. A polícia chegou primeiro, antes das 6h30, dispondo duas viaturas em frente à entrada da incineradora para dissuadir qualquer tentativa de refazer o blocage. Ao virar da esquina, antes de se entrar no jardim das docas de Saint-Ouen, uma parede está coberta com cartazes vermelhos, ilustrados com uma casa a arder e anunciando uma manifestação pelo clima. Em garridas letras amarelas lê-se em francês: “ESTAMOS TODOS NA MERDA”.
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