Aprendeu a ler e a escrever com quatro anos. Nunca mais aprendeu nada. Já foi assistente editorial, agora recebe um bom salário.

Salvar o Fogo - Brasil, Mutatis Mutandis

Itamar Vieira Júnior procura repetir o sucesso de Torto Arado buscando o mesmo espaço, as mesmas personagens (algumas) e as mesmas leituras acertadas, ainda que superficiais e pouco subtis, das relações de poder de um Brasil prestes a transformar-se naquele que conhecemos. O sucesso da sua leitura política das relações religiosas e de raça talvez seja mais importante que o mérito literário do romance.

Recensão
8 Junho 2023

Quando estudei escrita em Inglaterra, um dos meus professores dizia muitas vezes que uma obra só está acabada quando o autor souber responder a qualquer pergunta que alguém lhe possa fazer sobre ela. A intenção dele era reforçar o caráter decisivo do ato de criação. Nada acontece por acaso. Não há musas nem escrever é um processo demiúrgico. 

Uma das decisões mais marcantes de Itamar Vieira Junior é o uso extensivo do pretérito imperfeito ao longo dos trechos narrados por Moisés e Luzia. Na terceira parte do romance, narrada na terceira pessoa, esse uso é muito menos frequente. O pretérito imperfeito tira o leitor da ação, dando-lhe um caráter inespecífico. Presumivelmente, a intenção do autor seria dar-nos uma visão do quotidiano das personagens, ao invés de apenas algumas cenas. Confundir a dor individual da personagem, sentida num momento, com a dor coletiva da comunidde, sentida ao longo do tempo. 

Durante páginas e páginas deste romance, Vieira Junior mantém-nos a uma certa distância de segurança, tornando impossível que nos relacionamos plenamente com as suas personagens. Não funciona, e a falta de subtileza desta decisão é um prenúncio para o que se segue.

As raízes do Brasil moderno

O romance conta-nos a história de duas personagens, Moisés e Luzia,  narradores da primeira e segunda parte do livro, respetivamente. Fazem parte de uma pequena comunidade rural, altamente empobrecida e racializada, dominada política e economicamente pela Igreja Católica, que impõe leis e impostos mais ou menos a seu bel prazer.

A ação de Salvar o Fogo desenvolve-se durante os anos 1960 no Brasil, um período de ditadura, que nunca é referida no romance. Esta sim é uma decisão feliz, porque se torna claro para todos o quão pouco o Estado importa para a vivência destas pessoas. Não o conhecem, não contam com ele. O Estado brasileiro, quando se nasce pobre, negro ou indígena, longe dos centros de poder, conta pouco. Quase não chega a ser real.

A falta de subtileza do romance volta a sentir-se aqui, quando Itamar Vieira Junior nos expõe esta população, abandonada pelo Estado, à mercê de uma Igreja Católica que a explora e maltrata, sem grandes ou nenhumas opções para melhorar a sua vida. Eis aqui o que acontece a quem não paga o imposto exigido pela Igreja:

“Mas nem todos conseguiam pagar. Acumulando dívidas ano após ano, algumas famílias iam sucumbindo ao destino de serem excluídas do convívio de sua gente. Nos sermões proferidos nas missas, e mesmo diante do orgulho dos bons pagadores, se enchiam de uma vergonha que tornava a convivência cada vez mais difícil. Por fim, quando não morriam de velhice ou de doença, deixavam a Tapera pelo rio, nos saveiros, ou pela estrada, nos velhos ônibus, como um dia aconteceria comigo.”

Impõe-se uma questão: as pessoas que pagavam a horas não morriam de velhice ou doença? Não deixavam Tapera pelo rio ou pela estrada? A falta de nuance no tratamento destas relações de poder, essencialmente bem interpretadas, acaba por perverter a intenção do romance. Em vez de o leitor encontrar injustiças históricas e desequilíbrios de poder baseados em estruturas de opressão, encontra-se quase perante uma caricatura digna de um blockbuster de Hollywood, em que os maus são mesmo muito maus e os bonzinhos são mesmo muito bonzinhos.

A tese do romance, ou parte da tese, é evidente: os desequilíbrios de poder que se sentiam no período do romance são antigos e perduram até hoje. O racismo, o colorismo, a opressão eurocêntrica de base cristã sobre os povos nativos e escravizados, são tudo fenómenos de grande impacto, continuando até hoje. Essa tese não está errada.

O diagnóstico de Itamar Vieira Junior está correto

Jair Bolsonaro, que governava o Brasil quando saiu Torto Arado, o primeiro romance do autor (e onde este universo se inaugura), e durante o período de escrita de Salvar o Fogo, é talvez a face mais visível da manifestação contemporânea destas mesmas opressões.

Deus acima de tudo, Brasil acima de todos é um dos seus slogans de propaganda favoritos e não deixa grande margem à interpretação do que pretende a direita conservadora brasileira, aliada a um cristianismo evangélico cada vez mais radicalizado. Fábio Marton publicou há poucos anos no The Intercept Brasil um texto extenso e bem documentado sobre como esta mitologia militarizada do catolicismo brasileiro leva a um protestantismo cada vez mais beligerante. 

São estes os fios que o autor tenta ligar, as costuras que procura expor. Como a opressão religiosa e política de todas as múltiplas identidades que convivem no Brasil cresce, se manifesta, se impõe, e, em última análise, se eterniza.

Mea Maxima Culpa

Um dos fios que causará certamente mais debate, caso este livro atinja a visibilidade do seu predecessor, é o tema do auto-ódio. Manifesta-se mais evidentemente na mãe de Moisés e Luzia, claro, mas ganha talvez dimensão literária apenas na filha, que narra este passo:

“Voltamos para casa, as três, sem temer a maledicência da vizinhança. O pano amarrado à árvore seria encontrado mais cedo ou mais tarde, mas quem diria ser o feitiço de nossa casa? Rezávamos, éramos católicas, batizadas, crismadas, praticantes. Éramos assíduas às missas e guardávamos os dias santos. Tanto era que depois do crisma o povo me deixou mais em paz; está contida, afastada, do demônio que cospe fogo. (...) Nos dirigimos ao loco por desespero e mais alguns dias tudo estaria no passado outra vez. Se Deus permitisse, não precisaríamos mais voltar à mata.”

Não só é claro quem Luzia teme, a sua comunidade, como também é evidente outra coisa: ela tem fé nas crenças antigas que lhe são agora proibidas. No desespero, é a elas que recorre. Pede ao Deus cristão apenas que nunca a ponha novamente numa situação de precisar desses espíritos que estão a ser castigados.

A perseguição religiosa no Brasil é um fenómeno conhecido e, previsivelmente, as religiões de matriz africana, como a Umbanda e o Candomblé, são as mais atingidas. Tanto no estado de São Paulo como no do Rio de Janeiro, a diferença entre a perseguição a estas religiões e a quaisquer outras é enorme. Ver os vídeos que surgem no contexto destas notícias pode ser perturbante para pessoas mais sensíveis.

Vieira Junior problematiza esta questão como talvez poucas outras no romance, criando um raro cenário em que a vítima e o opressor não são claros e bem definidos. O policiamento deste “fogo” é feito não só pela Igreja como pela própria população, não só pelos brancos como por todos.

O espírito do tempo

É indiscutível que Salvar o Fogo identifica bem as desigualdades históricas que trata neste romance. As vendas extraordinárias do romance (bateu os 37 mil exemplares ainda em fase de pré-venda), assim como o palmarés notável de prémios do seu predecessor, sugerem que tanto a crítica como o público estão famintos por narrativas que apontem aos vilões da história com a transparência de intenções de uma BD da Marvel. Narrativas no pretérito imperfeito, em que as dores individuais e as coletivas não corram o risco de se distinguir pela tridimensionalidade de uma personagem próxima do leitor. A literatura pode, no entanto, aspirar a mais.