Aprendeu a ler e a escrever com quatro anos. Nunca mais aprendeu nada. Já foi assistente editorial, agora recebe um bom salário.

Haverá ainda vida no interior?

Rui Couceiro é uma figura célebre das letras portuguesas e já o era muito antes do lançamento do seu primeiro romance, Baiôa sem Data para Morrer. Recebido com uma fanfarra que dificilmente poderia acompanhar um comum mortal, foi também alvo de algumas das críticas mais duras de escritores e editores menos próximos do colosso Porto Editora.

Recensão
14 Setembro 2023

Qualquer romance com o nome de Rui Couceiro na capa faria sempre enormes ondas na cena literária portuguesa. O agora Editor Executivo da Bertrand Editora (parte do grupo Porto Editora, do qual também é Coordenador Cultural) é uma figura inevitável da edição nacional há mais de uma década. A Porto não é uma editora normal em Portugal. É maior. Muito maior. Tem 1400 trabalhadores (a LeYa, o segundo maior grupo do país, tem menos de mil), é dona da rede de livrarias Bertrand, com 53 lojas pelo país, e também das duas únicas grandes livrarias online de Portugal, a Wook e a Bertrand.pt. Rui Couceiro está no centro desta massa.

O seu romance chama-se, então, Baiôa sem Data para Morrer, título que só fará sentido bem adentrados na narrativa, narrativa que não podia ser mais da ordem do dia.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.

Já não cabemos nas nossas cidades

“Não tinha mulher, não tinha namorada, não tinha filhos, não tinha emprego estável, não tinha dinheiro, não tinha aquilo a que supunha poder chamar-se felicidade (...) Porque não procurar aquilo que me faltava — e que eu, em boa verdade, não sabia o que era — no Alentejo dos meus antepassados?”

O protagonista da narrativa de Couceiro tomou uma decisão que não raras vezes surge proposta nos nossos medias: foi para o interior. As suas motivações são várias, começam e acabam com a perda de estabilidade laboral, mas a diferença de custo de vida é também uma das chaves. Porque está cada vez mais difícil construir uma vida nas cidades portuguesas.

A crise do imobiliário está a tornar-se tão profunda e incompreensível que começa a extravasar as fronteiras do país. Já lá vão os TikToks de nómadas digitais a cantar loas aos preços baixos de Lisboa perante os seus ordenados americanos e europeus. Desde a Bitcoin Beach ao New Expat Haven, as notícias de 2022 de alguns dos mais importantes jornais globais foram diminuindo até desaparecer.

Como? Assim: distritos como Évora e Bragança registaram subidas ainda mais acentuadas nos preços médios da renda que Lisboa ou Porto, cifrando-se a primeira nuns estonteantes 127% no período de apenas um ano.

Os termos para descrever o que está a acontecer ao custo de vida de quem vive nas nossas cidades começam a escassear, com o recurso a adjetivos cada vez mais coloridos (como “exuberantes”) para descrever realidades a roçar o tétrico: o capital de entrada para comprar uma casa no Porto aumentou de 16 mil para 37 mil euros em apenas cinco anos.

Faz apenas sentido, então, que jovens como o protagonista de Rui Couceiro tenham um forte incentivo para recolher às terras dos pais ou dos avós, aldeias com menos acesso à restauração ou à cultura, mas talvez mais protegidas deste sorvedouro de poupanças.

Não se pode voltar para o que não existe

O homem que dá o título ao livro, um dos poucos a quem Rui Couceiro não dá um apelido colorido (exemplo: Ti Zulmira, Zé Patife, Daniel Verdete, Nélia Curandeira), dedica-se a um curioso mester. Caiar e restaurar as casas abandonadas da aldeia. 

Quando termina cada serviço, procura contactar os donos das respetivas habitações, frequentemente herdeiros citadinos, desinteressados e displicentes. Mas Baiôa não esmorece:

“Quando, cheio de cuidados, lhe perguntei se não temia que aquele esforço fosse inútil, se não era como despejar um copo de água no rio, respondeu-me com outra pergunta: e que importa isso? É inútil, mas é belo.”

As reportagens e histórias sobre a desertificação e abandono do interior tendem a afinar pelo mesmo diapasão que Baiôa. Este processo já vai muito adiantado e não tem solução evidente à vista. Olhares mais desapiedados, como o de uma das figuras mais cómicas e caricatas do Twitter (agora X) nacional, poderão inclusive dizer o que fica nas entrelinhas: não há nada a ganhar combatendo este processo.

A vida em Gorda-e-Feia (sim) é tão vazia e desnuda como qualquer estereótipo o faria supor e mesmo o nosso protagonista, que tanto combate o desânimo e se esforça por fazer acontecer vida ali, acaba, no final, por abandoná-la. Essa terra “infecunda”, como ele a chama, não está lá à espera de transplantes das cidades, por muito que se queira ver neles uma espécie de linha de salvação.

No final, resta-nos a prosa

Já terá ficado claro para o leitor o que pretende, portanto, este Baiôa sem Data para Morrer. Uma reflexão mais ou menos literária, mais ou menos densa, sobre a natureza do zeitgeist millennial, esta indecisão mascarada de dúvida existencial sobre o que fazer com a vida. A procura de novos destinos e soluções fora do convencional para consertar uma vida que se nos pôs difícil. Esta obsessão com a autenticidade e a pureza de tudo o que não seja a urbanidade que nos é familiar. A procura pela simplicidade depois de uma adolescência e jovem idade adulta a aprendermos as glórias da complexidade.

Nada disto é terrivelmente original, nem Couceiro o executa a um nível particularmente alto. Por vezes, perde-se nas suas referências, procurando um registo literário e vocabular mais exigente, apenas para depois se ver forçado a voltar, pela sua própria narrativa, às mensagens de telemóvel e conversas sobre a temporada do Sporting. Cede também à tentação (aparentemente irresistível) da literatura portuguesa contemporânea para as historinhas dentro da história, semeando o seu romance de vinhetas porventura caricatas sobre a vida na aldeia que talvez devessem ter conhecido a tesoura do editor.

O calcanhar de Aquiles do livro, no entanto, é o mesmo da vasta maioria dos romances de estreia: a prosa. É uma prosa indulgente, precisada de trabalho, preocupada consigo própria. António Lobo Antunes, aqui falando sobre os seus próprios primeiros livros, descreve de forma eloquente o problema:

Vejamos um parágrafo particularmente difícil:

“Era uma vez uma avó — o que pressupõe a existência de, pelo menos, um neto ou uma neta. O neto, supunhamos, era eu e a avó era a minha avó. Porém, esta equação presume também, para além de um avô e de um pai daquele ao qual aqui chamei neto, claro está, a existência de uma mãe, geracionalmente colocada entre a avó e o neto.”

Couceiro, apesar de toda a sua experiência como editor, não deixa de ser um romancista a dar os primeiros passos. É difícil lamentá-lo, porque evidentemente tudo fez para que assim fosse, mas é inevitável supor que talvez fosse melhor para a carreira literária do autor não ter sido alvo de tamanha campanha publicitária com este livro.

Um livro que merecia mais

Quem tiver lido a seção anterior desta crítica poderá ficar com a impressão de que o livro é péssimo. Não é. Couceiro consegue encontrar um fio para a sua história e criar pelo menos uma personagem memorável em Baiôa. O final é subtil e elegante. As últimas páginas são, com alguma distância, as melhores do livro:

“A solidão obriga-nos a refletir e eu confiei que essa seria a solução para aquele que eu era. E foi, mas somente em determinada medida, porque estar só nos deixa num estado de nudez perante nós próprios e eu não estava preparado para me olhar ao espelho, nunca me habituara a ter tempo para pensar. Só que ali era fácil conhecer o tempo. Era ver um gato ou uma ave de rapina a caçar; um detém-se, absolutamente imóvel, na terra; a outra, planando no ar, observa; esperam ambos o melhor momento e obtêm a máxima recompensa por conta desse refrear dos intentos, dessa resistência ao impulso do que é mais fácil.”

Voltar a este livro depois de O Quarto do Bebé, romance que critiquei há duas semanas, foi uma decisão ponderada. Procurei, como procuro sempre, não me deixar influenciar na minha apreciação pela crítica alheia, pelo zunzum que rodeia alguns destes livros. Deixar passar um ano antes de escrever sobre eles talvez seja uma boa premissa, ainda que ponha este texto fora do debate público acerca desta obra, que já se fez.

Saio desta leitura exatamente com a mesma impressão com que saí do romance de Anabela Mota Ribeiro. São livros decentes, escritos por autores obviamente cultos, mais que seguros da sua pena e das suas ideias. Não escapam, no entanto, às deficiências habituais em primeiros romances. Não são especiais. Não vêm revolucionar coisa nenhuma.

Se há uma ideia a reter destas duas críticas, é esta: ainda que o imperativo comercial assim o obrigue, quando um romance de estreia de uma figura célebre surgir pejado de panegíricos de grandes nomes da literatura nacional, o melhor é mesmo fazer de conta que não existem.