Aprendeu a ler e a escrever com quatro anos. Nunca mais aprendeu nada. Já foi assistente editorial, agora recebe um bom salário.

A escrita como resistência política

No livro Estendais, de Gisela Casimiro, cada um dos pequenos textos pode ser lido como um pequeno conto, um fragmento diarístico, ou uma crónica. As suas temáticas espraiam-se e fogem à definição. O fio comum que une toda esta obra, no entanto, é político: a autora reveste a sua escrita de uma resistência inflexível perante aqueles que queiram escrever a história sem si.

Recensão
6 Julho 2023

“Estes Estendais, este formato vidas-aos-elementos, é o que melhor permite prolongar a missão de habitar intencionalmente, em plena vulnerabilidade, a ternura complexa das nossas diferenças, o que fica depois do fim, o que nos prende e liberta.”

Estendais não foi pensado como uma obra única. Os seus textos, alguns pequeníssimos, com poucos parágrafos, encontram-se publicados ao longo dos últimos anos em periódicos e revistas. Livros com estas características tendem a ser duros de criticar, porque a qualidade dos textos tende a variar quase tanto como as suas características formais.

É o caso deste livro. Enquanto alguns textos concentram em si uma chama narrativa muito intensa, que prende o leitor e o transporta quase instantaneamente, com coisa de poucas palavras, para um momento da vida (ou da imaginação) da autora, outros quase se podiam confundir com relatos corriqueiros do dia-a-dia, esquecidos em segundos após terminar a leitura. Esse efeito, contraintuitivamente, enriquece a obra como um todo, pois atinge precisamente aquilo que Casimiro cita como "vidas-aos-elementos", um efeito de grande verossimilhança nestas narrativas que provavelmente não poderia existir sem a dose de normalidade que estas palavras também incluem.

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Capa Estendais
Capa do livro Estendais, de Gisela Casimiro e publicado pela editora Caminho em 2023.

É uma ideia diferente de registo histórico. É a história de um momento contada não pelas elites nos seus gabinetes em prédios de mármore nas capitais do Ocidente, mas pelas pessoas que se cruzam nas suas vidas normais, indo e voltando, fazendo-as acontecer.

A leitura como portal e passagem

Em Estendais, uma das preocupações de Gisela Casimiro é tornar este livro e estas palavras uma ponte de contacto entre a nossa realidade e a sua. Seria impossível no espaço desta crítica fazer uma análise minimamente capaz de todos os fios que nos estende ao longo de todos estes textos. Raça, feminismo, violência, viagens, cachupa, refugiados, felicidades e tristezas, dramas amplos e específicos, mas também muito amor e ternura. Tudo cabe neste livro e é nessa vida que reside a sua maior força.

“A escrita é uma disciplina solitária, como foi uma parte tão longa da minha vida. Um dia desaparecerei, mas poderão encontrar-me aqui. É onde venho para me reconhecer, para lembrar-me de que nunca estive realmente só.”


Na crítica anterior, Geovani Martins apontava para uma ideia similar: a escrita como veículo de resistência à imposição de uma verdade histórica distante da vida das pessoas, especificamente das pessoas pobres, daquelas que têm menos ferramentas para impor a sua vivência aos registos ditos oficiais.

Numa das crónicas mais intensas do livro, a autora fala-nos da crise de refugiados.

As vidas dos outros em À deriva e sem motor

Como já disse, um dos desafios de criticar um livro tão diverso e abrangente como Estendais é que para me focar nos temas de uma ou duas das crónicas vou deixar sem a mesma atenção dezenas de outras.

Eis porque me parece importante pegar neste À deriva e sem motor.

A crise de refugiados no Mediterrâneo está novamente a agudizar-se, apesar de nunca ter desaparecido com a menor atenção da comunicação social. Foram mais de 27 mil as travessias ilegais efetuadas no primeiro trimestre de 2023, um aumento de 305% em relação a 2022. Além disso, a Organização Internacional para as Migrações (OIM) alertou que, desde janeiro de 2023, 441 pessoas que tentavam fazer a travessia morreram, tornando este o trimestre mais letal desde o início dos registos em 2017.

Este texto em específico foi escrito muito antes disto, mas contém nele a impressão digital do que foi viver em Lesbos, como voluntária, a primeira vaga deste terror a que tantas pessoas, pais e mães com crianças, se arriscam diariamente para chegar à Europa. É um pequeno texto, de apenas quatro páginas, onde convivem contrastes que não vemos nas notícias:

“O turismo em Lesbos escasseia mas é ainda desesperadamente necessário, numa altura em que a consciência cívica e lazer parecem dois pólos opostos. A praia ainda é paradisíaca, Nela, podemos fazer o mesmo que em qualquer outra. Lesbos só não se terá tornado uma Chernobyl, provavelmente, porque os campos de refugiados ficam longe da praia, de outro modo não teríamos já influencers de smartphone em riste, tirando selfies sobre um fundo de burcas e olhares tristes?”

É este o grande apelo de Estendais e o seu grande triunfo. Em pequenos espaços, contando-nos as histórias de pequenas vidas, força-nos o olhar para aquilo que está a acontecer à nossa volta, nestas “vidas-aos-elementos”, tantas das quais não conhecemos nem vemos, na nossa ânsia para ver a história desde cima. Este livro estabelece-se como um autêntico bloqueio em plena autoestrada, forçando-nos a parar.

E fá-lo, como é o caso da frase com que termina esta crónica, em jeito de assinatura de e-mail, com um desassombro notável:

“Enviado da minha vida confortável e segura.”

Poderá surpreender o leitor saltar de textos como este para outros sobre aniversários, conversas entre amigos, bolos e flores em Paris, ou outros temas sobre os quais não conseguiria encontrar estatísticas no site da ONU.

E é precisamente essa confusão entre o grande e o pequeno, a história e a vida, que está o rasgo de Estendais. É na recusa terminante de filtrar a realidade através de qualquer prisma que não o nosso.