Aprendeu a ler e a escrever com quatro anos. Nunca mais aprendeu nada. Já foi assistente editorial, agora recebe um bom salário.
Todos os anos dezenas de mulheres morrem às mãos dos seus maridos e companheiros. Amor Estragado, da escritora Ana Bárbara Pedrosa, conta-nos a história de uma família e uma comunidade com essa violência no seu seio. Ema não lhe sobrevive.
Nem todos os romances em português falam a minha língua. Amor Estragado, de Ana Bárbara Pedrosa, atreve-se à dificuldade de fazer literatura com a oralidade como massa mãe, assumindo os seus cantos toscos como bonita decoração para o produto final.
O português de Manel é o português com que eu cresci nas ruas de Guimarães (os vizelenses que me perdoem, mas nenhuma autoridade municipal nos separa assim tanto no que toca ao vernáculo) e arrisco-me a dizer que nunca o tinha lido em literatura.
Não há muita literatura em Portugal (muito mais no Brasil e em África) a assumir de forma tão aberta e feliz a diversidade linguística, portanto, seria sempre digno de nota. Neste caso, no entanto, o registo de língua leva-nos diretamente ao âmago de uma história que não é sobre uma pessoa, mas sobre um grupo de pessoas, uma família, um sítio. O vernáculo minhoto é o particular que faz a ponte para o universal nesta narrativa sobre um fenómeno que nos rodeia a todos: a violência doméstica.
Ana Bárbara Pedrosa vem-se afirmando na literatura portuguesa não somente pela qualidade mas também pela sua capacidade de reinvenção. O seu primeiro livro, Lisboa, Chão Sagrado, é um romance polifónico (termo tão maltratado), passado entre Portugal e o Brasil, uma história de amores e desamores, uma descoberta de como o género e a sexualidade se moldam para diferentes pessoas de diferentes contextos. O segundo, Palavra do Senhor, é uma reescrita de trechos seletos da Bíblia por parte de um deus personalizado e inseguro em jeito de narrativa confessional.
São dois romances amplos, ambiciosos, e de sucesso. É portanto com muito agrado que vejo pela terceira vez a autora a arriscar algo que nunca fez. Uma história passada numa pequena cidade (“Vizela cabe num bolso”, diz um dos narradores várias vezes), no âmbito de um pequeno núcleo familiar.
Amor Estragado é a história do mais velho de quatro filhos, mas é também a história da família que o rodeia, absorvida pelo vórtex de caos, violência e incoerência que o alcoolismo de Manel vai lentamente alimentando e fortalecendo. A autora escolhe acrescentar um segundo narrador a Manel, o irmão mais novo Zé, e essa é uma das suas decisões mais felizes. Não só Zé acrescenta um contraponto de sanidade ao cada vez menos fiável relato de Manel como faz algo ainda mais importante: a versão de Zé demonstra, de forma muito convincente, como a violência doméstica não precisa de ser segredo. Cresce à vista de todos, ganhando confiança conforme vai ocupando espaço, acabando por dominar a vida familiar.
O caso de Ema, assassinada por Manel em dois passos, a abrir e a fechar o romance, é premente pelo seu realismo. Em 2022, 24 mulheres foram assassinadas pelos seus companheiros. Se notarem discrepância com a manchete, é porque as restantes quatro foram crianças. Ana Bárbara Pedrosa deu-nos um agressor estéril, ao menos a esse horror adicional fomos poupados.
Ema é pobre, não é muito inteligente nem muito bonita, e aceita o seu papel de dona de casa desde a primeira hora. É isso, aliás, que Manel pretende dela. Alguém que limpe, cozinhe, providencie sexo gratuito e não o incomode demais. Da primeira vez que dormem juntos, acaba assim (p. 31):
“No fim, perguntei «Gostaste?» Ela respondeu, à inocente: «A única coisa que te vou pedir é que me trates bem.» Achei aquilo tão triste que a abracei sem responder.”
A falta de respeito de Manel por Ema existe desde o começo da sua relação e é reconhecida por todos à sua volta. Não só. É replicada. Vejamos como Zé, o irmão mais sereno e sensato, descreve o começo desta mesma relação (p. 128):
“Sabíamos, mas a vida era mais do que aquilo. E, mesmo que conseguíssemos ver que era horrível e injusto, o que mais pesava era a vergonha. Toda a gente sabia que ele era nosso irmão.”
Conforme vamos evoluindo na narrativa, torna-se evidente o que fica sugerido logo no primeiro capítulo: o abuso de Ema é feito em público. Conforme vai crescendo e evoluindo para as suas várias formas (emocional, verbal, físico, humilhação), Manel nunca envida grandes esforços para o esconder, nem da família nem sequer da Vizela em geral ou até das autoridades. Ao invés, justifica-o com o mesmo tipo de argumentário geralmente aplicado a qualquer mulher cuja submissão não seja vista como suficiente. Ema é chata, inconveniente, não cumpre com as suas obrigações, fala demais. Ema é feia, pouco inteligente, erra com a família de Manel, convive demasiado com a sua.
Conforme Manel se vai adentrando no alcoolismo, a situação vai-se tornando tanto pior quanto mais pública. O papel do alcoolismo na violência doméstica, que Ana Bárbara Pedrosa explora em detalhe neste romance, é conhecido e amplamente estudado. Cada vez menos inibido, Manel começa a gritar com Ema à frente dos irmãos (e dos sobrinhos, inclusive).
Eis uma passagem narrada por Zé, refletindo sobre isso mesmo:
“Naquela altura, já era difícil refazer os passos, encontrar um momento crítico a que pudéssemos voltar para resolver tudo. Mesmo depois da quinta ou sexta vez, ainda achávamos que havia limites, que nunca ia dar para o torto, apesar de já ter dado, e agora habituávamo-nos àquilo como traços gerais da vida, ninguém tinha ideias de como pôr um travão. Nos primeiros anos, eu via-o irascível com a Ema e mesmo assim julgava que ela mentia porque o meu irmão não era homem para bater. Ela sim, toda bêbeda, meia tola, parecia ser mulher para mentir. E eu percebia-lhe o ódio, e até o entendia, mas irritava-me. A vida não podia ser apenas raiva.”
Em Portugal, milhares de mulheres têm consigo um dispositivo de teleassistência, vulgo “botão de pânico”. Para muitas mulheres, como é o caso de Ema, sair de uma relação conhecida como violenta não é uma opção. As motivações para isso são diversas, e a autora poderia ter recorrido a uma das mais típicas: dependência financeira. Não é o caso, e é uma das decisões mais autoritativas do romance.
Ema é uma mulher trabalhadora e não só poderia sustentar a sua própria casa como sustenta os vícios de Manel. Num passo particularmente emocional do romance, a própria matriarca da família, que vai tentando proteger Ema aproximando-a de sua casa, lhe pede que abandone o filho.
Eis a resposta, o narrador é Zé (p. 183):
“— Tu não deixes, Ema. Não deixes. Deixa-o ficar. Porque é que não o deixas ficar? Podes sair de casa, vir para aqui.
— É o meu homem, Miquinhas.
Dizia-o e aquilo sabia a sentença final. O elo fora criado, era impensável rompê-lo. Desatá-lo seria uma desonra.
— É, mas pode deixar de ser.
A minha mãe, que tanto insistira no casamento, que achava que aquilo era na saúde e na doença até à morte, já nem queria saber de beatices. Ia à luta:
— Mete-o cá para fora.
E a Ema amassava sem levar aquilo a sério.
— Já pensou no que as pessoas iam dizer? É o meu homem. E ultimamente nem tem estado tão mal. Toda a gente ia achar que eu era má mulher.”
Uma das frases marcantes do romance: “Toda a gente ia achar que eu era má mulher”. A escolha de palavras é determinante, tanto ao identificar a pressão social quase absoluta (toda a gente) sobre as mulheres como responsáveis últimas pelo casamento, como também ao brincar com a polissemia de “mulher”. Uma má esposa, que desfaz o seu casamento, é uma má mulher no sentido estrito do termo. Independentemente do que o marido faça.
A pressão transcende o casal, transcende a família, transcende inclusive as “beatices”. É geral, societal. Ema tem essa opção e é confrontada com ela de forma explícita neste passo do romance, mas para ela não é realista. Se o fizesse, deixaria de ser mulher. Ou, pelo menos, de ser uma boa mulher.
Em nenhum momento Amor Estragado desresponsabiliza Manel dos seus crimes. Pelo contrário, ao vê-los narrados por ele, a sua vileza, o seu desrespeito, a sua desonestidade e a sua maldade chegam a roçar o obsceno. Afundado no álcool, o seu discurso vai regredindo até se tornar uma massa amorfa de insultos e bílis, uma confusão de emoções negativas e agressividade.
O que Amor Estragado faz é exibir o quanto Manel não é criado apenas por Manel. Manel existe porque lhe é permitido existir. Todos somos e conhecemos pessoas como Zé, preocupados com as nossas próprias vidas, como o guarda da GNR que de vez em quando lá olha Manel pelo canto do olho mas pouco mais faz. É assim com todas as personagens que rodeiam este casal, com todo o sistema judicial e com o Estado social onde se inserem: mesmo depois de Ema ter estado internada depois de um espancamento pouco mais fazem que chamar nomes a Manel e ostracizá-lo ainda mais, isolando Ema.
É essa a justificação para a desconfortável realidade da violência doméstica em Portugal: entre 2004 e 2019, pelo menos 500 mulheres foram assassinadas pelos seus maridos e companheiros. Mais recentemente, entre 2020 e 2022, foram não menos de 70, a que se juntam mais oito crianças. É um flagelo que não para.
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