Newsletter74

Uma reunião secreta que inaugurou uma nova fase na política do ódio

Um dos promotores do encontro tomou a palavra e apresentou o seu primeiro orador, figura de proa do movimento identitário austríaco, que tinha um grande plano para a Alemanha, a deportação de milhões de pessoas do país: requerentes de asilo, não alemães com residência e cidadãos alemães “não assimilados”. Iriam chamar-lhe “reimigração”.

Newsletter74
1 Fevereiro 2024

Construídas na década de 1920, as fundações do pequeno hotel na periferia de Potsdam sobreviveram a todos os regimes com que se cruzou na Alemanha do século XX. A proprietária tem ligações próximas a círculos de extrema-direita e, no final de novembro, disponibilizou o hotel para acolher uma reunião secreta entre empresários ricos, assessores de topo do partido Alternativa para a Alemanha (AfD), políticos da alemã CDU e figuras de proa do neofascista Movimento Identitário. O momento seria, acreditavam, essencial para o futuro da Alemanha se o partido de extrema-direita chegasse ao poder no futuro próximo – está hoje em segundo lugar nas sondagens.

Os convidados foram chegando ao hotel e encaminhados para uma sala mais resguardada. Lá, uma mesa comprida, ornamentada com trinta pratos, talheres, e guardanapos dobrados, estendia-se ao longo da sala nesse sábado, 25 de novembro. Um dos promotores do encontro tomou a palavra e apresentou o seu primeiro orador, Martin Sellner, figura de proa do movimento identitário austríaco, que tinha um grande plano para a Alemanha, a deportação de milhões de pessoas do país: requerentes de asilo, não alemães com residência e cidadãos alemães “não assimilados”. Iriam chamar-lhe “reimigração”.

Subscreve a nossa newsletter.

Para onde seriam deportadas? Para um “Estado modelo” no Norte de África, disse Sellner. Os presentes concordaram, mas não se poderia ficar apenas no plano das ideias. Era preciso ir mais longe. Foi então que outro dos organizadores da reunião deu início à tarefa de selecionar membros para um comité que iria decidir os pormenores do plano de deportação em massa. Esse comité, disse, também teria “especialistas” que iriam garantir que o plano seria executado de forma “ética, legal e eficiente”. A discussão passou depois sobre como transformar a deportação massiva em estratégia política.

Como sabemos hoje desta reunião e do plano debatido? Graças ao Correctiv, um órgão de comunicação de jornalismo de investigação alemão sem fins lucrativos. Algumas pessoas que receberam um convite (cada participante teve de pagar cinco mil euros) para estarem na reunião passaram-lhe informação e eles enviaram um jornalista que se infiltrou. Ele filmou tudo o que foi dito e os rostos de todos os presentes. A notícia foi publicada a 10 de janeiro, pegou fogo e horas depois estava em todos os sites, em todas as televisões, e a suscitar reações de todo o espectro político.

O jornalista expôs um plano com claros paralelismos, até mais que isso, inspirações, com o Plano Madagáscar, delineado em 1940 pelo regime nazi de Adolf Hitler para deslocar centenas de milhares de judeus europeus para a ilha africana de Madagáscar, e com a Conferência de Wannsee, quando a 20 de janeiro de 1942 vários membros superiores do governo da Alemanha nazi se juntaram para coordenarem o extermínio de milhões de judeus. Aliás, o hotel desta reunião está a meros 8 quilómetros do local dessa conferência, que coincidência.

Esta reunião com empresários ricos, neofascistas identitários, um assessor de topo da AfD e até com dois membros da CDU só foi possível depois de anos de normalização da extrema-direita na Alemanha. Marca um novo ponto de viragem na política do ódio racista e a resposta não se fez esperar. Desde 10 de janeiro que têm havido recorrentes protestos em muitas cidades alemãs contra a extrema-direita. Centenas de milhares de pessoas têm saído à rua em desafio da política do ódio, no que já é considerada a maior vaga de protestos dos últimos anos. E a discussão pública sobre a ilegalização da AfD ganhou um novo empurrão.

Mas a luta contra a extrema-direita não se faz na secretaria, faz-se nas ruas, nos locais de trabalho, nas escolas e universidades e no parlamento. Faz-se criando laços de comunidade e destruindo a ideia do “Outro” ameaçador que a extrema-direita tenta vender.

Jornalismo independente e de confiança. É isso que o Setenta e Quatro quer levar até ao teu e-mail. Inscreve-te já! 

O Setenta e Quatro assegura a total confidencialidade e segurança dos teus dados, em estrito cumprimento do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD). Garantimos que os mesmos não serão transmitidos a terceiros e que só serão mantidos enquanto o desejares. Podes solicitar a alteração dos teus dados ou a sua remoção integral a qualquer momento através do email geral@setentaequatro.pt