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Protestos Irão

Solidariedade Feminista Transnacional com a revolta Mulheres, Vida, Liberdade no Irão

Carta aberta para Sepideh Gholian, jornalista iraniana defensora do movimento sindical encarcerada desde 2018. Tem escrito sobre a situação das mulheres na prisão, mas foi novamente encarcerada a 21 de março de 2023, quatro horas depois de ser libertada. A sua coragem e determinação inspiram feministas no mundo inteiro.

Carta aberta
16 Setembro 2023

A 16 de setembro de 2022, Jina Mahsa Amini, uma jovem curda de 22 anos, foi morta em Teerão pela polícia da moralidade. Este assassinato foi o ponto de partida para uma revolta que abalou o Irão e o mundo. A partir do Curdistão, o grito de "Mulheres, Vida, Liberdade" varreu as ruas iranianas num movimento insurrecional e vital, global e em permanente transformação, que não pedia nada e exigia tudo.

Com o passar dos meses e perante uma repressão sangrenta, a insurreição não parou de se transformar, dando origem a uma rede de formas concretas de solidariedade sem precedentes: manifestações espontâneas organizadas por bairro, vizinhes de portas abertas para permitir a fuga de manifestantes, manifestações noturnas diante das prisões contra as execuções, greves de comerciantes e um comunicado conjunto dos sindicatos. Neste comunicado foram exigidas condições de trabalho dignas, o fim das políticas ecocidas, do armamento nuclear e da privatização dos espaços naturais, assim como a igualdade política para as mulheres, as minorias étnicas e nacionais e as pessoas LGBTQIA+ – uma das pontas de lança da revolução. A revolução feminista iraniana é uma revolução total.

A questão não se prende com usar ou não o lenço na cabeça: isso – que nunca é demais repetir no contexto da islamofobia ocidental – cabe às mulheres decidir por elas próprias. O que está em causa no uso obrigatório do véu no Irão é o controlo e a subjugação de todos os corpos pelo Estado com o objetivo, para uma minoria, de monopolizar recursos. A República Islâmica governa através do apartheid de género e do racismo de Estado, possíveis de manter  unicamente através da aplicação desenfreada de uma ordem adaptada às orientações raciais das populações que pretende subjugar. Todas estas técnicas alimentam a economia colonial global.

Não há duas vidas iguais: esta realidade foi mais uma vez posta em evidência em França, em junho de 2023, com o assassinato de Nahel e a repressão sangrenta dos movimentos de revolta que se seguiram. Encontramo-la a todas as escalas, desde a costa mediterrânica, transformada em valas comuns pelas práticas de repulsão, aos bairros populares da Europa, Mayotte e Guiana, mas também do Brasil, do Sudão, da Palestina, do Líbano, do Afeganistão e do Irão.

O cerne do feminismo que defendemos é a luta contra este continuum de violência e desumanização que opera no capitalismo. Enquanto não fizermos valer a nossa voz, o feminismo continuará a ser monopolizado em prol de um discurso que legitima esta ordem. Prova disso foi o que aconteceu no ano passado: as potências ocidentais não tardaram a admirar a "coragem das mulheres iranianas", ao mesmo tempo que estendem o tapete vermelho a um feminismo liberal, islamófobico e transfóbico, com o cuidado de separar a luta pelos direitos das mulheres da luta contra as opressões contestadas pelos movimentos revolucionários no Irão.

Nos seus jogos de poder internacionais, os mesmos governos ocidentais aproveitam-se hoje da desestabilização da República Islâmica nas ruas iranianas, abandonando-as simultaneamente a ondas alarmantes de execuções, de detenções e tortura. Nunca foi tão claro que a emancipação dos povos é um não-assunto na agenda internacional. É por isso que o silêncio feminista não é uma opção, e a ignorância não é desculpa.

Se os caminhos revolucionários são impossíveis de decretar, é no entanto primordial  a partilha dos conhecimentos e saberes nascidos nas resistências locais, assim como manter redes de solidariedade efetivas, e urdir o tecido de um povo mobilizado à escala mundial. Precisamos urgentemente de aprender com a resistência e com os métodos do movimento "Mulheres, Vida, Liberdade", e de apoiar o grupo de camaradas iranianes face à repressão. Porque aquilo com que temos de nos confrontar tanto aqui como lá são, sob diferentes formas, aparelhos de Estado nas mãos de setores radicalizados da burguesia, cuja retórica, religiosa ou laica, tem cada vez mais dificuldade em dissimular um projeto semelhante e concorrente de captação de riqueza e de exploração de todos os seres vivos.

Hoje, após um ano de luta social em França e no Irão, nós, militantes de diferentes organizações, ligadas por preocupações feministas anti-capitalistas, sabemos quão esgotante é a luta na atual relação de forças. Este esgotamento é parte integrante das técnicas de governo contra o povo. Somos coletivamente atirades para um caos climático, o nosso futuro hipotecado por catástrofes, o nosso presente sufocado pelo stress, repressão, discriminação racial, os corpos exaustos pelo trabalho, a pobreza, a ilegalidade, a falta de cuidado e de consideração. Nunca foi tão claro que a retórica securitária que ouvimos diariamente nos meios de comunicação social detidos por uma oligarquia reacionária, se refere, na realidade, à segurança dos campos de golfe. Segurança para o capital até que o mundo morra.

Esta constatação não nos deve fazer perder de vista o facto de que não só é necessário, mas possível, organizar as nossas forças e mudar o curso dos acontecimentos. A curva é apertada, difícil, mas fazível. Começamos por afirmar que esta mudança consiste, a partir da nossa posição, em tirar urgentemente o feminismo europeu da negação, em confrontar e combater profundamente a sua história colonial, e em orientar as nossas práticas para uma solidariedade e reflexão transnacional.

A revolução iraniana não se limita a uma oposição às políticas mortíferas da República Islâmica, mas traça um projeto de sociedade pós-capitalista baseado na solidariedade e emancipação. É uma lição de movimento, de reinvenção política e teórica, e é por isso que a luta do povo iraniano é a luta das feministas e dos corpos em luta do mundo inteiro. Mulheres, Vida, Liberdade.

Eduardo Brito (realizador, Guimarães)

Claudia Varejão (realizadora, Lisboa)

Catarina Vasconcelos (realizadora, Lisboa)

Isabel Abreu (atriz, Lisboa)

João Gonzalez (realizador, Porto)

Paulo Furtado (músico, Coimbra)

Selma Uamusse (música, Lisboa)

Tatiana Salem Levy (escritora, Lisboa)

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