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Pode demorar meses, mas vamos sofrer com o bloqueio marítimo dos houthis

Os houthis não precisam de capturar ou afundar navios, basta manterem a ameaça viva para que a pressão na economia internacional se faça sentir. A solução para pôr fim ao bloqueio é política e não militar. Estados Unidos e Europa têm de forçar o governo de Benjamin Netanyahu a acabar com a ofensiva (e genocídio) contra o povo de Gaza. Tão simples quanto isso.

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18 Janeiro 2024

Já lá vai o tempo em que a solidariedade dos Estados árabes com os palestinianos, ainda que sempre alinhada com os seus próprios interesses, se fazia sentir na política internacional. O embargo petrolífero de 1973 pertence definitivamente ao passado. Hoje são fortes aliados da política imperialista dos Estados Unidos no Médio Oriente. Reconhecem (ou estavam em vias de reconhecer) o Estado de Israel, ignorando os palestinianos e beneficiando da alta tecnologia de vigilância israelita, e colaboram estreitamente com o seu aparelho repressivo colonial. As suas condenações pelo genocídio em curso na Faixa de Gaza não passam de palavras e de indignação fingida.

O vazio deixado pela falta de solidariedade foi recentemente ocupado pelos rebeldes iemenitas houthis, apoiados política e militarmente pelo Irão. Os rebeldes conseguiram forçar o regime sanguinário da Arábia Saudita, apoiado militarmente pelos Estados Unidos e pela Alemanha, a assinar um acordo de cessar-fogo em 2020 para pôr fim, ainda que um muito frágil, a uma guerra que se prolongava desde 2015. As armas ocidentais mais modernas e os mercenários mais brutais, pagos com petrodólares, não venceram no terreno, e com esse duro golpe os houthis ganharam um ascendente reputacional na região.

Mas o poder dos houthis não deixa de ser muito limitado, ainda que por vezes surpreenda – como aconteceu com os mísseis que disparou em direção a território israelita. Se, para travar o massacre de palestinianos, não conseguem impor um embargo petrolífero como os Estados árabes fizeram no passado, os houthis decidiram, no final de outubro, cortar a passagem marítima do Mar Vermelho, uma das artérias mais movimentadas no mundo – é responsável por 12% da circulação mundial. Mais de duas dezenas de navios mercantes já foram atacados por eles com mísseis e drones kamikazes, quando não entram a bordo, fazendo as suas tripulações reféns. No início os alvos eram apenas navios israelitas, mas depressa deixou de haver critério.

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Os houthis não precisam de capturar ou afundar navios, basta manterem a ameaça viva para que a pressão na economia internacional se faça sentir, mesmo que demore meses para que assim seja. E isso notou-se quando as cinco maiores multinacionais de transporte marítimo anunciaram que os seus navios iriam deixar de passar pelo Mar Vermelho, contornando ao invés o continente africano, um desvio que acrescenta dez dias de viagem e com um  custo acrescido de pelo menos um milhão de dólares.

Ao mesmo tempo, as seguradoras aumentaram em dez vezes os valores dos seguros dos navios que passarem pelo Mar Vermelho. Já sabemos a consequência disto tudo: o aumento dos custos será transferido pela cadeia de distribuição, acabando por penalizar o consumidor final. E terá, claro, efeitos na inflação.

A Europa, cujos líderes têm sido mais do que tímidos nas posições sobre a ofensiva israelita, será o continente mais prejudicado por este bloqueio marítimo, a par com Egipto, Tunísia e Argélia. Mais de 40% do comércio marítimo Ásia-Europa passa normalmente por esta artéria, dos quais 12% do petróleo e 8% do gás natural liquefeito são consumidos pelos europeus. A isto acresce as limitações de navegação, por causa da seca que se faz sentir, no Canal do Panamá, responsável por 5% do tráfego marítimo mundial.

Mas a grande “vítima”, se assim lhe podemos chamar, deste bloqueio dos houthis é a ditadura egípcia de Abdel Fattah El-Sisi, alinhado politicamente com Israel. O regime egípcio beneficiou com a deslocação marítima causada pela invasão da Ucrânia pela Rússia, registando-se, em novembro de 2023, um aumento de 20,3% nas receitas, perfazendo um total de 854 milhões de dólares, um novo recorde. Mas o bloqueio do Mar Vermelho mudou tudo: na primeira semana de 2024, houve uma queda de 35% na carga que atravessou o Canal do Suez. Ora, as receitas do Canal são essenciais para o Estado egípcio, cuja economia se confronta com graves problemas e que tem de pagar vários mil milhões de dólares de dívida em 2024.

Com os ataques a navios mercantes a aumentarem, Estados Unidos e Reino Unido montaram uma coligação internacional para garantir a liberdade marítima (essencial na política externa de uma potência que quer manter a sua hegemonia), ameaçando os houthis com ataques no Iémen, o que seria uma nova escalada no caminho para um conflito regional – o primeiro confronto direto já aconteceu com um helicóptero norte-americano a destruir três barcos houthis. A coligação tem até agora mais de 20 países (aquém da grande participação desejada pelos norte-americanos), mas a verdade é que o seu sucesso será, provavelmente, muito limitado. Mais uma vez: os houthis não precisam de ser bem-sucedidos, apenas têm de manter a ameaça viva no médio, longo prazo.

A coligação, chamada Operação Guardião da Prosperidade e que é apenas defensiva até ao momento, precisará de mais de uma dezena de navios a proteger a passagem, com outros tantos a fazerem rotação de dispositivo, por necessidade de combustível, por exemplo, para proteger uma área marítima de 300 milhas náuticas, escreveu no The Telegraph o antigo comandante da marinha britânica Tom Sharpe. Se cada navio tiver uma zona de atuação de 30 milhas, serão necessários dez navios em permanência com capacidade para abater mísseis e drones e evitarem abordagens de rebeldes houthis contra os navios mercantes. Os custos financeiros da operação serão avultados, realçando-se um: o uso de mísseis que custam centenas de milhares de dólares, senão milhões, para abater mísseis e drones de fabrico iraniano muito barato.

Diria que a operação não resultará, pois a ameaça manter-se-á enquanto a capacidade ofensiva dos houthis não for destruída, e isso obrigaria a uma intervenção militar alargada no Iémen, um país já devastado pela guerra, fome e doenças, com o risco de expandir o conflito à região. É que os houthis fazem parte do “eixo de resistência” criado pelo Irão no Médio Oriente.

A solução para pôr fim ao bloqueio é, portanto, política e não militar. Estados Unidos e Europa têm de forçar (e sim, têm meios para isso) o governo de Benjamin Netanyahu a acabar com a ofensiva (e genocídio) contra o povo de Gaza. Tão simples quanto isso.

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