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O jornalismo caminha para o abismo

Os jornalistas têm muitas razões para entrar em greve. Talvez, e sonhando, com uma geral de um ou dois dias em que o país fique em silêncio se perceba que o jornalismo é mesmo essencial para a democracia. Que se rompa com o silêncio e se quebre o medo nas redações. Temos cada vez menos a perder. E talvez o poder político saia da apatia em que mergulhou. Talvez.

Newsletter74
14 Dezembro 2023

Os trabalhadores do Jornal de Notícias fizeram esta quarta e quinta-feira uma greve histórica. Há 35 anos, desde 1988, que a redação do jornal sediado no Porto não avançava com uma greve: a sua edição diária impressa não chegou hoje às bancas e as últimas notícias no site foram publicadas na terça-feira à noite. A sua luta tem sido constante nos últimos meses. Mais greves houvesse nas redações, razões não faltam. Talvez ouvissem, finalmente.

Num momento em que o sindicalismo nas redações atinge mínimos, sem que os jornalistas, flagelados por longos turnos, baixos salários, precariedade, degradação da saúde mental, consigam coletivamente fazer frente às ofensivas das administrações, a adesão à greve é também em si histórica. Quase 100% dos jornalistas do Jornal de Notícias aderiram, revelou o Sindicato de Jornalistas, que convocou o protesto. Vê-se uma unidade (e fraternidade) que se tornou muito rara na maior parte das redações, fenómeno que também vimos na mais recente greve da rádio TSF.

A luta destes trabalhadores vai além das exigências de pagamento de salários em atraso (que começaram a ser pagos, anunciou a administração) e do não avanço do despedimento coletivo de 150 a 200 trabalhadores pelo Global Media Group, detentor do JN, DN, TSF, O Jogo, Dinheiro Vivo, Notícias Magazine, Delas, N-TV, Motor24, Men's Health, Women's Health e Açoriano Oriental. É também, como dizem, uma luta "em defesa do jornalismo, das pessoas e da democracia”. E, acrescentaria, do escrutínio de um certo poder económico que usa paraísos fiscais para se mover nas sombras.

Como Bárbara Reis escreveu na sua newsletter no Público, “todos parecem pensar que este não é um despedimento como os outros”, referindo depois que se suspeita haver “algum plano, alguma coisa estranha por detrás do anúncio de despedimento”. Além das jogatanas financeiras de bastidores, que pouco se sabe até se consumarem, e aí já é tarde demais, diria que este despedimento não é como os outros por outra razão: é mais uma machadada no jornalismo e na sua função democrática, de escrutínio dos poderes políticos e económicos, quando mais precisamos dele. Estes despedimentos não afetarão apenas um órgão de comunicação social, prejudicando a sua qualidade editorial, mas 12 de uma só assentada.

Diz-se vulgarmente que “o jornalismo é essencial para a democracia”. Enchemos a boca com esta frase. E os casos da Hungria, da Polónia, das Filipinas, dos Estados Unidos e do Brasil vêm à conversa, entre outros países onde o jornalismo independente do poder político foi silenciado ou denunciou mentiras e políticas desumanas de chefes de Estado de extrema-direita. Fala-se também da desinformação, de como é uma ameaça à democracia.

Bem sabemos que o poder político (e o económico) nunca gostou de ser escrutinado por um jornalismo independente e incisivo. As razões são mais que óbvias, mas há anos que o jornalismo em Portugal caminha para o abismo. Uma rápida radiografia: mais de metade (53,9%) dos concelhos do país é ou está na iminência de se vir a tornar deserto noticioso, concluiu o relatório Desertos de Notícias Europa 2022: Relatório de Portugal, da Universidade da Beira Interior. Não há jornais impressos a fazer cobertura noticiosa frequente em 182 concelhos (59%) e há 157 sem qualquer meio digital noticioso. A imprensa regional e local foi a primeira vítima da crise do jornalismo, seguindo-se depois o género do jornalismo de investigação.

Os despedimentos sucederam-se, o medo entre jornalistas, principalmente entre os mais jovens, instalou-se em muitas redações, as condições laborais deterioraram-se constantemente até se normalizarem em acordos formais. Receber-se 1328 euros com 21 anos de trabalho foi-nos vendido como grande vitória de duras e longas negociações com os patrões.

Hoje, há um contrato coletivo de trabalho entre o Sindicato de Jornalistas e a Associação Portuguesa de Imprensa, representante dos patrões, com uma projeção salarial de referência que não é menos que uma vergonha. Com as condições laborais que se conhecem e com salários destes numa economia que vive em constante crise para a maioria, que perspetiva de futuro tem hoje um jornalista, seja jovem ou mais velho? Não admira que a maioria abandone a profissão aos 30 anos. Resistem uns poucos, e pelo meio perde-se a memória deste ofício que se diz essencial à democracia.

Também não deixa de surpreender a apatia de políticas públicas com que os sucessivos governos nos têm brindado quando todos sabemos que caminhamos lentamente para o abismo. Não há no país uma cultura de mecenato, ao contrário, por exemplo, dos Estados Unidos e da Alemanha. As redes sociais lucram com as notícias de qualidade e nada pagam por isso, ao mesmo tempo que captam a grande maioria da publicidade, desde sempre pilar de receita dos media.

Num país dominado por precariedade e baixos salários, não é de admirar que apenas 11% dos portugueses inquiridos pelo relatório Digital News Report 2023 se mostrem disponíveis para pagar por informação rigorosa e de qualidade, quando a média europeia é 17%. Há que esticar os salários ao máximo e fazer escolhas para se sobreviver até ao final do mês. Restam-lhes as redes sociais (e alguns media de acesso público) para se informarem, correndo o risco de caírem na desinformação que nelas grassa, alimentada pelos algoritmos cuja única missão é captar o máximo de atenção (incentivando o ódio) em prol de lucros bilionários.

Os jornalistas têm muitas razões para entrar em greve. Talvez, e sonhando, com uma geral de um ou dois dias em que o país fique em silêncio se perceba que o jornalismo é mesmo essencial para a democracia. Que se rompa com o silêncio e se quebre o medo nas redações. Temos cada vez menos a perder. E talvez o poder político saia da apatia em que mergulhou. Talvez. É que nem tudo se deve à iniciativa privada.

Para quando um debate público sobre moldes de financiamento público? Não apenas para os grandes meios, mas para todos. É que a pluralidade informativa é essencial para a democracia. Todas as pessoas devem sentir-se representadas, poder ver, ler e ouvir histórias que lhes afetam o dia a dia. Um jornalismo para todos e todas, não para privilegiados. Não basta falar-se no assunto, são necessárias ações, e urgentes.

Toda a solidariedade aos trabalhadores do Jornal de Notícias. O vosso trabalho é essencial para a democracia. Obrigado pela vossa luta, que nos inspire. Quem sabe faz a hora, não espera acontecer.

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