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Não deixemos que a direita ponha em causa o direito das mulheres ao aborto

Sabemos que não há direitos garantidos. A última vez que a direita esteve no poder foram vários os retrocessos na lei do aborto. Regredir ou ponderar a criminalização do aborto é um ato atroz que terá graves consequências.

Desta vez quem vos escreve são as jornalistas da casa, a Ana Adriano Mota e a Ana Patrícia Silva. Decidimos fazê-lo por inquietações, por devaneios, por reflexões que consideramos necessárias, senão obrigatórias, agora mais do que nunca. 

Portugal é um país predominantemente conservador e as mulheres sentem o machismo no seu dia a dia. Um dos exemplos mais claros da opressão de género acontece quando se trata do direito ao aborto e as declarações de Paulo Núncio, dirigente do CSD e candidato pelo círculo de Lisboa nas listas da Aliança Democrática (AD), tornaram isso bem claro. Não deixam de nos relembrar, mais uma vez, que este direito está longe de ser um direito garantido.

As declarações de Núncio foram “transparentes” como água: defendeu um “novo referendo” para reverter a lei da Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG), logo que possível.

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O debate em torno da lei da IVG tem ocupado espaço mediático. Duas semanas antes das declarações de Núncio, a 11 de fevereiro, celebrava-se o 17º aniversário da vitória do “Sim” no referendo de 2007 que permitiu às mulheres decidirem sobre o seu próprio corpo, para que tivessem o direito de escolher sobre a interrupção voluntária da gravidez de forma segura e gratuita no Serviço Nacional de Saúde (SNS). A legalização da IVG foi um marco no caminho para se pôr fim a um panorama de mortes e graves problemas de saúde por causa de abortos inseguros, feitos com recursos a agulhas de tricô, pés de salsa e “fazedoras de anjos”. 

Todos os anos, em todos os “fevereiros” pós-2007, recorda-se esta vitória, mas sempre com um lembrete: a legalização existe, mas nem todas as mulheres têm acesso a ela. No fundo, a luta pelo direito ao aborto não está terminada.

Na comemoração deste ano, A Coletiva e a Associação para o Planeamento da Família (APF) lançaram um manifesto no qual exigem o fim do período de reflexão obrigatória (uma das imposições da lei que leva à estigmatização) e o aumento do prazo legal para as 12 semanas de gestação. São duas medidas entre outras, como o alargamento do procedimento aos centros de saúde, o fim da imposição de dois médicos para a realização da IVG e que a objeção de consciência não continue a ser um obstáculo ao cumprimento da lei. 

Em 2022, vimos o estado norte-americano do Missouri a declarar-se como o primeiro estado a reverter o direito ao acesso da IVG. Ou, mais recentemente na Argentina, Javier Milei subiu ao poder com uma das medidas mais violentas contra os direitos das mulheres: criminalizar o aborto com penas que podem ir até aos três anos de prisão, sem exceções, incluindo casos de violação. A Argentina era um dos únicos países que recebia mulheres de todo o Brasil para que pudessem abortar de forma segura, uma vez que o acesso ao aborto é criminalizado no país há mais de 80 anos.

Não só as mulheres argentinas sentiram uma regressão tremenda nos seus direitos como as mulheres brasileiras perderam a única alternativa segura que tinham. Ponderar o acesso ao aborto como direito que poderia estar garantido chega a ser um pensamento arriscado, assim como acreditar que se a legalização existe, toda a gente terá acesso. 

Voltemos ao caso português. Das 40 unidades hospitalares preparadas para a prática de IVG, apenas 29 o fazem (dados DGS). A objeção de consciência por profissionais de saúde tende a ser o maior obstáculo. Esta é uma reflexão clara de um conservadorismo subtil, alimentado por um machismo diário que se tende a disfarçar nas crenças e vieses morais em nada relacionados com a saúde, mas a que estes profissionais recorrem recusando-se a realizar um procedimento consagrado na lei.

Portugal é ainda, nos 77 países em que é permitido abortar por opção da mulher, um dos que tem o prazo legal mais restrito (10 semanas). Este prazo não tem, do ponto de vista médico, nenhuma referência, trata-se apenas de uma tecnicidade e da forma como foi debatido no Parlamento e, consequentemente, de como foi proposto a referendo. O limite gestacional mais comum dos países em que é permitido o aborto são as 12 semanas, segundo o Center for Reproductive Rights.

​​“Acham que a culpada é a mulher: ‘se há métodos, porque é que não se preveniu?’ Mas, na prática não é bem assim”, explica Kênia, nome fictício de uma das mulheres que partilhou o seu testemunho com o Setenta e Quatro. Das duas vezes que abortou deparou-se com manifestantes antiaborto à porta da Clínica dos Arcos, em Lisboa, onde são realizadas 30% das Interrupções Voluntárias da Gravidez em Portugal.

Além do estigma de que sofrem, o desinvestimento na saúde pública, os profissionais desinformados e as disparidades geográficas e económicas são ainda fatores que persistem. Para combater estas dificuldades, a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda que o aborto medicamentoso possa ser autoadministrado no início da gravidez. Isto é, que possa ser feito pela própria mulher ou pessoa grávida em sua casa, sem que seja supervisionado por um profissional de saúde. Diretrizes que não são seguidas em Portugal.  

Não sabemos o que os resultados das próximas eleições nos trarão, mas sabemos que não há direitos garantidos. Como afirmou Simone de Beauvoir, “basta uma crise política, económica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados”.

A frase não se afasta da realidade atual e, na última vez que a direita esteve no poder, em 2015, com o governo de Pedro Passos Coelho, vários foram os retrocessos na lei. Passou a ser obrigatório o acompanhamento psicológico, as mulheres passaram a ter de ver a ecografia do feto e a pagar taxas moderadoras. Imposições alteradas ainda em 2015, quando o PS formou governo apoiado pelo Bloco de Esquerda, PCP e Os Verdes.  

Deixar que hajam novos retrocessos no direito ao aborto ou até voltar a criminalizá-lo é um ato atroz que terá graves consequências. Não nos esqueçamos que a força motora para a aprovação da lei do aborto foi um cenário de mortandade no qual, e em 1974, cerca de dois mil abortos inseguros resultavam na morte da mulher. “Contracepção para não abortar. Legalização para não morrer”, lia-se nos cartazes da época. Esperamos não ter de os voltar a ler.

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