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Kissinger morreu, mas há outros por aí

O trajeto de Henry Kissinger é exemplo de como um criminoso de guerra nunca precisou de reabilitação. Só houve um Kissinger, mas os seus ensinamentos de “visão mundial”, como lhes chamam eufemisticamente, são ensinados nas universidades e os seus discípulos passeiam-se nos corredores do poder da (ainda) principal potência mundial. Foi um criminoso de guerra cujos crimes fizeram escola, são até elogiados como exemplo da política realista nas Relações Internacionais.

Newsletter74
7 Dezembro 2023

Henry Kissinger morreu. O antigo secretário de Estado e conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos foi um dos principais rostos do imperialismo global norte-americano no século XX. Foi responsável pelo massacre de centenas de milhares de pessoas, apoiou e orquestrou golpes de Estado de extrema-direita, fomentou guerras civis, desestabilizou regiões inteiras. Tudo para assegurar a hegemonia norte-americana.

E ainda recebeu em 1973 como recompensa o Prémio Nobel da Paz por negociar os acordos que permitiram aos Estados Unidos sair finalmente do Vietname. Mas, antes, tudo fez para alcançar a vitória militar, inclusive ordenar o bombardeamento do Cambodja, matando mais de 500 mil pessoas. Ainda hoje detonam bombas lançadas pelos norte-americanos no país, matando e estropiando crianças, homens e mulheres que trabalham nos campos agrícolas. Kissinger foi quem criou todo o contexto para os facínoras Khmers Vermelhos surgirem e matarem centenas de milhares de cambojanos. E este é só um exemplo das consequências das suas decisões, poderia referir Timor-Leste, Paquistão e Bangladesh, Chile, Vietname, Chipre, Médio Oriente, Angola…

Só houve um Kissinger, mas os seus ensinamentos de “visão mundial”, como lhes chamam eufemisticamente, são ensinados nas universidades e os seus discípulos passeiam-se nos corredores do poder da (ainda) principal potência mundial. Foi um criminoso de guerra cujos crimes fizeram escola, são até elogiados como exemplo da política realista nas Relações Internacionais.

Kissinger era um dos últimos “guerreiros da Guerra Fria” e o seu pensamento foi sempre consistente: só ações que reforçassem a superioridade militar e imperial dos Estados Unidos deveriam ser aplicadas e as ações que diminuíssem ou reforçassem o poder do seu adversário no sistema internacional deveriam ser evitadas. O direito internacional era letra morta e todos os movimentos, governos e políticas que pusessem em causa os interesses dos Estados Unidos, independentemente do que defendessem (democracia, melhores salários, serviços públicos de qualidade), deveriam ser aniquilados. É este o seu legado.

Não admira, portanto, que Kissinger seja venerado por republicanos e democratas, ou melhor, pelo partido da guerra - o consenso interpartidário pela manutenção da hegemonia dos EUA e de intervenções militares. Era uma eminência que representava o poder omnipotente dos Estados Unidos. A sua morte é também simbólica: os Estados Unidos já não podem fazer tudo o que querem, o mundo já não é bipolar ou unipolar – é multipolar. Mas o partido da guerra tudo faz para que o poder norte-americano não diminua.

Kissinger tinha 100 anos, mostrava sinais de debilidade e era uma questão de tempo até morrer. Os obituários publicados de imediato, principalmente na imprensa anglo-saxónica, relegam para segundo ou terceiro planos os crimes (isto se lhes chamarem crimes) que cometeu nos longos anos em que se sentou na Sala Oval da Casa Branca. Diluem-nos até mais não numa longa carreira e o foco está sempre na sua única grande ação que não exigiu o derramar de sangue, o reatar de relações diplomáticas entre os Estados Unidos e a China. É louvada como exemplo fulgurante de diplomacia.

Uma vez fora da Sala Oval, Kissinger tornou-se rico lucrando com a reputação que as suas políticas lhe deram. Passeava-se nos salões de Washington, dava palestras de milhares de euros, escrevia livros que se tornaram bestsellers e aconselhava presidentes, como George Bush filho e Donald Trump. Hillary Clinton referiu-se como “amiga” de Kissinger. Era o conselheiro do partido da guerra desde os tempos do presidente Dwight D. Eisenhower.

O trajeto de Kissinger é um caso exemplar de como um criminoso de guerra nunca precisou de reabilitação. George Bush filho, Tony Blair, José Maria Aznar e José Manuel Durão Barroso são aprendizes a comparar com Kissinger. E, tal como o diplomata agora falecido, escaparam impunes a mais de um milhão de mortes que causaram no Iraque. Kissinger morreu, mas há outros kissingers por aí. É outro legado de sua eminência.

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