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Carlos Santos Pereira | Fotografia: DR

Carlos Santos Pereira, o jornalista sem cinismo

O Carlos confirmou a minha convicção de que a primeira qualidade para se ser um bom jornalista é ser um bom ser humano, e demonstrou a razão de Ryszard Kapuściński ao escrever que Os Cínicos não Servem para este Ofício

Jornalismo
2 Junho 2022

[Este texto é o prefácio do recém-publicado livro Do Solidariedade ao Afeganistão - Quatro Décadas de Vida de Repórter, compêndio de artigos de política internacional do falecido jornalista Carlos Santos Pereira, publicado pela editora Colibri]

 

Creio que a primeira vez que ouvi falar do Carlos Santos Pereira foi por causa do blusão de motard: “Mas não há ninguém que lhe explique que aquilo não é um casaco próprio para televisão?”

Estou em crer que houve muita gente a explicar-lhe, mas ao Carlos não preocupava lá muito se a sua indumentária se ajustava ou não à “caixa que mudou o Mundo”. O que o preocupava, sim, era que o Mundo estava a mudar, e não havia grandes indícios de que fosse para melhor. Era essa a sua urgência, chamar-nos a atenção para coisas que vira, ouvira, e por vezes apenas pressentira – e para que não apenas nem tudo o que parece é, e é preciso interrogar os factos, contextualizá-los, não se limitar a narrá-los (ou filmá-los, nessa televisão que sempre declarou não ser o seu meio de comunicação preferido) e praticar a dúvida metódica, aliás, justificada pelas diferenças entre palavras e atos de diversos atores políticos, como mostra com ironia no artigo “Polónia: a normalização impossível”: “Enquanto os partidos comunistas francês e português tomavam inequivocamente uma posição contra os operários polacos, Reagan e Thatcher apaixonavam-se subitamente por um sindicalismo actuante (que reprimiam, entretanto, nos seus países).

A direita portuguesa encheu o país de lágrimas e cartazes em nome de um ideário e de um projecto social diametralmente oposto ao seu, enquanto enviava polícias armados até aos dentes, imitando os zomos [agentes da polícia de choque] do general polaco, contra os trabalhadores portugueses. E boa parte da esquerda ‘dissidente’ só descobriria, afinal, o Solidariedade, quando Jaruzelski lhe forneceu matéria para os discursos tradicionais.”

O Carlos começou assim por ser “aquele comentador de blusão esverdeado”, sempre com o ar de quem chegava diretamente de uma zona de guerra, mas que valia a pena ouvir. O especialista em Europa do Leste, o suspeito de simpatias pelos “maus”, aquele que via vítimas tanto do lado sérvio como do lado muçulmano, esse facto que surpreendeu um observador britânico, como o Santos Pereira narrou em “Srebrenica – algures fora do mundo”: “O homem não cabia em si de espanto. Estava aqui pela primeira vez, num grupo de observadores britânicos que se deslocou a Pale para acompanhar o referendo. Rodeado por uma escolta do Exército sérvio fez uma incursão a Grbavica, um dos bairros sérvios de Sarajevo. Regressando a Pale, do lado de cá das colinas que bordejam a capital bósnia, não se cansava de repetir: ‘Nunca imaginei isto! Mas, afinal, os sérvios de Sarajevo são também bombardeados pelos muçulmanos...’”

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Capa do livro com reportagens da autoria de Carlos Santos Pereira.

Quando tive oportunidade de trabalhar com ele, percebi que o Santos Pereira não era apenas um excelente jornalista, um repórter corajoso, um entrevistador que, além de saber perguntar, sabia ouvir: era também um excelente camarada. O homem que, mesmo enquanto pensava “Mas eu sou uma besta, podia estar em Lisboa nos copos, quem é que me manda vir-me meter nesta chafurdeira?!”, não resistia a continuar a percorrer um caminho que sabia minado, e, ao confrontar-se numa situação de guerra com a maior fragilidade de um camarada de trabalho, não hesitou em sugerir o regresso a Portugal, sem uma única palavra de crítica, antes de solidariedade e compreensão.

E, num meio marcado por rivalidades, tinha a generosidade de ceder o protagonismo a outrem, mesmo que, para isso, tivesse de ceder também o seu maior conhecimento sobre o tema em agenda. Quantas vezes, antes de entrevistas e debates que fizemos juntos (a que chamávamos “o nosso número de ‘Cow and Chicken’” – série de animação então em voga – depois da vez em que um estranho ângulo de câmara me aumentou as costas para o triplo, enquanto, ao fundo, o Carlos parecia ainda mais magro do que era), me disse: “Faz isso sozinha, eu passo-te tudo o que sei, não é preciso lá estar”, sendo necessário puxar dos meus galões de mais-velha e “chefe” para o obrigar a participar?

Galões de que também fui forçada a puxar quando, por um telefonema alarmado da família, percebi que, estando em reportagem em zona de guerra, o Carlos se esquecia de comunicar aos próximos que continuava vivo – informação que eu ia tendo graças ao repórter de imagem que o acompanhava, mais responsável do que ele nessa matéria.

Diga-se que o espírito de camaradagem do Santos Pereira, além de contagioso, era retribuído por muitos dos que trabalhavam com ele – e quando um dia nos apercebemos que, constantemente interrompido pelas tarefas profissionais, estava a ter dificuldades em terminar um trabalho académico, a mobilização foi geral: encerrado, de comum acordo e para lhe evitar distrações, no único espaço fechado na redação, houve sempre colegas disponíveis quer para lhe fornecer os indispensáveis cafés, quer para dactilografar, rever e ordenar as páginas riscadas e reescritas. E quando nos confirmou ter conseguido cumprir o prazo estipulado, o feito foi festejado por todos com o entusiasmo de uma vitória pessoal.

Mas foi anos depois de termos trabalhado juntos, quando já nem eu nem ele estávamos na RTP, que tive a oportunidade de, em 35 minutos, conhecer melhor o jornalista brilhante, o repórter ousado, o analista que, em diversos trabalhos – alguns dos quais disponíveis neste livro –, de algum modo anunciou a situação que se vive hoje na Europa, no Mundo e também no Jornalismo.

Tinha-o desafiado a participar numa sessão do Curso de Psicotraumatologia do então Centro de Trauma do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, para nos falar do “trauma em segunda mão” que tantas vezes atinge os jornalistas na cobertura de guerras ou catástrofes. Ele, o homem do bloco e da caneta (“A minha paixão é a escrita e nunca será outra, e nos quase 20 anos que trabalhei em televisão, com momentos bons, com experiências boas, em termos de expressão jornalística, fui sempre peixe fora de água”), em cujos trabalhos se notava um cuidadoso trabalho de documentação, falou sem papéis, com uma linguagem solta (“Posso dizer um palavrão?”), da sua longa experiência de repórter em cenários de guerra. E foi perentório: “ Não há jornalismo de guerra, nem jornalistas de guerra; fazer notícias, reportagens, entrevistas, em situação de guerra não é tecnicamente diferente de cobrir um jogo de futebol ou uma sessão da Assembleia da República.”

Aos poucos a recordação dos sofrimentos que testemunhou tornou-se um pouco menos dolorosa, mas o sentimento de culpa permanece.

Repórter que era, começou com uma história passada na Bósnia, onde, numa aldeia completamente abandonada, encontrara um casal de septuagenários com um homem que presumiu ser o filho, “de uns 40 anos, completamente traumatizado – tinha andado a combater, tinha perdido parte de uma mão, nitidamente a unidade dele tinha sido desfeita”. Sentindo que, de algum modo, a sua presença era para ele uma agressão, o Carlos absteve-se de fazer perguntas, limitando-se a ouvir as suas queixas.

Algumas horas depois, escreveu e enviou o artigo que o jornal esperava: “E à primeira vista terei feito um trabalho competente, conhecia muito bem aquilo, lá expliquei que guerra era aquela, quem é que estava a disparar e porquê (...), foi muito elogiado... (...) E de repente dei por mim a pensar: ‘Mas de que é que vale toda a merda que eu escrevi, toda a explicação dos objetivos, quando eu tive à minha frente três seres humanos a viver uma situação destas? Eu devia ter centrado toda a minha reportagem naquelas três almas, e quem andava aos tiros a quem era uma coisa completamente secundária.’ Passaram para aí 20 anos e ainda tenho horas de insónias quando me lembro daquelas três almas, porque, por mais estúpido que isto seja, me sinto culpado. (...) Eu tive ali três seres humanos, naquelas condições, e quando me deitei à escrita dei mais importância a fazer muito bem o meu trabalho, a explicar muito bem como corria a guerra ali, e essa impressão ainda hoje me magoa.”

E prosseguiu: “Vocês dirão ‘Este gajo é maluco dos cornos, isto não tem sentido’, mas é assim. (...) Gente de todas as idades, mas gajos novos, homens em plena idade de combater, que tinham a sua vida e o seu trabalho e de repente se veem na condição de refugiados, enfiados num ginásio com centenas de pessoas à volta, cada uma com um ou dois metros quadrados para dormir, com a vida completamente desfeita, sem qualquer perspetiva, e sabem o que é que dói mais ainda? Não é só tudo isto, que já é muito – é a humilhação. Isso é que me doía: aqueles homens, quase todos ainda por cima do lado perdedor, derrotados num confronto em que se tinham empenhado...(...) Dir-me-ão que sou estúpido, e serei, mas é assim: não era eu que tinha feito aquela guerra, não era eu que tinha destruído a aldeia, mas não me consegue sair de dentro um sentimento de culpa. Acho que não fui suficiente, se calhar não escrevi como devia... Eu não tinha a culpa, bolas! Não dei tiros em ninguém, nem fiz mal a ninguém, nem abandonei ninguém – mas nunca me consegui libertar deste sentimento. Eu olhei com o olhar correto? Eu tive as prioridades corretas na minha abordagem jornalística, na minha prosa? Senti suficientemente na minha pele o sofrimento daqueles seres humanos? Se não senti, fracassei. Fracassei como ser humano e fracassei como jornalista. E isto dói-me muito ainda.”

Admitindo que a passagem a escrito daquilo que testemunha funciona para o jornalista como uma catarse, o Carlos ressalvou: “Mas isso tem uma contrapartida, que é a tremenda responsabilidade que um gajo sente em cada linha que escreve. (...) Este, para mim, é o grande trauma: eu não fui capaz, eu não cumpri o papel que devia ter cumprido e, mesmo se uma vez ou outra posso dizer que me portei mais ou menos bem, não serviu para nada!”

Quando tive oportunidade de trabalhar com ele, percebi que não era apenas um excelente jornalista, um repórter corajoso: era também um excelente camarada.

 

Os Balcãs foram ainda, para Santos Pereira, razão de um outro trauma, premonitório, e que talvez a realidade atual nos permita compreender melhor:

“Acho que ainda hoje não temos bem consciência de quanto se jogou ali como laboratório para ensaiar estratégias mediáticas novas que se desenharam ali. Pode-se escrever uma história da evolução da comunicação, do fenómeno da comunicação, de todos os pontos de vista, dos jornalistas, dos ‘spin doctors’, dos ‘news managers’, por aí adiante, em termos militares também, e sobretudo em termos da vastíssima – e tão discreta que não nos apercebemos bem dela – recomposição geopolítica que ali se deu.”

E referindo a sua longa experiência, sublinhou: “Não me lembro de uma ocasião em que se mentiu tanto, se aldrabou tanto, se forjou tanto. (...) Em que se manipulou e adulterou tanto e se conspurcou de forma vergonhosa os valores mais sagrados em que todos nós nos podemos reconhecer: Direitos Humanos, respeito pela vida humana, respeito pela verdade. (...) Mobilizaram-se organizações internacionais de toda a parte, biliões e biliões de dólares, sacaram-se, manipularam-se, adulteraram-se os valores mais sagrados em qualquer ser humano (...) Tudo isso aldrabado para conseguir meia dúzia de objetivos estratégicos ali.”

Restava-lhe, adiantou, a consolação de ter sido “um dos gajos que rosnou”, de numa sala onde estava o secretário-geral da NATO, Javier Solana, se ter levantado e dito: “Não estou na mesma sala que um criminoso de guerra.” Mas isso não diminuiu o sentimento de impotência: “Eu não fui capaz de travar isto! Não fui capaz, perdi!” “Eu, como jornalista, tive na minha mão, vivi por dentro e tive à minha frente a possibilidade, que as outras pessoas não têm, de denunciar isso, e eu não fui capaz, falhei, não consegui, a manobra passou toda, bem berrei contra as mentiras, ficaram... Este é outro trauma, este sentimento ‘para que é que a gente serve? Faz algum sentido?’ Esta questão assalta-nos inevitavelmente e traumatiza-nos.”

Voltaria ainda a contar um episódio de guerra, o do rapaz que, ao seu lado, teve um dos braços arrancado por um projétil. O Santos Pereira viu o sangue que jorrava, ouviu o jovem dizer “O meu braço, o meu querido braço”, mas foram os olhos dele que o marcaram, que anos depois continuavam a perturbar-lhe o sono: “Eu do braço já nem me lembro, mas os olhos, esses, continuam aqui gravados, e de que maneira!”

O que o preocupava era que o Mundo estava a mudar, e não havia grandes indícios de que fosse para melhor.

Mas se, aos poucos, a recordação dos sofrimentos que testemunhou se tornou um pouco menos dolorosa, o sentimento de culpa – “Dizem que é um sentimento judaico-cristão, e eu sou ateu” – permanece, porque, por muito mau que fosse algum momento que vivia, sabia:

“Daqui a três ou quatro dias vou-me embora daqui, apanho um avião, quando dou por mim estou em Lisboa com uma grande garrafa de vinho à frente e vou dormir uma grande noite numa cama, e estes desgraçados continuam aqui.” Insistiu: “Não consigo fugir a esse senti- mento: ‘Eu estou aqui, até estou a ganhar a minha vida aqui, estes desgraçados estão aqui a morrer e a perder a deles.’ Quase tinha a ideia que os estava a explorar. (...) Esse sentimento de culpa é ainda uma coisa muito marcada.”

Pediram-me um prefácio em que falasse do Carlos Santos Pereira, jornalista. Escolhi fazê-lo usando as suas próprias palavras, quando falava desse trauma em segunda mão que tantas vezes marca as nossas vidas.

Nesse dia, o Carlos, que sempre considerei um excelente jornalista, confirmou a minha convicção de que a primeira qualidade para se ser um bom jornalista é ser um bom ser humano, e demonstrou a razão de Ryszard Kapuściński ao escrever que Os Cínicos não Servem para este Ofício.

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