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'42/8- Meias-histórias: República Espanhola e primeiros passos das revoluções europeias

As greves feministas e sindicais “intervalavam-se com as mobilizações conservadoras e fascistas, que reivindicavam novas eleições todas as semanas” e com as ações diretas de grupos climáticos e animalistas. Na onda da ascensão da extrema-direita na Europa, foi eleita em Espanha uma aliança de conservadores, nacionalistas e fascistas.

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4 Janeiro 2024

Apesar do convite para jantar, não voltámos a ver Gianni naquele dia. Enviou-nos uma mensagem avisando que lhe tinham marcado novas reuniões. Eram umas 8 da tarde quando saímos para passear. Apesar de já não estarmos no pico de calor, ainda se sentia o quente do chão. Ao contrário do vermelho de Lisboa, em Madrid (e no Estado Espanhol em geral) a cor de roupa mais usada no verão é o amarelo. Madrid foi das cidades mais fustigadas pelas ondas de calor mortais das últimas décadas e por isso mesmo a cidade diminuiu de população, tendo hoje cerca de 3 milhões de habitantes (quase três vezes mais do que Lisboa). 

Samuel, o homem que nos recebeu no edifício ontem, quer saber das coisas em Portugal. Diz que não tem muito tempo para ler, mas que se preocupa sempre com o que se passa nos outros países. Depois de meia hora de conversa, em que eu e a Lia lhe contamos um pouco do que se vai passando, peço-lhe informações sobre Madrid. Como já estamos no fim de Setembro, é possível circular com mais tranquilidade, mas Samuel conta-nos que durante o Verão muita gente ruma a Norte por não aguentar as temperaturas da cidade, que chegam muitas vezes aos 52ºC. Nessas alturas a circulação pela cidade é muito limitada e à noite enxames de baratas voadoras passeiam-se pelos céus da cidade (como às vezes em Lisboa). No verão o trabalho em exteriores está proibido entre as 4 e as 9 horas. Há obras pela cidade para aumentar o isolamento das casas e a sombra das ruas, às vezes com plantas, mas principalmente com grandes toldos.

Samuel conseguiu arranjar-nos bicicletas do edifício para passearmos. Apesar de não ter sequer 30 anos, tem a pele envelhecida dos verões escaldantes que sempre viveu. “É por não ter usado creme protetor na rua durante muitos anos, o que aprendi muito tarde, coisas da juventude”, lamenta-se. Sugere-nos fazermos um passeio pelo grande Parque Complutense, resultado da fusão de vários parques antigos da zona Oeste da cidade, hoje interligados para criar corredores verdes, onde tanto animais como pessoas podem percorrer vários quilómetros ininterruptos de zonas arborizadas. Depois, aconselha-nos a descermos até ao Museu do Prado e ao Museu da República Espanhola, onde está uma exposição sobre Espanha na Grande Mudança, que “vos pode contar muito melhor do que eu o que se tem passado por cá na nova República”. Eu e a Lia ficamos entusiasmados com a proposta e arrancámos, o António pendurado no marsúpio, às minhas costas.

Apesar de estar relativamente fresco e de fazermos uma boa parte do percurso debaixo de árvores, há pouca gente nas ruas. Em algumas zonas, grupos de crianças magrebinas dançam e cantam à volta de fontes e chafarizes que estão um pouco por todo o lado. Quando passamos, fazem-nos adeus. Uma parte da migração argelina e marroquina para Norte parou em Espanha, Catalunha e Portugal, e vive principalmente nas zonas mais a Sul da Península Ibérica. São uma boa parte da população rural e agrícola, que é hoje uma comunidade mais internacional que nunca. Muitas pessoas em Espanha migraram para as cidades a norte, para o País Basco, para a Catalunha e para o centro da Europa. Apesar de mais de 9 milhões de refugiados terem chegado ao país nas últimas décadas, a população manteve-se mais ou menos estável.

Depois do passeio de bicicleta, chegamos finalmente à zona dos museus. Visitamos primeiro as obras de arte do Museu do Prado e depois entramos no Museu da República Espanhola. Este museu está onde antes era outro museu, o Rainha Sofia, que foi destruído durante incêndios urbanos há mais de dez anos, quando um fogo que começou no Jardim do Retiro espalhou-se e queimou vários quarteirões entre a Porta de Alcalá e a estação de Atocha. As obras de arte do museu foram salvas e transportadas mais tarde para outros museus, e com a declaração da República uma parte da estrutura do prédio foi reutilizada para criar um novo museu.

Estacionamos as nossas bicicletas por entre as milhares de outras que estão sob o enorme toldo em frente ao museu e entramos. Vários sinais indicam a entrada para os abrigos de calor e o próprio museu é um deles. À entrada, uma senhora recebe os poucos visitantes, repetindo a fórmula: “Traducción, traduction, translation?”, e oferecendo-nos uns óculos que permitem ver a exposição na língua desejada. “Português?” Pergunto-lhe. “Sim, claro”, responde-me através do aparelho de tradução que tem ao pescoço.

Entramos na exposição “Espanha e a Grande Transformação”, que sala a sala apresenta pequenos filmes e hologramas sobre o país desde 2011.

“Um país e um povo são projetos em permanente mudança, e nós não somos diferentes” começa a primeira sala. “Começamos esta exposição em 2011 porque foi um período em que a complacência na nossa sociedade sofreu um forte abalo, que não pararia nas décadas seguintes. Em 15 de Maio desse ano, centenas de milhares de pessoas ocuparam as praças um pouco por todo o país exigindo democracia verdadeira, o fim da política cruel de austeridade em que se desmantelava tudo o que era público e o fim da alternância política entre o PSOE e o PP, os partidos que há décadas governavam o país à vez”. 

Continuámos pelas salas e fomos aprendendo o que se sucedeu, o aparecimento surpresa de um partido chamado Podemos, de outro chamado Ciudadanos e, mais tarde, do Vox. Estes foram-se transformando e acabando com a alternância anterior, enquanto explodiam grandes conflitos na sociedade à volta de temas como a habitação, o machismo ou a crise climática. A Catalunha, que na altura fazia parte de Espanha, tentara tornar-se independente por referendo mas não conseguira, e começaram enormes greves feministas exigindo igualdade entre os géneros e o fim da violência dirigida contra mulheres. Outro movimento, a "Espanha Esvaziada” começou por ser um partido e foi-se transformando num movimento antipartidos rural, que tentou mudar a distribuição de poder entre territórios.

As greves feministas e sindicais “intervalavam-se com as mobilizações conservadoras e fascistas, que reivindicavam novas eleições todas as semanas” e com as ações diretas de grupos climáticos e animalistas. No Parlamento, mais do que uma vez, deputados envolveram-se em violência física. Esta foi a situação até à queda do governo de aliança da esquerda com independentistas. Na onda da ascensão da extrema-direita na Europa, foi eleita em Espanha uma aliança de conservadores, nacionalistas e fascistas. Um período de grande repressão política seguiu-se, com a proibição de inúmeras organizações políticas, incluindo partidos, com a detenção de milhares de ativistas políticos, independentistas catalães e andaluzes, mas também feministas, ativistas climáticos e ambientalistas. O governo liderado por Ayuso retirou a autonomia política a todas as regiões, mandou encerrar mesquitas e construiu um enorme muro de betão entre Ceuta e Melilla, com torres de vigia e militares armados. Todas as legislações de proteção contra violência de género e de pessoas LGBTQ foram revogadas. Os movimentos climáticos do país, na clandestinidade, começaram a sabotar gasodutos, aeroportos privados e os portos de Bilbao, Tenerife, Barcelona e Cartagena. Em 2026, uma greve feminista de duas semanas quase derrubava o governo. Mas no fim, foi o calor que precipitou o “Setembro Vermelho” europeu e em Espanha também.

No ano 1.8, a onda de calor Valens matou mais de 30 mil pessoas em Espanha e em Agosto a onda de calor Walter matou outras 80 mil. Os incêndios florestais devastaram 500 mil hectares, principalmente na Galiza, Astúrias, Andaluzia e País Basco, onde morreram mais 400 pessoas. Enormes mobilizações levaram à queda de vários governos europeus, apesar da enorme repressão policial. Em França, Itália, Holanda, Alemanha e Grécia, os governos em que a extrema-direita governava sozinha e em coligações também caíram. Um governo com um programa republicano de aliança de esquerda com o movimento Espanha Esvaziada e independentistas ganhou as eleições seguintes. A crise climática foi o principal tema da campanha. Com o colapso das Convenção das Nações Unidas para as Alterações Climáticas no final do ano, Espanha foi dos primeiros países a juntar-se ao novo Tratado Mundial do Clima, liderado pela canadiana Tzeporah Berman.

Os anos que se seguiram foram de grande confusão até às revoluções europeias. O movimento “Doce Abraço da Morte” foi muito forte em Espanha, com suicídios coletivos de centenas de mães e pais de crianças mortas nas ondas de calor e nas tempestades de gelo dos invernos seguintes. Estes eventos deixaram um marco pesado na sociedade. “Míriades de alegres criaturas vivas, diariamente, a todas as horas, provavelmente em todos os momentos, afundam-se no doce abraço da morte” lia-se no manifesto de despedida do movimento.

O governo lançou grandes obras para manutenção de água, como cisternas subterrâneas e aquedutos. Atividades com grande desperdício de água, como jardins de relva, piscinas individuais e golfe, mas em particular culturas agrícolas com grande consumo e baixo valor nutricional, foram proibidas. A indústria de gado bovino, que se tinha afundado por causa dos surtos de Mers-Covid, ficou reduzida a algumas centenas de quintas em produção extensiva. Pouco depois começou a faltar comida, levando o governo a ter de distribuir bens alimentares em grande escala, intervindo de forma direta na organização da produção. A seca levou ao abate de milhões de suínos e ao encerramento da maior parte das suiniculturas do país. Os municípios começaram a produzir alimentos de forma regular, embora zonas tradicionais de produção alimentar, como Almeria, tenham tido perdas de produção superiores a 90% em várias colheitas. O novo governo começou uma reforma rural e um grande processo de repovoamento do campo. Criou fortes apoios à instalação de comunidades em zonas subpovoadas para combater a desertificação, para produzir mais comida e instalar floresta para conservar água e solos. Inicialmente o projeto foi muito frágil, com poucos participantes, mas os refugiados do Norte de África acabaram por ser os principais envolvidos neste processo, apesar dos protestos e da violência da extrema-direita. 

Por causa da fome, em 2027 foi convocada uma greve geral que juntou pela primeira vez a Europa, a Ásia e o continente americano. A greve exigia o controlo dos preços alimentares, o desenvolvimento acelerado da capacidade alimentar local e a gratuitidade total de transportes públicos. Os sindicatos espanhóis aderiram e paralisaram o país durante uma semana. O governo não se opôs à greve e tentou apenas organizar serviços básicos, contando com o apoio dos sindicatos e com o ataque de patrões e forças políticas de extrema-direita. No verão, com novas ondas de calor e incêndios, surgiu “El Niño de Málaga”, um profeta apocalíptico que apelava à morte e assassinato “de negros, judeus, sodomitas e bruxas para que na chegada de Cristo à Terra, cujos sinais já vemos, possamos rumar, brancos, europeus e cristãos, ao Reino de Jerusalém”. O culto de “El Niño” espalhou-se por todo o país, começando por organizar orações coletivas e evoluindo para perseguir minorias, sendo responsável por vários assassinatos e linchamentos. 

Nos anos seguintes, movimentos radicais começaram campanhas sistemáticas de raptos e homicídios de grandes figuras da indústria fóssil. Refugiado na Suíça, o CEO da Repsol foi assassinado pela Descarbonária, que assumiu a “execução de um criminoso contra toda a Humanidade e contra o futuro”. Também nesta altura as fábricas da SEAT em Barcelona e da Ford em Valência sofreram ataques pelo movimento Neoludita, que destruiu partes do equipamento das linhas de montagem. Vários trabalhadores da fábrica foram detidos por apoio aos atos. Noutros países, milhares de veículos novos foram destruídos à porta das fábricas. “Uma faca no escuro”, um movimento misterioso até hoje, destruiu jatos privados estacionados em aeródromos por toda a Europa, incluindo em Espanha. A Assembleia Sangrenta, em Londres, levou à detenção e ilegalização dos movimentos associados ao ecomunismo. Em Espanha, mais de 800 pessoas foram detidas.

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As petrolíferas, insatisfeitas com o desempenho das polícias para travar as interrupções frequentes da sua atividade por causa de protestos, greves e invasões, e na sequência da indignação ligada à Assembleia Sangrenta, criaram corpos de segurança privada e financiaram milícias de extrema-direita para proteger as suas operações. Os esquadrões “petronegros” eram os mais conhecidos e o governo teve dificuldades em actuar em centrais e portos, que se tornaram quase zonas privadas. No País Basco, os protestos por causa desta realidade levam milhões a exigir a saída das petrolíferas “espanholas” do território. No final do ano de 2028 foi lançado pelo Tratado Mundial do Clima o sistema mundial de comércio justo, integrando informação sobre os recursos alocados à produção de produtos essenciais e calculando a distribuição equitativa de recursos pelo globo. Começou depois o processo de anulações globais de dívidas externas. Em Marrocos uma revolução ecomunista derrubou a monarquia e começou o processo de colectivização da água, energia e territórios rurais. Semanas depois, revoluções progressistas na Nigéria, Angola e Namíbia levaram ecomunistas ao poder, enquanto governos conservadores religiosos e milícias mineiras tomaram o poder no Congo, no Uganda e no Sudão. As migrações aceleraram, com milhões em fuga dos seus territórios.

Em 2029, depois da suspensão das eleições europeias, uma nova Comissão com a mesma composição majoritária conservadora e fascista indicou vários novos comissários. O fascista espanhol Víctor González foi nomeado Comissário das Forças Armadas Europeias, começando uma campanha entre várias forças armadas europeias para suplantar governos progressistas por meio de golpes militares. Após serem ilibados da responsabilidade da Assembleia Sangrenta, os elementos do movimento ecomunista foram libertados na maior parte dos países. Milícias de extrema-direita por toda a Europa atacaram campos de refugiados e mataram milhares no Sul e centro da Europa. Uma bomba foi detonada no Parlamento Europeu, sem vítimas ou reivindicação. Na América do Sul, coligações evangélicas e liberais surgiram em força no Brasil, Colômbia e Argentina. Um golpe de estado liderado por milícias e movimentos evangélicos tomou o poder em Brasília, enquanto na Colômbia uma aliança de camponeses, paramilitares e Exército Verde travou o golpe militar.

No Ano do Leão foi formada “A Muralha”, uma aliança europeia entre extrema-direita, conservadores católicos e evangélicos. Em Janeiro, a Muralha tentou fazer golpes de estado em vários países europeus, conseguindo tomar o poder nos países nórdicos, em Itália e em Espanha. O levantamento militar em Madrid levou Jesus Marcos, da Falange XXI, ao poder, indicado como presidente do governo pelo rei. O governo golpista espanhol aboliu as autonomias, dissolvendo todos os governos regionais, e tirando o país do Tratado Mundial do Clima. Instaurou o Estado de Emergência para tentar restabelecer a economia fóssil à força.

No início da Primavera, o Comissário Víctor Gonzalez e a Presidente da Comissão Europeia Maréchal deram ordens às forças armadas europeias para atravessarem o Mediterrâneo e impedirem o embarque de quaisquer refugiados. Nos países onde a Muralha tomou o poder os movimentos sociais, ecomunistas e membros do Exército Verde foram perseguidos, com várias execuções levadas a cabo por polícias afetas à Muralha.

Os governos ecomunistas em Marrocos e na Tunísia, assim como as coligações no poder no Egipto e na Argélia avisaram a União Europeia que não aceitariam desembarques em África. A situação no Mediterrâneo estava muito próxima de uma guerra generalizada. Na Europa, depósitos de combustíveis e fábricas de armamento eram sistematicamente destruídas pela Descarbonária e pelos Neoluditas. Um conjunto de fragatas italianas e finlandesas tentou aportar em Argel, Sousse e Tunis e foram afundadas pelas baterias terrestres e pela marinhas argelina e tunisina. Os prisioneiros militares europeus foram levados até à Córsega e libertados. A Comissão Europeia retaliou expulsando todos os embaixadores e emissários dos países MENA, preparando uma campanha militar para o ano seguinte.

Nesta altura, o Exército Verde acelerou manobras clandestinas em Espanha e em vários outros países. A revolução fervilhava na Europa. Antes do fim do ano houve revoltas na Catalunha, no País Basco, na Galiza e nas Baleares. Catalunha, Euskadi e Baleares declararam independência no Ano do Leão. Xerez, Cádiz, Córdoba, Couto Misto, Orense, Pontevedra, Santiago de Compostela e Rianxo declararam-se cidades livres e juntaram-se à Declaração das Cidades Livres, que integrava também Christiania, Nápoles, Marselha e Saint-Denis.

- E a Amadora também! - diz-me Lia, que lia o painel ao meu lado. Sorrio. António dorme nas minhas costas. 

As cidades livres expulsaram dos seus territórios as polícias governamentais com o apoio do Exército Verde. Em poucos meses, dezenas de cidades europeias declararam-se cidades livres e criaram órgãos administrativos próprios. As Forças Armadas Europeias foram chamadas a invadir estes territórios, mas houve relutância, atrasos e recusa de ordens. A Muralha, que tomara entretanto o poder na Sérvia, Croácia, Áustria e Alemanha, além da Comissão Europeia, declarou como principal prioridade reconquistar as integridades territoriais e nacionais da “Europa das Nações”, introduzindo o recrutamento militar obrigatório e prometendo cidadania a estrangeiros que se alistassem. Exceptuando migrantes e refugiados, houve uma rejeição generalizada do recrutamento. Estes migrantes passaram a constituir as “unidades naturalizadas”, a base do exército europeu da Muralha. Em Itália e em Espanha, os exércitos receberam ordens para bombardear as cidades livres e ocupar os territórios que tinham declarado a independência. Houve motins em várias unidades, com oficiais detidos pelos soldados e sargentos, que rejeitavam a guerra. Estalou a Revolução Francesa, a Revolução Brasileira e foi fundada a República Oriental Africana. Antes do ano acabar foi decretado o cessar-fogo na Guerra Civil Americana.

O ano seguinte começou com novas greves gerais por toda a Europa. Os governos de Espanha, Portugal, Itália, Alemanha, Grécia, Áustria e Hungria foram tomados por alianças revolucionárias que incluíam Ecomunistas, Mundo Novo, Última Geração, Femina, Verdes, Comunistas e Nova Esquerda. Em Madrid começou a sangrenta batalha entre as milícias governamentais, o exército profissional e a maior parte da polícia, de um lado, e as milícias republicanas, as “unidades naturalizadas” e as guerrilhas do Exército Verde, do outro. Durante duas semanas a cidade sofreu fortes combates que levaram à morte de milhares de civis e combatentes. No resto do país o governo fascista perdeu todos os confrontos que tinha conseguido montar. Em Maio, o resto do exército fascista rendeu-se. Um conselho revolucionário tomou o poder e proclamou a República Eco-Social, abolindo a monarquia. A família real fugiu, sem se saber o seu paradeiro. 

A Muralha foi derrubada em todos os outros países onde governava. Por toda a Europa, dirigentes d’A Muralha foram presos. Os novos governos revolucionários abandonaram a União Europeia, que começou o seu processo de dissolução enquanto a sede das duas instituições mergulhava na convulsão da cisão da Bélgica em Flandres e Valónia, com Bruxelas no meio, declarando-se cidade livre. 

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Na República Eco-Social de Espanha começou o processo de desmantelamento das polícias com reconversão em outras profissões. Foram criados os corpos locais de cuidado permanente, combinando serviços de animação cultural, julgados de paz, cuidados de saúde e manutenção habitacional. O novo governo fechou todas as refinarias, mantendo apenas Puerto Llano em funcionamento. As centrais de gás foram encerradas. Lançaram-se os grandes projetos de renováveis descentralizadas, congelados pelo governo golpista. Esse verão, El Niño de Málaga imolou-se, desencadeando motins na Andaluzia, mas o movimento desvaneceu-se em poucas semanas, perante o calor abrasador de mais um verão escaldante.

- Alex…

- Sim?

- Acho que já estamos um pouco cansados de estar aqui. - disse-me a Lia. Talvez possamos voltar amanhã. O museu é bestial, mas o António, e eu também, precisamos sentar-nos e descansar. Também está a ficar tarde.

- OK, claro.

Tomámos um café na praça enquanto o bebé mamava e regressámos às bicicletas e ao Mundo Novo. 

Quando chegámos ao apartamento, Gianni e o seu companheiro Ettore tinham preparado um jantar para nós: uma mistura de seitan, tofu, queijos e um vinho fraco com gás. Tudo muito adequado ao calor que ainda se fazia sentir ao fim do dia. Por receio das baratas voadoras, as janelas estavam fechadas, mantendo-se a refrigeração a ventoinhas. No pico do verão seria impossível não utilizar ar condicionado e estar ali, garantiu-nos Ettore, que era um homem alto e charmoso, com olhos verdes, cabelo ruivo encaracolado e sardas no nariz. Entre as várias razões para o desmantelamento das torres eram os consumos absurdos de água e energia para manter um edifício daqueles, além da utilidade dos materiais, reciclados para construir outros edifícios e infraestruturas necessárias na cidade.

Ao jantar a conversa andou à volta da situação atual, com Gianni a perguntar-nos sobre Portugal e contar-nos também muito do que se passa em Itália e em Florença depois das cheias do rio Arno no ano anterior. Gianni é Comissário de Energia na cidade florentina mas além disso ele e Ettore ainda ocupam posições de responsabilidade no movimento Ecomunista internacional, pelo que estão em viagens pela Europa. Entre os principais problemas que têm em mãos no momento estão a sabotagem de renováveis, a persistência d’A Muralha na Aliança das Cidades Livres e a máfia que está a tentar reativar partes da indústria fóssil.

- O trabalho nunca acaba, e estamos a perder algum do ímpeto revolucionário que tínhamos. - Desabafou Gianni. - Tu estás envolvido no movimento, Alex? Lia?

- Não, só estou a participar nas assembleias locais, como toda a gente. - respondi.

- Eu estive muito quando era mais nova, na cidade livre da Amadora, nas lutas para manter a autonomia da cidade, mas entretanto mudei-me para Lisboa e comecei a ajudar com a recepção das caravanas migratórias, que apesar de não ser organizada pelo movimento, ainda me mantém em contacto com muita gente. - disse a Lia

- Que bom, Lia. E Alex, tu nunca quiseste participar, considerando os teus pais?…

- Na verdade, o meu pai nunca me incentivou a participar. Ele próprio teve um papel cada vez mais pequeno no movimento, especialmente depois da morte da mãe. E o meu avô, no ano antes de morrer, não parava de falar dos erros do movimento e de como era preciso uma coisa nova.

- Não estava errado, é preciso de facto coisas novas, mas estão a acontecer, dentro e fora do movimento. - interveio Ettore.

- A revolução está longe de acabada, e pensarmos que sim é péssimo. - concluiu Gianni, com um ar zangado.

O ambiente ficou pesado até Ettore se levantar e começar a cantar. Lia juntou-se-lhe, seguida de Gianni e eu próprio. Acabámos a rir-nos muito. Após o jantar, a Lia foi-se deitar e Ettore também se despediu de nós. 

- Podemos continuar a nossa entrevista, Gianni?

- Sim, claro.

- Voltava então às perguntas sobre como vocês organizaram e como se fizeram as revoluções europeias.

- OK, é uma pergunta bastante longa. Bem… Havia, há muito tempo, condições para sublevações, para motins, um desassossego permanente, mas o que nós precisávamos era revoluções. As fórmulas velhas, em particular as marxistas, consideradas as mais modernas à nossa disposição, colocavam demasiadas condições esquemáticas à nossa frente, e para além disso o que tínhamos eram conspirações, golpes palacianos, grandes gestos. De que valia a pena tomar um parlamento italiano e declarar que era uma revolução, mesmo que se tivesse atrás uma massa de centenas de milhares de pessoas? Ou ser eleito para isso sequer? O poder já não vivia ali. A democracia europeia, em particular a nível das instituições europeias, era tão simbólica que literalmente os ministros europeus (comissários, chamava-se na altura) eram escolhidos sem base em eleições e os deputados europeus eleitos não tinham poder para nada. Fazer uma revolução num só país só seria menos inútil do que ganhar as eleições num só país. Combatíamos um poder invísivel, longínquo, articulado e bem armado. Claro que ameaçar estes símbolos de poder  - e tanto parlamentos, como infraestruturas ou telejornais eram mais símbolos de poder do que órgãos de poder - significava sempre uma enorme e violenta repressão, mas nós éramos os herdeiros do caos e de Garibaldi, não podíamos esperar.

Havia uma enorme tensão com todos os possíveis aliados. As tradições e as práticas revolucionárias estavam perdidas e os movimentos muito desarticulados. Os velhos cismas de esquerda já não eram tão evidentes, todos os grupúsculos anarquistas, trostkistas, maoistas, leninistas apresentavam versões requentadas dos mesmos planos de sempre, ao qual se juntava uma enorme sensação de impotência perante a ascensão da extrema-direita. Do movimento ambientalista vinha também uma história de compromisso e traição, com pequenas vitórias no meio de gigantes derrotas. O ponto de partida não podia ser só uma revisão do passado, embora fosse importante olhar para o passado. Muitas das lutas em defesa da água e dos territórios, muito sólidas e coerentes, não tinham a capacidade de disrupção em escala internacional e olhavam com desconfiança perante as propostas que vinham do norte. A urgência e a juventude mudaram este cenário, no entanto, e começou a haver mais clareza, não uniforme, mas o reconhecimento de que não havia tempo para adiar as coisas. Corríamos o risco de perder tudo se não arriscássemos tudo.

Com as ondas sucessivas de choque da crise climática, num primeiro momento, esta articulou-se com a crise de austeridade escolhida pelos políticos do Norte Global, e a extrema-direita entrou e colheu os despojos das catástrofes. Aí perdemos muita gente para a prisão e para o desespero. Mas também ganhámos uma capacidade de resiliência nova. Fascistas e racistas entraram nos vários governos europeus. Inacreditavelmente trouxeram o carvão e o petróleo de volta. Mesmo depois do acidente nuclear em Zaporizhzhya lançaram os seus projetos absurdos e deram ainda mais subsídios às grandes energéticas. E lançaram os seus planos de sempre: ilegalizaram o aborto e os direitos das mulheres, proibiram cirurgias de mudança de sexo, perseguiram minorias política e economicamente. Passou a ser obrigatório as pessoas aos 18 anos fazerem um ano de serviço militar. E acabaram com o velho sonho do liberalismo europeu: a livre circulação dentro do Espaço Schengen, assinando um acordo vergonhoso de deportação de milhões de refugiados para a Líbia.

A agitação social subiu de forma dramática, como se tivéssemos recuado no tempo. Nessa altura foi criado o Mundo Novo, juntando sindicatos, académicos e movimentos climáticos, criando grandes planos de transformação social. O movimento feminista organizava manifestações de massas perante o ataque da extrema-direita. As Femina atacaram a Igreja Católica e as sedes de vários destes partidos, enquanto o movimento LGBTQ+ ocupava ministérios da Saúde e igrejas evangélicas, principalmente. Havia muita resistência, nomeadamente às deportações de refugiados, que eram impedidas através de bloqueios, invasões de aeroportos e até ocupação das pistas. Nessa altura o Bibby Stockholm, o navio prisão de emigrantes, foi afundado em Dorset. Pouco depois surgiu o movimento neoludita, levantando reivindicações antitecnologia. Começaram por destruir Data Centers na Irlanda e na Suécia. Nessa altura também foi anunciada a Descarbonária, que como primeira grande ação destruiu a fábrica da Volkswagen em Wolfsburgo, queimando mais de 10 mil carros novos, afundando depois um cargueiro com barcos no mar do Norte. A ORCA, que já existia antes, afundou também por essa altura parte da frota de pesca da Maruha Nichiro, da Mowi e da Skretting. Ainda não havia movimento Ecomunista, mas o movimento pela justiça climática sabotava vários portos LNG na altura, tendo até havido confrontos com estivadores dos portos. Mesmo nas manifestações mais pacíficas a polícia era extremamente violenta. Lançavam gás e cães robots contra os manifestantes, prendendo pessoas às centenas de cada vez.

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- Mas estes movimentos estavam articulados entre si?

- Pouco. O principal trabalho que levou à formação do movimento Ecomunista foi a articulação entre movimentos. Requeria confiança, ambição e urgência, mas não estávamos todos na mesma página, como te expliquei no outro dia. A pressão das ondas de calor e da extrema-direita forjou a aliança possível para arriscar-nos. Mas mesmo aí houve quem tenha hesitado e ficado para trás. Foi tanto de coragem e planificação como de loucura.

- Como é que tu tiveste um papel central?

- Foi um acaso, e foi mais relevante aqui na Europa. Eu vinha de uma família conservadora, mas sempre fui um rebelde. Na escola juntei-me às greves climáticas e continuei na criação da Última Geração e da Liga Disruptiva. E percebi que tinha alguma coisa de organizador em mim. Mais tarde acabei por organizar fóruns internacionais e procurar fazer pontes entre movimentos, como os Congressos Mundiais pela Justiça Climática. Finalmente fui convidado para um pequeno grupo de coordenação sem nome, o “petit comité” como lhe chamámos. Fiquei responsável de fazer a ponte com várias iniciativas que estavam a ser lançadas, algumas dentro do movimento, outras fora. A minha tarefa era trazer informação necessária entre elas e com o petit comité. Foi assim que conheci a Descarbonária, o Exército Verde, a ORCA, os Neoluditas e muitas outras. Era uma posição de muita responsabilidade, eu sabia muita informação importante. Muitas vezes tinha de andar disfarçado, usar nomes falsos, não podia ser detetado ou sobressair na multidão. Tornei-me um camaleão.

- Foi nessa altura que conheceste a minha mãe?

- Sim, foi. 

- Em que contexto é que a conheceste? A que organização pertencia?

- Foi… Acho que quando a conheci estava na Descarbonária, ela esteve em mais do que uma.

- E podes descobrir? Era importante para eu perceber melhor o que aconteceu com ela. - Gianni encolheu os ombros e apertou os lábios.

- Desculpa adiar de novo, mas posso responder-te amanhã ao resto das perguntas. Mas para isso vou-te fazer um novo convite. Vocês têm de vir connosco numa viagem.

- Onde? 

- A Bruxelas.

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