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'42/5 - Caixas e cartas

Os papéis tinham muito pó. Lembraram-me de como passei a infância a tossir, com asma e alergias que o médico dizia serem por causa dos incêndios florestais. As temperaturas altas e os meses de incêndios florestais na Europa tiveram um forte impacto na saúde de toda a gente, mas sobretudo nas pessoas mais novas e mais velhas.

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7 Dezembro 2023

Enquanto tentava organizar a vida para as próximas entrevistas, reabri algumas das caixas dos meus pais. Depois de tanta informação acerca do contexto global, queria olhar para a Europa e perceber o que aconteceu aqui. Como fora, houve uma sucessão de crises e grandes transformações. Só me lembro de algumas das coisas até ao ano das grandes ondas de calor, e melhor daí para a frente, quando já era adolescente.

Os papéis tinham muito pó, o que me fez ter um mau ataque de tosse. Lembrou-me de como passei a infância a tossir, com asma e alergias que o médico dizia serem por causa dos incêndios florestais. As temperaturas altas e os meses consecutivos de incêndios florestais na Europa tiveram um forte impacto na saúde de toda a gente, mas sobretudo nas pessoas mais novas e mais velhas. O pior ocorreu nas crianças que nasceram nos piores momentos, como 2026, 2029 e 2034. 

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Abri uma janela e pouco a pouco passou a tosse. Agora há redes em muitas das janelas, e redes mosquiteiras para as camas por causa dos mosquitos da malária e Zika. Liguei o gira-discos da AKAI e pus a tocar um velho disco do meu pai (fiquei com todos), do Fela Kuti “Noise for Vender Mouth”. O velho aparelho tem um som incrível e é mais um eletrodoméstico recuperado. Há uma década, com a interrupção do transporte em grande escala de eletrodomésticos e com a interdição de fazer produtos que se estragavam de propósito, formaram-se escolas para ensinar como arranjar toda a espécie de aparelhos elétricos e mecânicos. Agora são muito procuradas, as “Academias da Reparação”. Também as lojas de reparação aparecem como cogumelos. Arranjam tudo: máquinas de cozinha, de escrever, aparelhos de som, televisões, vídeos, motas e até carros elétricos. Segundo me dizia o meu pai, agora há coisas que não se via há décadas. Com a redução do acesso à internet e com o regresso de velhos discos em vinil e cassetes, muita música antiga voltou, assim como os clubes de filmes.

Infelizmente o meu pai não era uma pessoa muito organizada. Encontrei vários cadernos de cores diversas, agendas e resumos de reuniões, muitos papéis avulsos soltos em folders. Um folder plástico “Ano 1.8” chamou-me a atenção. Abri-o e espalharam-se pelo chão vários papéis. O primeiro que apanhei era um panfleto em papel grosso e brilhante, daquele que já quase não se vê. O meu pai tinha tomado notas em vários dos documentos, às vezes comentários divertidos ou irónicos, riscos e outros, anotados a caneta vermelha.

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Por baixo apanhei a impressão de um artigo da internet dentro de uma outra capa de plástico.

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Havia uma carta escrita à mão (uma raridade!) pela minha mãe ao pai dela.

Olá, pai. Escrevo-te para me despedir. Vou estar ausente durante algum tempo e não sei quando nos voltaremos a ver ou a falar. Lembras-te de quando falámos sobre o que era ter vivido durante uma guerra? Já não preciso especular, pois estamos metidos na maior guerra que alguma vez enfrentámos. Eu sei que estás com esperança por causa das recentes mudanças políticas, mas eu sei que será preciso mudar muito mais do que foi recentemente prometido. É bom, claro, mas isto devia ter acontecido há 20 anos e não agora, quando tudo está a cair. 

Mesmo agora, eles continuam a não fazer tudo o que é preciso. Não estão a matar as futuras gerações metaforicamente, estão a matá-las literalmente. Quando eu vi aquelas mães e pais que perderam crianças para o calor a suicidar-se frente ao parlamento, decidi que não posso ficar à espera que um desastre aconteça ao Alexandre. Vou abandonar a Liga e a Última Geração. São sítios importantes para formar pessoas, e temos formado muitas, mas é preciso mais, e eu sei que há mais.

Não há dúvidas sobre o que vai acontecer se não arriscarmos tudo agora. Eu sei que sempre me pediste que não me expusesse, que, se possível, ficasse na retaguarda, a escrever, ou que tentasse a política institucional, mas não dá. As essas portas já foram bater milhões de pessoas, já perdemos décadas, um desastre para a nossa espécie ter ficado tanta gente atolada nesse pântano. Eu estou viva neste momento e ainda há esperança, por pequena que seja. A catástrofe deste ano não dá mais esperança do que antes, mas pelo menos os fachos foram varridos na enxurrada. O problema é que o que aconteceu agora vai voltar a acontecer e por isso temos de nos lançar de cabeça em mudar tudo enquanto há tempo. Temos de derrubá-los agora, temos de desmantelar o seu poder agora. Em termos práticos, quero dizer-te que o António vai ficar com o miúdo. Ele vai afastar-se para poder tomar conta dele e para fazer outro trabalho político complementar, que não é o que eu vou fazer. Falei com o António e acho que vocês os três deviam ir viver juntos. Não faz sentido ficares nessa casa gigante sem a mãe, e ele também precisa ajuda com o miúdo.

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Sabes, acho que vai ser uma aventura. Estou mais excitada do que temerosa. Sinto-me um pouco culpada por deixar o Alberto, sinto que sou uma má mãe. Mas se eu não for, quando tanto tem de acontecer em tão pouco tempo, que pessoa serei eu? Não a pessoa que cresci a pensar que era, de certeza. Tenho medo. Tenho medo do que me pode acontecer. Tenho mais medo do que vai acontecer se não ganharmos. Tenho ainda mais medo de perdermos sem sequer termos tentado ganhar a sério.

Nada mais será igual. Não vou ficar sentada a assistir ao fim do mundo quando tenho energia, imaginação e coragem para tentar ganhar um futuro para todas nós. Se algo me acontecer, sabes que eu aprendi contigo e que tenho e sempre tive a cabeça no sítio certo. Neste tempo, ter a cabeça no sítio certo e não ser radical é impossível. E se inventarem mentiras sobre mim, nunca te esqueças que eu nunca faria nada contra pessoas inocentes. 

Espero que saibas que pensarei em ti e na mãe, além do António e do Alberto, enquanto estiver fora. Tudo o que fizer farei pensando em vocês. 

Um grande beijo, Marta.

A Lia e o António entretanto voltaram para casa. A Lia chamou-me e fui ter com ela à cozinha, para lhe contar também da descoberta da carta da minha mãe. Ela tinha ido buscar detergentes e azeite na bicicleta elétrica e pousou os frascos de plástico grosso em cima da mesa. Há menos azeite disponível, a recarga foi de apenas dois litros, quando normalmente é de cinco. Uma nova praga está a afetar os olivais. Como a Lia não tinha levado outros frascos recarregáveis, não tinha podido trazer o restante em óleo de colza. As recargas de detergentes para a máquina da loiça e para lavar o chão, no entanto, tinham vindo. 

Lembrei-me que as primeiras leis contra a produção de materiais de plástico e papel descartável também vinham do “Ano 1.8”, quando os sistemas de venda tiveram todos de mudar. Lembro-me bem da grande mudança que foi passarmos a ter sempre de levar connosco tudo o que precisávamos para trazer para casa o que precisávamos: fossem garrafas de vidro, garrafas de plástico grosso, sacos de ráfia ou de pano. Eu era adolescente. No início foi muito confuso, e muitas vezes tínhamos de voltar a casa para ir buscar algo onde transportar as coisas, mas com o tempo habituámo-nos. Agora planeamos sempre o que vamos buscar antes, e sabemos exatamente o que levar (o que não quer dizer que haja sempre o que queremos). Cozinhei soja frita com arroz para o jantar e fomos deitar-nos sob a rede mosquiteira, onde reli a carta da minha mãe, com lágrimas nos olhos.

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