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'42/15- O Ano do Leão

O Ano do Leão foi o mais simbólico evento daquela que provavelmente é a maior crise provocada deliberadamente por um ser vivo no planeta Terra: a sexta grande extinção de espécies. Apesar de todos os avisos, ninguém tinha levado a sério esta ameaça, até ser impossível escapar à realidade.

21 Março 2024

Deitado na minha carruagem-cama conseguia ver pela janela as águas do Lago Michigan. Já tínhamos feito metade do caminho quando parámos em Chicago. O casal que me acompanhava e a sua criança barulhenta despediram-se. Finalmente tinha sossego. Depois de passarmos dos arredores da cidade, começou um percurso muito bonito a que chamavam “Great River Rail”: no meio do grande lago flutuavam barcaças cobertas de painéis solares transportando pessoas e mercadorias enquanto capturavam energia. Grandes bandos de aves voavam sobre as águas. Do outro lado dos carris erguia-se uma densa floresta de coníferas, pontilhada por algumas casas. As cheias do Lago Michigan já tinham submergido a linha naquele lugar várias vezes nos últimos anos, como avisou o condutor do comboio, tendo os maiores efeitos das rápidas oscilações do nível de água sido sentidos nas zonas baixas das cidades de Chicago e de Milwaukee.

Estava deitado há quase uma hora, exausto mas sem conseguir dormir. O colchão era demasiado mole e a minha cabeça não conseguia desligar. Estava preocupado com a falta de resposta por parte da Lia. Tinha voltado a tentar ligar sem sucesso. As minhas mensagens também não tinham resposta. Imaginei algum acidente, com ela e o António a serem apanhados numa cheia em Espanha sem a minha ajuda, e eu ali desaparecido a milhares de quilómetros de distância, um oceano inteiro entre nós e sem qualquer possibilidade de poder voltar para casa se fosse urgente. Tomei a decisão errada em vir. Mas ela incentivou-me. Para quê? Para escrever um livro sobre uma coisa que não interessava a ninguém além de mim? Bolas.

O comboio oscilou quando me levantei da cama, pelo que deixei cair o relatório, espalhando-se as suas muitas folhas pelo chão. Apressei-me a apanhá-las, pensando no trabalho extra de ter que reordenar as folhas agora completamente desorganizadas. Sentei-me na mesinha que havia a tentar pô-las por ordem, mas a oscilação continuava e fez-me sentir ligeiramente tonto, recordando-me a viagem marítima até Nova Iorque. Começava a ficar angustiado com a dificuldade em sentar-me e ler o que a Josephine me tinha dado. Era uma mulher muito inteligente, seguramente estaria ali algo que me permitiria conhecer melhor a minha mãe, na sua versão “Maria García”. Abri o computador para tentar ver outras coisas que a Lia me tinha enviado. O “Ano do Leão” era algo que estava bastante presente em vários documentos e entrevistas que tinha feito, mas eu não sabia exatamente quão crítico tinha sido aquele momento. Entre os correios que ela me tinha enviado estava um podcast intitulado “Leão”. Pu-lo a tocar enquanto me deitei de novo.

Podcast: Ano do Leão, o início de uma nova era

O Ano do Leão foi o mais simbólico evento daquela que provavelmente é a maior crise provocada deliberadamente por um ser vivo no planeta Terra: a sexta grande extinção de espécies. Esta espécie já não tem um valor ecológico central para a maior parte dos ecossistemas onde uma vez  pontificou, fruto da redução dos seus números ao longo do último século, mas não devemos esquecer que a Panthera leo já foi conhecida como “O Rei da Selva”. Mas o impacto psicológico do desaparecimento dos leões selvagens na espécies humana provocou uma profunda comoção por todo o mundo. Ao contrário dos Dódós, dos pequenos golfinhos Phocoena sinus, ou dos rinocerontes da Sumatra, a extinção dos leões em natureza, cujo enorme risco vinha sendo assinalado há mais de duas décadas por cientistas não passou como “apenas mais um ser vivo desaparecido”. Os dois últimos exemplares conhecidos, duas leoas adultas chamadas Noltapata e Hasina, foram encontradas mortas na Reserva Natural de Masai Mara, no Quénia. Foram as derradeiras vítimas de caçadores furtivos a mando do califado Aden Ayro. 

A notícia espalhou-se como fogo na savana africana: o anunciado fim do leão tinha chegado. Apesar de todos os avisos, ninguém tinha levado a sério o definitiva que era esta ameaça, até ser impossível escapar à realidade. Houve cerimónias e missas improvisadas, cantos de dor e de tristeza levantaram-se primeiro na África Oriental, depois espalharam-se pelo continente e rapidamente para todos os outros. “Roubaram tudo a África. Roubaram as suas pessoas e os seus recursos, as suas árvores e os seus minérios. Roubaram os seus elefantes e as suas gazelas. Reproduziram mini-Áfricas e mini-mundos nos jardins zoológicos ocidentais enquanto construíram a destruição de tudo o que ainda sobrava ao nosso povo. E agora? Agora roubaram o nosso leão, o nosso símbolo, a nossa força, a nossa divindade. África não pode mais ser roubada. Não vamos mais deixar África ou o seu povo ser roubado.” Ouvimos Theresa Shabani, líder do movimento panafricano Ushindi wetu.

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O efeito dos caçadores furtivos na extinção do leão é responsável no máximo, por 5% dos desaparecimentos. A proibição de caça legal a leões não tinha sequer cinco anos quando morreram os últimos exemplares. Mas mesmo a soma de caçadores furtivos e caçadores legais representou quase nada em comparação com a destruição do clima e dos habitats e da possibilidade de manutenção dos hábitos de caça e abrigos naturais dos leões. Em menos de dez anos passou-se de cerca de 20 mil leões vivos na natureza para nenhum. A guerra total entre o exército tanzaniano e as milícias do Estado Islâmico que antecederam a formação do califado é considerada diretamente responsável pelo desaparecimento de cerca de 14 mil leões do país. A sul, o mesmo conflito contribuiu para a destruição de mais de dois mil leões, em particular na Reserva do Niassa e no Parque Nacional da Gorongosa. As peles e ossadas de leões passaram a ser elementos usuais nas fardas dos exércitos de todos os lados. As ondas de calor na África do Sul e no Botswana dizimaram as presas dos leões, as populações locais de zebras, bois-cavalos e búfalos, tendo as temperaturas extremas vitimado ainda quase todas as crias de leão no processo. As notícias do desaparecimento de populações inteiras por país, que se foram sucedendo nos anos antes do Ano do Leão levavam sempre a anúncios de fundos e de iniciativas públicas e privadas para travar o desaparecimento da espécie. Estes fundos eram ou desviados para outras iniciativas, gastos em projetos inúteis ou nem sequer chegavam a ser transferidos. A promessa de clonar leões para repovoar a África do Sul ou de introduzir na natureza as populações crescidas nos jardins zoológicos apenas levaram a mais desapontamentos e morte dos espécimes envolvidos. No fundo, assinalamos o fim do leão, mas o que desapareceu também foi o território e os climas que tinham permitido a existência da espécie por todo o continente. Não tinham também desaparecido os leões das cavernas europeus dezenas de milhares de anos antes, quando surgiu a agricultura? Isto preconiza, sem um enorme esforço, o fim de várias outras espécies.

No resto do mundo, em profunda convulsão, entre o bloqueio do canal do Suez, o cemitério do de arame que matava milhões na Europa de Leste, os rumores revolucionários na Europa e no continente americano, a notícia do fim do leão foi muito simbólica. Mesmo em zonas de conflito houve paralisações. De todos os lados as pessoas percebiam que o que estava a acontecer não era mais escapável ou evitável. Não havia ninguém que não soubesse o que era um leão, provavelmente toda a gente já tinha até visto um leão e a sua força bruta em algum momento da vida. A extinção do leão foi vista como a extinção de uma parte da humanidade. A extinção do leão significava que nós podíamos extinguir-nos, que nós, humanos, podíamos desaparecer. E não é como se não houvesse gente a dizê-lo há algum tempo. Ainda por cima aconteceu depois do ataque nuclear no Texas, depois da explosão da central de Zaporizhzhya, depois das ondas de calor e das quebras massivas de colheitas. As maneiras como podíamos desaparecer eram várias e acumulavam-se. As lutas que existiam encarniçaram-se e a violência aumentou. Não sabemos se foi coincidência ou não, mas até ao fim desse ano a velha ordem estaria destruída, a muralha arrasada, as revoluções francesa, brasileira e californiana teriam derrubado os regimes em vigor. A guerra civil americana pararia e Rússia tornar-se-ia um potência alimentar, após anos a perder os seus territórios periféricos. A imagem do crânio de leão com a sua juba tornou-se um símbolo revolucionário. A imagem do leão tornou-se um dos principais símbolos da Grande Mudança.

O Ano do Leão foi também o ano que assinalou a destruição do califado Aden Ayro. A própria bandeira da República Oriental Africana, a OAR, formada em Dezembro de 2030, assinala as ossadas de leão. O exército da OAR, composta pela África do Sul, a República Eco-Social de Moçambique, Tanzania e Quénia, conseguiu terminar o que o anterior exército da SADC não tinha conseguido: destruiu o Estado Islâmico na África Oriental. Diz-se que no regimento que conseguiu finalmente conquistar Mbeya ao califado iam os ossos de Noltapata e Hasina. As palavras finais da general Mondlane no discurso de formação da nova república foram mesmo “Sob as ossadas do último leão erguer-se-á o grande elefante africano”. 

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OAR

Até chegarmos a Minneapolis voltei a falar com Luiz acerca da minha mãe. O seu conhecimento sobre a sua vida após sair da Descarbonária era pequeno, apenas sabia que ela tinha ido para Sul e que tinha voltado ao México, onde tinha feito estragos nas operações da máfia. E sabia que ela tinha morrido lá, no México. De resto contou-me muitas histórias sobre o que ele próprio tinha feito entre o fim da guerra e a dissolução da Descarbonária, como tinha rejeitado juntar-se ao partido e acabado por voltar para a Transpiness, onde agora já não se enquadrava bem. Era uma pessoa que tinha ficado desenquadrada depois de anos de ação ao mais alto nível. 

- O mundo ainda é um sítio muito perigoso, mas eu já não me sinto capaz de enfrentá-lo como quando tinha vinte anos. Por outro lado, vejo muita gente jovem no comando, o que é encorajador, mas também às vezes sinto que não têm a experiência e a consciência suficiente das ameaças. Se calhar foi um erro a dissolução da Descarbonária, mas também não tive vontade de seguir os passos da Maria e juntar-me ao Exército Verde. Mas ainda não sou um velho.

- Quantos anos tens?

- Quarenta. - Parecia ter bastante mais.

- Sei que pareço mais velho, mas é só fruto de quase duas décadas de tensão máxima.

Antes de chegarmos a Minneapolis, Luiz desapareceu. Foi à chegada à estação que consegui finalmente falar com Lia.

- Estás bem? Não consigo falar contigo há dias.

- Sim, está tudo bem. Já estou de regresso a casa. 

- O que se passou? Porque não me respondeste?

- Está tudo bem, não te preocupes. O António também está bem. 

- Então porque não consegui falar contigo?

- Alex, aconteceu uma coisa. Não fiques stressado. - como é que eu não fico stressado depois de me dizerem para não ficar stressado?

- O que aconteceu?

- Eu e o Ettore… Nós ficámos juntos.

- Ficaram juntos como?

- Como as pessoas ficam juntas. Somos adultos, Alex.

Fiquei em silêncio, atónito.

- Alex, estás aí?

- Sim. OK, tu estás bem em casa com o António. Mas foste para a cama com outra pessoa. Mas não estava tudo bem entre nós? Nós não tínhamos um acordo de ficar juntos os dois enquanto o António fosse criança?

- Eu não quero deixar de estar contigo, Alex. Foi só uma coisa que aconteceu.

- Não foi só uma coisa que aconteceu. Se fosse só uma coisa que aconteceu não paravas de me responder durante dias…

- Ele é interessante, mas não é mais do que isso. Ele está com o Gianni. Não faço disto mais do que uma coisa física. - As tentativas de me tranquilizar não estavam a ser muito eficazes. Entretanto o comboio tinha parado em Minneapolis.

- Lia, eu tenho de sair. Estou a chegar a Minneapolis. 

- Falamos depois?

- Sim, falamos depois. Não sei ainda como vai ser a minha vida aqui nos próximos dias.

- Um beijo Alex.

- Tchau.

Que murro no estômago. Quando saí do comboio um homem veio ter comigo e cumprimentar-me, levando-me novamente a uma sede do partido ecomunista na cidade, um ritual que se iria repetir em quase todos os sítios que eu ia visitar. Nem me lembro bem da nossa conversa, só pensava no que a Lia me tinha dito. As entrevistas foram bem rápidas e no dia seguinte estava novamente no comboio, rumo a Denver. Lia tinha-me ligado ao fim do dia mas eu tinha-lhe enviado uma mensagem escrita a adiar a nossa conversa para mais tarde.

Quando o comboio arrancou Luiz veio sentar-se e meu lado.

- Ainda por aqui? - perguntei-lhe.

- Sim, se não te importares com a companhia.

- Não, nada. - disse sem grande energia.

- Que se passa contigo?

- Estou um pouco abalado com uma novidade sobre a minha companheira.

- O quê? Ela enrolou-se com outra pessoa?

- Como sabes?

- É a resposta a mais de 80% das preocupações de casais. Mesmo quando as pessoas se acham muito modernas e livres. É um pouco surpreendente.

- Nós sempre tivemos uma relação muito aberta. Há anos. Relacionávamo-nos com outras pessoas, mas voltávamos um para o outro ao fim do dia, na maior parte das vezes.

- Então o que há de diferente agora?

- Tínhamos feito um acordo, agora que tínhamos decidido ter um bebé, que enquanto ele fosse pequeno, não estaríamos com outras pessoas. 

- Mas entretanto tu vieste para o outro lado do mundo. Não falaram sobre isso?

- Não. 

- Então acho que talvez estejas a ser um pouco dramático.

- Obrigado pela tua opinião.

- Acalma-te, é normal estas coisas acontecerem. A maneira como as relações foram idealizadas ainda está presa num passado em que as coisas eram completamente diferentes. E mesmo aí era mais fantasia do que um modelo funcional, por isso requeria tanta repressão e violência, em particular para manter as mulheres na ordem. As últimas décadas viram enormes modificações, não foi apenas haver mais aceitação das diferentes orientações sexuais e identidades de género. Mas não há nenhum modelo que funcione sempre, é…

- Obrigado, não quero receber uma aula. Eu sei que isto é tudo complicado, mas também sei como me sinto.

- OK, não te chateio mais. Como vai a leitura do relatório da tua mãe?

- Lenta. Estava a pensar lê-lo agora.

- Não te atrapalho.

Ficámos ali sentados. 

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green army

 

Resumo: Esta foi a primeira travessia de grande número de migrantes realizada em parceria entre o Mundo Novo (NW) e o Exército Verde (EV), com a primeira entidade fornecendo a equipa de logística e a segunda fornecendo a equipa de segurança. A partida ocorreu no dia 30 de Setembro, saindo de La Ceiba, município devastado pelas tempestades marítimas e seca extrema. Houve um reajuste na equipa armada após 30 dias da travessia, coincidindo com a chegada a Nayarit, no México, após o segundo grande pico de violência. A caravana foi dividida em três agrupamentos, que chegaram a velocidades diferentes ao destino final. A primeira parte da caravana, composta principalmente por adultos e jovens adultos em viagem individual ou em casais fez o percurso em 41 dias, chegando a San Bernardino a 11 de Outubro. A segunda parte da caravana, composta por famílias terminou aos 60 dias, chegando a 30 de Novembro. A terceira parte apenas concluiu a viagem após 93 dias, sendo composta principalmente por idosos, crianças e adolescentes sozinhos. Chegou a 2 de Janeiro. 

As enormes dificuldades sentidas na conclusão da travessia prenderam-se, por ordem decrescente com:

  • Ataques e raptos por elementos externos à travessia (62%)
  • Assentamentos oferecidos por comunidades de passagem (15%)
  • Intempéries e deslizamentos de terras (7%)
  • Ruptura de stock de produtos alimentares (3%)
  • Dificuldade de instalação e levantamento dos acampamentos (3%)
  • Surtos de doenças (2%)
  • Violência interna entre grupos na travessia (1%)
  • Outros (7%)

 

Perdeu-se grande número de elementos diretamente em ataques sofridos nos primeiros 500 quilómetros da caravana, levados a cabo por milícias locais e alianças criminosas nas Honduras e Guatemala. A coluna saída de Tegucigalpa sofreu os ataques mais violentos antes de se encontrar com a coluna vinda de La Ceiba, onde vinham dois batalhões do EV. A coluna de Tegucigalpa, organizada de forma espontânea e com elementos de várias nacionalidades foi acossada dentro da cidade e atacada assim que saiu da mesma, tendo como proteção apenas dois pelotões do EV. Mais de 20 mil elementos desapareceram, com número de mortes impossível de estimar. Após a junção das colunas os ataques continuaram, mas com menor impacto, perdendo-se mais 4 mil pessoas até à saída da Guatemala. O percurso dentro de Chiapas e Oaxaca correu de forma exemplar, com um razoável número de refugiados assentando nessas terras com o convite das entidades locais, acordos de abastecimento cumpridos integralmente e com muita flexibilidade por parte das autoridades locais. Durante os três mil quilómetros entre Córdoba (Veracruz) e Tijuana (Baja Califórnia) a caravana foi frequentemente acossada por raptores e ladrões, num esforço constante por parte dos cartéis e máfias em destruir a ideia de grandes migrações organizadas. Mais de 8 mil pessoas, especialmente jovens mulheres e raparigas foram raptadas em diferentes partes do percurso, em particular durante os primeiros mil quilómetros, tendo o reforço do EV em Tepic surtido muito efeito a nível da proteção dos acampamentos e o lançamento da tecnologia de proteção por drones. Foi também em Tepic que foi feita a decisão de dividir a caravana em três partes, aumentando a capacidade de defesa dos grupos e ajustando-se a segurança na mobilidade. A travessia do triângulo Sinaloa, Durango e Chihuahua implicou negociação direta com os cartéis, sob ameaça de intervenção por parte do EV e da Descarbonária, reduzindo-se drasticamente o número de pessoas raptadas. A travessia do Deserto de Pinacate correu de forma bastante eficaz. Os deslizamentos de terra à entrada de Baja Califórnia traduziram-se no desaparecimento de pelo menos 1500 pessoas. Dentro do território californiano, os números de EV necessários reduziram-se drasticamente, sendo substituídos pela recém-criadas Guarda Californiana, que os conduziu ao destino final, San Bernardino.

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A minha mãe tinha guiado uma daquelas colunas que eram a sequência natural das caravanas que quase desde o início do século subiam da Nicarágua, El Salvador e Honduras rumo aos Estados Unidos à procura de fugir das sucessivas catástrofes que devastavam a língua de terra entre o mar das Caraíbas e o Oceano Pacífico. Em particular os agricultores da região viam ano após ano as suas colheitas serem devastadas por secas seguidas de cheias e deslizamentos de terras, os seus litorais serem devastados por tempestades e furacões sem precedentes. A Via Sacra dos refugiados já assumia mesmo um caráter religioso, uma espécie de fuga dos judeus pelo deserto à procura de paz e de um sítio onde viver depois das suas casas de sempre serem destruídas pelo caos climático. As máfias faziam destas migrações desorganizadas um grande negócio, extorquindo e cobrando aos refugiados aquilo que tinham e não tinham, vendendo travessias em troca de mulheres, filhas e filhos para os seus bordéis, para as suas tropas, para as suas minas e plataformas petrolíferas, para mandar para outros lugares do mundo. A introdução do Exército Verde e do Novo Mundo, que se consolidou mais tarde na Rota do Futuro, foi um enorme rombo para as máfias e tornou as perigosíssimas migrações em algo um pouco mais gerível. As lições aprendidas em travessias como esta foram essenciais para evitar os mesmos erros e para reduzir drasticamente as perdas de pessoas. Os outros episódios descritos no relatório, incluindo dois assinados pela minha mãe, mostraram como ela tinha conseguido ultrapassar a barbárie das máfias, mas não percebi exatamente a que custo pessoal.

O Luiz acompanhou-me até Denver antes de eu seguir a minha viagem de trabalho até Los Angeles, a minha primeira paragem fora dos Estados Unidos. Quando se despediu, foi novamente misterioso, mantendo a sua aura de espião, que acho que gostava de manter. Antes de eu descer na estação de comboio de Denver, sentou-se ao meu lado.

- Sabes que não entrei para o movimento ecomunista, apesar de ter sido convidado. 

- Já me tinhas dito. Mas porquê?

- Achava pouco disciplinado em comparação com a Descarbonária. E nunca compreendi como a tua mãe não estava no topo da hierarquia. Acho que era mesmo um preconceito em relação aos guerrilheiros, às pessoas de ação. E havia poucas como ela, pessoas que arriscaram tudo sempre, pessoas com um coração de leão.

- Mas foi o movimento que permitiu que ela fizesse tudo o que fez. Eu acho que ela acreditava nisso. 

- Sim, ela acreditava no movimento. Mas não sei se o movimento acreditou nela até ao fim. Ela destruiu impérios de mafiosos, de petroleiros, era muito odiada por quem soubesse quem era e o que tinha feito. Ela tinha de se proteger melhor.

- Pelo que estou a descobrir, ela nunca esteve muito preocupado em proteger-se.

- Mas o movimento tinha o dever de protegê-la melhor. Bem, não vale a pena agora lamentar-me mais sobre a sua morte. - Lágrimas rolaram dos seus olhos. - Alex, foi um verdadeiro prazer conhecer-te. Não sei se sabes isso, mas és muito muito parecido com a Maria, com a Marta.

- O meu avô também me dizia isso.

- Protege-te. Fica com o meu contacto mas não o partilhes com os teus “camaradas”. Não ando à procura de novas aventuras. - Aproximou-se de mim e deu-me um forte abraço. - Cuida-te, meu querido.

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