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'42/11- O último cargueiro de Antuérpia

Pensei na minha mãe e no meu pai, de como teriam sido as suas discussões antes da partida dela. Mas eu não estava a ir para o desconhecido como a minha mãe tinha ido, sabia como, para onde, não ia sem rede de segurança, arriscar tudo. E pela primeira vez acho que admirei verdadeiramente a coragem da minha mãe.

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1 Fevereiro 2024

Josephine levou-nos a jantar com Arwani Java, do Tratado Mundial do Clima. Sentados numa cantina com pouca gente frente ao lago Marie-Louise, olhávamos o lago enquanto pequenos flocos de neve caíam.

- Os serviços do clima avisaram que vai nevar durante pelo menos três dias. O que é maravilhoso, porque não neva aqui há quase uma década. Mas também pode deixar tudo parado. É possível que nem trams, nem autocarros, nem bicicletas possam mover-se. - Disse Java. Era um homem indonésio baixo e gordinho, muito sorridente, que não aparentava ser mais velho do que eu. 

Partilhámos uma gibeta entre os quatro, de onde tirávamos com as nossas panquecas de sorgo pequenos montinhos de grão, lentilhas e diferentes patés e molhos. Esta maneira de comer, de origem etíope, tornou-se muito comum nos últimos anos no centro da Europa porque uma grande migração da zona terminou espalhada aqui, mas principalmente pela poupança de água e pela proximidade da própria refeição, partilhada entre até 10 pessoas (dependendo do tamanho da gibeta). Apesar de conhecer algumas pessoas que a usavam em Portugal, aqui tornara-se das principais maneiras de comer, variando os cereais utilizados para fazer as panquecas e as comidas que se partilham dentro do prato.

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- Contava levar-vos amanhã a algumas das Escolas da Ruptura e à sede do Tratado, mas pode não ser possível por causa da neve. - disse-nos Josephine, desapontada. - Mas assim também aproveitam para descansar e passear na neve. Já tinham visto antes?

- Não. - respondi. Lia acenou negativamente com a cabeça, enquanto bebia água.

- Ouvi dizer que antes nevava quase todos os anos aqui, mas desde que cá estou raramente vi. Só a Sul, na zona das Ardenas é que houve qualquer coisa nos últimos anos. Josephine, tens um trenó para crianças que lhes possas emprestar para se divertirem um pouco? - Propôs Arwani.

- Eu pus a mão na neve há pouco e não sei se vou querer repetir. - disse Lia. 

- Vão ver como tudo fica bonito. Especialmente em Boitsfort. Mas é preciso usar o equipamento adequado. - respondeu Josephine.

Durante a refeição falámos novamente acerca do Mundo Novo, da divisão nas componentes académica, laboral, migratória e política - que se transformaram na Universidade Mundial, as Escolas da Ruptura e as Academias da Reparação, as Organizações do Trabalho, a MIGRATUR e os movimentos ecomunistas e ecossocialistas. Ainda eram coordenadas pelas famosas “Asas de Borboleta”, de que Josephine nos assumiu já ter sido membro. 

Arwani falou-nos sobre o Tratado Mundial do Clima. O impulso inicial tinha sido dado pelas ilhas do Pacífico, China, Japão, os países da América do Sul, de África e do Sul da Europa, e foi a nova instituição que se ergueu das cinzas das Nações Unidas. A base desta organização tinha sido o Tratado de Não-Proliferação Fóssil, mas com as ondas de calor letais do ano 1.8 transformou-se em algo muito maior. Tinha sido inicialmente pensado para tratar só das emissões e da crise climática, o Tratado acabou por estender-se em várias direcções e dimensões com o aprofundar das crises ambientais e políticas e perante os vários vazios que apareciam. O massacre de Gaza tinha criado uma ruptura permanente na estrutura das Nações Unidas. Os países mais ricos do Ocidente tinham abandonado qualquer pretensão de respeito pela ordem internacional para apoiar o massacre dos palestinianos pelos israelitas e durante algum tempo houve uma co-existência tensa. Essa co-existência terminou com o colapso das negociações climáticas.

O mandato do Tratado Mundial do Clima era cortar as emissões de gases em 50% até 2030 em relação aos níveis de 2030. Ao contrário da COP, do Acordo de Paris e das Nações Unidas, o Tratado era obrigatório e vinculativo, os cortes de emissões não eram opcionais ou negociáveis além dos limites da ciência climática. Foram criadas ferramentas financeiras e acordos comerciais entre os vários membros para executar essa transformação: foi criado um banco de emissões e um banco internacional de investimento. Durante vários anos o Tratado esteve em funcionamento ao mesmo tempo que as Nações Unidas e numa situação política, climática e económica caótica. Vários países saíram e voltaram a entrar, a própria sede do Tratado, em Bogotá, foi palco de ataques durante o golpe de estado derrotado, ainda antes do Ano do Leão.

Entretanto foi criado o Sistema Mundial de Comércio Justo, integrando a informação sobre os recursos destinados à produção de bens e serviços essenciais e calculando a distribuição equitativa de recursos pelos povos e territórios do globo. Mais do que um conflito armado aconteceu por causa da adesão ou não ao Tratado - nos Estados Unidos, na Irlanda, na África do Sul. Com o fim das Nações Unidas, algumas das suas instituições foram integradas no Tratado. Mas mesmo depois da poeira parecer assentar nos últimos anos, depois da criação do Banco Mundial do Clima e da sua moeda, o Carbo, as sedes europeias do Tratado foram alvo, como outras instituições, dos violentos ataques da Muralha. 

Explicou-nos que considerava que as principais ferramentas do Tratado ainda eram as políticas climáticas criadas em articulação com a Universidade Mundial e com a integração da Comissão Mundial de Calor, a luta contra a máfia e, claro, a desmercantiliização da economia, muito influenciada pelos descrescimentistas. Segundo ele, o facto do trabalho não ser mais remunerado maioritariamente em moeda, mas coexistindo com os serviços universais de habitação, saúde, transportes, energia, alimentação e reparações tinha dado uma enorme estabilidade à vida em sociedade e permitido reduzir drasticamente as horas de trabalho da população. As moedas locais e regionais ainda em circulação eram de importância diminuta e não influenciavam muito a vida do dia-a-dia.

O Carbo era mais importante, mas principalmente usado para o comércio internacional e, apesar dos esforços para mantê-lo neutro, ainda tinha muitos problemas das moedas antigas. O que tardava em ser resolvido era a máfia, que tinha atingido o seu apogeu durante os governos de extrema-direita. Nessa altura, o crime organizado tinha sido muito importante na desestabilização de algumas regiões, derrubando governos e roubando recursos e sendo a principal responsável pelo tráfico de pessoas em fuga, até ser instituída a Rota do Futuro. Mas mesmo depois, até hoje, continua a ser um problema e uma fonte permanente de chantagem e destruição após a Grande Mudança.

Após o jantar, Josephine levou-nos de volta à nossa “casa no campo”, onde passámos uma noite quente. Na manhã seguinte acordámos de frente para uma floresta branca com flocos de neve caindo e engrossando o manto brilhante, que nesta altura já cobria tudo. Josephine mandou-me uma mensagem, confirmando que as estradas estavam inacessíveis e que nos avisaria antes de nos visitar. Passámos um dia muito tranquilo naquela bonita casa, brincando com o António, lendo e fazendo sexo - há algum tempo que não tínhamos a privacidade para isso e a casa vazia e silenciosa era ocasião perfeita para o nosso afeto, pelo que fomos experimentando as várias divisões, excepto as com grandes janelas viradas para a rua. Esta foi uma das coisas que mais me espantou das casas na Bélgica, as grandes janelas tantas vezes sem cortina viradas para a rua, das quais nos mantivemos afastados enquanto namorávamos. 

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À tarde saímos, depois de nos equiparmos com tudo aquilo que a Josephine nos tinha levado a buscar no grande bazar - botas, calças com outras calças por dentro, camisolas e casacos grossos, luvas e gorros. Caminhámos pelas ruas de Boitsfort até a uma zona central onde um grande tram estava parado e coberto de neve. Havia ali várias pequenas bibliotecas, uma loja de vídeos, um cinema e um teatro. Mas por causa da neve, estava tudo fechado. Grande sinais avisavam: “Circulation paralysée en raison d'un phénomène météorologique”, algo como circulação parada por causa de fenómeno climático extremo. Os sinais deviam ser usados regularmente para outros eventos climáticos, pois estavam um pouco gastos nas bordas. Infelizmente também aqui o excesso de calor nos verões e as cheias já tinham levado a grandes paralisações e isolamentos. Pelas ruas, enfrentando a neve que às vezes caía em grande volume, crianças e adultos brincavam, atirando bolas de neve e construindo bonecos e montes. Algumas corriam de um lado para o outro, puxando trenós e chocando contras as bicicletas e as árvores que preenchiam o espaço. Com pouco vento, o principal barulho que se ouvia naquela tarde era o som da neve compactando debaixo dos nossos pés e as gargalhadas de crianças e adultos.

O António tentava comer pedaços de neve quando o aproximávamos dela, mas estava com tanta roupa que quase não se conseguia mexer, fazendo uma pequena birra. De volta a casa, ouvimos rádio enquanto preparávamos uma refeição de castanhas, batatas e um peixe que a Josephine nos tinha deixado, uma carpa vinda das aquaculturas que existem em várias zonas da cidade. Acionei o meu tradutor para perceber melhor a informação do rádio. Felizmente não era em “bruxelês”, a língua popular da cidade de Bruxelas, uma mistura de flamengo, alemão e francês, pelo que o tradutor desta vez funcionou.

As principais notícias do dia eram sobre o nevão, o maior desde 2030. Já tinham nevado 40 cm, impedindo a circulação da maior parte dos transportes, como já tínhamos percebido. Mas estava previsto continuar a nevar. O nevão era consequência direta de uma massa polar que descia da Antártida. Já tinha havido dois verões sem gelo no Pólo Norte, e este anos, apesar de não ter ficado sem gelo, o vórtex polar continuava a ter expansões anormais, empurrando correntes árticas por todo o Hemisfério Norte. A neve e as baixas temperaturas tinham descido até ao sul da França, levando a quedas de temperatura de mais de 30ºC numa semana. Seguiram-se os avisos da Comissão Bruxelense de Calor (que descobri que também cuidava do frio): não deixar janelas de casa aberta, não estar no exterior durante mais de duas horas e sem equipamento de frio, evitar deslocações longas que não sejam adiáveis, não andar nas superfícies dos lagos que estavam a congelar, confirmar o bom funcionamento das bombas de calor nas casas e edifícios.

As comunidades de cuidado tinham sido acionadas e tinham sido reforçadas as reservas deslocalizadas de comida. No rádio seguiu-se um programa de teatrocast, uma comédia sobre charlatões que inventavam soluções para o calor no verão antes da Grande Mudança. Pela janela vimos a floresta dos sonhos, branca, e como toda aquela neve iluminava a noite. Tanto que, mesmo sem vermos a lua, conseguíamos ver tudo lá fora.

Depois de mais um dia em que o mundo parecia estar congelado em pausa enquanto o observávamos pela janela, na manhã do terceiro dia, pouco após nos levantarmos, alguém bateu à porta. A neve caía pesada e quanto abri entraram grande pedaços entraram, acompanhando uma figura que só tinha os olhos de fora, tapado até cima de proteções e neve. 

- Ciao! - era o Gianni.

- Gianni, bem-vindo. Lia, é o Gianrocco! - Gritei para a Lia que estava no quarto.

Entrou e começou a tirar camadas de roupa.

- Spero che nei prossimi giorni inizi a riscaldarsi un po'. Ci sono meno 5 gradi.

- Tradutori. - Sorri-lhe.

- Scusa. - ligou o tradutor.

- Espero que a temperatura suba em breve. Está muito frio. E está a nevar muito, não sei que altura já tem a neve, mas em vários lugares do caminho chega-me à cintura.

- Sim, e isto não causa problemas com o calor e a energia? Fomos para a cozinha e Gianni tirou um termo de café, que soltou uma nuvem de calor e cheiro a café.

- Expresso! Tento nunca sair de casa sem. Lia entrou com António e Gianni beijou-os nas faces. - Querem?

- Sim. - respondeu Lia, sorrindo. 

- A energia funciona bem mesmo com este frio. Até mais frio. - serviu-nos café em pequenas chávenas enquanto eu aquecia panquecas do jantar com Josephine e Arwani - Transportes é que não. As bombas de calor aguentam muito bem, os painéis e as eólicas também. As pequenas barragens é que nem por isso, mas a água ainda não congelou, então não deve haver grandes problemas. O principal é manter o calor dentro, ter as casas bem isoladas. Isso e bombas de calor são a maneira de reduzir perigo e mortes tanto em ondas de calor como em ondas de frio. Os sistemas de gás eram muito mais perigosos e instáveis. Com a baixa de temperatura e os grandes circuitos, com a sabotagem, com as lutas comerciais por causa dos preços, além de destruírem a atmosfera, eram sistemas completamente idióticos. Mas davam muito dinheiro a muito pouca gente, e por isso é que estavam espalhados por todo o lado. Já não. Felizmente. Mas só à porrada, com muita violência, lá chegámos.

Gianni levantou-se e ficou alguns momentos a olhar pela janela. A neve caía com intensidade e já não se via nada que não estivesse coberto pelo manto branco, só se distinguiam formas pelas sombras. Bebeu o seu café e virou-se para nós.

- Tenho uma proposta a fazer-vos.

Aproximou-se da ilha de cozinha, onde um grande pão negro descongelava, rodeado por várias canecas com água e uma chaleira. Eu e Lia olhávamos para ele, que parecia hesitar. Fez uma cara séria, o mais sério que já tinha visto desde que o tinha conhecido.

- Eu quero que tu me escrevas um relato oficial de como as coisas estão no continente americano.

- Mas o que é que eu sei da situação lá?

- Quero vás lá. Que viajes pelo continente durante dois meses, que fales com responsáveis e faças entrevistas, que observes o que se passa e que me envies esta informação. É uma missão oficial de preparação para a Assembleia Constituinte Mundial. - Lia deu-me a mão e olhou para mim, apreensiva.

- E a Lia?

- O Ettore pode acompanhar a Lia e o António de volta a Lisboa.

Lá fora, a neve tinha parado de cair. Sentia-me surpreendido mas também apreensivo, até porque a Lia estava abalada.

- E como faço para viver e viajar lá? Eu não saí muitas vezes Portugal. Isto é muito repentino, Gianni.

- Nós resolvemos as questões de logística, viagens e custos. Vocês não têm de me responder já. 

- E não é possível ser mais tarde? Daqui a uns meses? - perguntei-lhe.

- Nós precisamos desta informação o mais brevemente possível. É possível apanhares um dos últimos cargueiros que sai de Antuérpia daqui a dez dias. Se não puderes, teremos de enviar outra pessoa. Pensei que te poderia interessar por causa do teu livro.

- E como ficam as coisas com as responsabilidades em Lisboa? - disse Lia, num tom ríspido.

- Seria simples falar com a Assembleia de Lisboa e também com a vossa Organização Central do Trabalho. Bem… - poisou a chávena e começou a fechar o seu termos. - De certeza que vocês têm muito que falar e eu quero aproveitar o facto de agora não estar a nevar para voltar para o centro.

- Obrigado. - Disse eu, acompanhando-o à porta. Lia ficou sentada a olhar lá para fora, enquanto António brincava com os seus cabelos. 

- Tens de por sal e tirar um pouco de neve daqui da entrada, senão não conseguem sair daqui. Ci vediamo presto.

Depois de me despedir de Gianni, voltei para a cozinha, onde Lia ainda estava na mesma posição. Quando me viu sorriu e abraçou-me. Ficámos ali vários minutos. Eu pensei dizer alguma coisa para quebrar o silêncio, mas não sabia o quê. Tentei por-me no seu lugar. Lembrei-me de como ia reagindo quanto mais nos envolvíamos no trabalho do livro, quanto mais nos afastávamos da nossa vida normal. Pensei como poderia sentir-se abandonada se eu aceitasse ir, como não quereria ficar sozinha com o António enquanto eu fazia algo que estava tão longe do normal para tanta gente. Também não queria abandonar o António. Senti-me defensivo, a pensar que ela é que me tinha empurrado para aquilo, que não tinha sido só ideia da minha cabeça, como ela dizia que eu tinha de conhecer a história dos meus. A história dos meus pais também era aquilo: despedidas e partidas, rupturas e lágrimas. Mas eu não ia sem saber quando voltava. Uns minutos depois, a Lia é que rompeu o silêncio.

- Não precisamos falar já. Vamos fazer bolas de neve no jardim. - Sorriu e lembrei-me também porque a amava tanto. Era profundamente sensata e corajosa. E surpreendente, mesmo em situações inesperadas.

Passámos o dia em casa, dando duas ou três saídas curtas à rua, escavando uma saída com a pá, enquanto menos crianças continuavam a desfrutar da abundante neve, que tinha fechado escolas e bibliotecas. Durante a tarde apanhei uma rádio que tocava várias obras de um dos maiores compositores atuais, o Ramin Djawadi, que ouvi durante várias horas. Ao jantar Lia levantou o assunto.

- Alex, eu acho que tens de ir. Vai-me custar muito, mas seria absurdo recusar uma oportunidade destas. - Senti um alívio, mas também não queria dar a entendê-lo. - Eu não te quero prender, e acho que consigo cuidar do António sozinha durante o tempo em que não estiveres. 

- Mas Lia, ninguém me tinha falado disto até agora. Isto começou com Madrid, fomos subindo e agora ele está a propor-me a maior viagem da minha vida, assim de surpresa.

- Vamos, Alex, não precisas fazer isto. Eu estou a ser sincera, sê-o também tu.

- Achas que os podíamos convencer a vocês virem também?

- Seria muito lindo, mas duvido. Senão ele já o teria proposto. 

- Vou-lhe dizer para vocês virem também.

- O que vais ter de me prometer é que falamos todos os dias. Vais passar por sítios muito perigosos.

- Prometo tentar sempre.

Essa noite fizemos amor, menos sôfrego e muito mais apaixonado. Lia era muito melhor do que eu, muito mais completa, permanente. Quando adormeceu fiquei ainda acordado muito tempo. Pensei na minha mãe e no meu pai, de como teriam sido as suas discussões antes da partida dela. E pensei em como a vida de pessoas como Fatima, Gianni ou Josephine deviam ter tido inúmeros episódios daqueles, e como provavelmente nem todos teriam tido a sorte de ter alguém companheiro como eu tinha a Lia. Mas eu não estava a ir para o desconhecido como a minha mãe tinha ido, sabia como, para onde, não ia para uma guerrilha qualquer, sem rede de segurança, arriscar tudo. E pela primeira vez acho que admirei verdadeiramente a coragem da minha mãe.

No início da tarde seguinte, Josephine visitou-nos na companhia de Arwani. A neve já tinha parado mas os transportes ainda não estavam restabelecidos. Ambos vinham com uns skis curtos nos pés, que mais pareciam umas sandálias de pôr por cima das botas, e com os seus bastões. Quando entraram na casa encheram a entrada de neve uma vez mais. Josephine vinha-nos visitar para trazer comida e também porque tinha sabido da proposta de Gianni. 

- Mas nós ainda não lhe respondemos! - insurgi-me.

- O Alex vai. - respondeu a Lia, colocando a sua mão sobre o meu ombro.

- Mas quero saber se a Lia e o António não podem vir também.

- Bem, eu não estou a organizar isso, mas acho extremamente difícil. A viagem de barco que vais fazer não é nada confortável. É o último cargueiro que sai do Porto de Antuérpia antes da navegação do Atlântico Norte fechar para o inverno. As condições marítimas já são complicadas para a navegação. E há os piratas, por isso mesmo vocês vão em comboio. - senti um ligeiro arrepio e, pela primeira vez, verdadeira hesitação - Além disso irás num espaço apertado, onde mais uma pessoa e um bebé não estarão bem. Também não sei qual será a tua missão lá, isso é entre ti e o Gianni, mas se em vez de uma pessoa forem três, tudo fica mais complicado.

- Eu quero falar sobre isso com o Gianni.

- Então fala com ele, não comigo. Eu posso ajudar com a questão do teu trabalho em Lisboa. E o Arwani pode ajudar-te com as assembleias da cidade e os teus deveres cívicos. E com o teu passaporte.

- O quê?

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- O passaporte. É um documento que serve para poderes entrar e sair de territórios que não estão no Tratado Mundial do Clima. O primeiro desses países será a Flandres, de onde parte o navio. O Gianni disse-me que era possível que fosses a outros países fora do Tratado também. - disse o pequeno Arwani, que tinha a faces muito avermelhadas.

- Quais? 

- Não sei. Mas precisas preparar-te para ires aos territórios onde as regras não são iguais aos países onde tens vivido. A Flandres será uma boa introdução. Olha, não me queres oferecer um chá, que eu estou congelada? - Josephine esfregava as mãos para aquecê-las. - A casa tem estado quentinha?

- Tem estado óptima - respondeu Lia, que segurou as mãos de Josephine nas suas.

- E têm brincado na neve?

Josephine e Arwani ficaram o resto da tarde connosco. Lia e eu pedimos mais informação sobre a Flandres e os outros países que não estão no Tratado. Josephine explicou-nos que há dois tipos de territórios que não estão no Tratado: os mais conservadores politicamente, que recusam receber as caravanas do futuro, alguns dos auto-suficientes em termos alimentares que conseguem dispensar o comércio internacional e aqueles que são dominados pela Máfia. São poucos territórios, não mais de 20. Os Estados Unidos estiveram para sair do Tratado quando foi necessário exportar excedentes alimentares durante a última fome regional na Europa e em África. O governo só foi salvo dos motins pelo partido Ecomunista.

Arwani explicou-nos a ascensão da máfia. Com a redução do comércio internacional, novas rotas de comércio negro tinham sido abertas por uma aliança entre as principais máfias do mundo: a máfia israelita, a albanesa, a sérvia, a Camorra, a Ndrangheta, a Cosa Nostra, a irmandade ariana, a D-Company, a Tríade, a Yakuza, os cartéis mexicanos, os Airlords, os Kulunas, os Americans, os Hard Livings e a Bratva russa. Acordos informais feitos com vários governos de extrema-direita puseram a máfia a tomar conta de operações de segurança que antes pertenciam a estados, principalmente protecção industrial e comercial. Mesmo em territórios em que não havia acordos com os governos, a máfia tomou conta de operações da indústria fóssil, como a produção e transporte de petróleo e gás.

Tinha sido a primeira grande transportadora de refugiados, deixando que milhões de pessoas morressem no percursos, que fossem vendidas como escravas e abusadas fisicamente durante longas viagens. Era também a máfia que geria os campos de concentração de migrantes às portas da Europa e na América Central. Mas se já era inviável antes do Setembro Vermelho, após as ondas de calor mortais, a máfia começou a ser varrida na enxurrada, mantendo-se como um empecilho que governa territórios como o Mezzogiorno, Malta ou Taiwan. Mas continua presente um pouco por todo o lado, lançando os seus mercados negros e ainda enganando milhões de pessoas que têm de fugir dos seus países ou de conflitos.

Josephine falou-nos da Flandres, um território independente há mais de uma década, que já tinha tido governos de extrema-direita mas que neste momento era mais moderado, embora ainda mantivesse alguns resquícios do capitalismo que desapareciam sob o Tratado: o trabalho não era organizado centralmente, havia a moeda, o florim flamengo, bastantes veículos elétricos individuais, muita indústria química e de plásticos (apesar da indústria de combustíveis fósseis estar reduzida a um mínimo) e uma agricultura privada. E, claro, havia polícia. Não tinha havido uma revolução na Flandres. 

- Enquanto a nossa polícia foi sido substituída, primeiro pelas guerrilhas revolucionárias depois pelas patrulhas cidadãs e o serviço civil, lá tudo se manteve igual ao que havia antes. E é isso mesmo que verás quando entrares no território. 

- Como foi aqui o processo transição para acabar com a polícia? - Perguntou Lia.

- Foi difícil. Por um lado, a seguir às revoluções o ódio às polícias transbordou. As esquadras e os quartéis eram frequentemente atacadas e os novos governos tiveram de acelerar todos os planos para não começarem conflitos mais sérios. Havia imensas tensões dentro do movimento. Propostas para criar uma polícia política, perguntas sobre como é que o movimento e a sociedade se iam defender a si mesmas sem um poder repressivo. E também a pergunta óbvia: o que fazer com milhares de polícias, muitos dos quais eram abertamente fascistas? O que fazer com os polícias especiais, com os serviços secretos, com as forças armadas da Muralha?

- E o que fizeram?

- A maioria foi integrada em outras profissões. Os antigos polícias de alguma confiança entraram para o Exército Verde, mas a maior parte foi para profissões como guardas florestais, guardas marinhos, condutores, proteção civil, trabalho social. Não faltavam coisas para fazer. Aliás, o que havia era falta de gente. Os responsáveis por atrocidades e organização de repressão foram condenados, claro. Talvez venhas a conhecer alguns, Alex.

- Onde? 

- No cargueiro. Nos navios há muitos antigos elementos da Muralha que receberam como missão de reconciliação fazer tarefas de navegação e prospeção de territórios degradados. 

- E quem desempenha agora as tarefas de segurança da polícia? Em Lisboa ainda vejo de vez em quando membros do Exército Verde em patrulhas. - Perguntei-lhe.

- Nós hoje precisamos de uma força para travar violência, para curar sociedades que foram viciadas em violência, banhadas no culto da força e da brutalidade durante milénios. Para curar as feridas da Grande Mudança, que também as há. A força a que nós chamávamos polícia já não existe para defender a propriedade, ordenar trânsito, despejar ou controlar pequenos roubos. A sociedade criou ela própria maneiras de censura social para lidar com isso. Há uns anos, logo após a revolução, tínhamos patrulhas noturnas feitas por mulheres, algumas das quais eram voluntárias e outras mais profissionalizadas. Em zonas onde havia mais problemas, em situações graves enviávamos revolucionários armados, mas isso era uma raro e hoje os crimes violentos são tratados pelos corpo de investigação. Entretanto era preciso capacidade de resolver pequenas disputas sem criar armas de violência e pequenos poderes numa nova polícia ou o que quer que fosse o seu nome. Ainda não estamos lá. O que temos atualmente são patrulhas, o serviço civil e social e corpos de investigação que têm como única missão a segurança de pessoas, não de bens. Os bens são demasiado perenes para merecerem um corpo de proteção. O que temos é de proteger a sociedade. Lia, sabes de onde vem a palavra polícia?

- Poli, política, múltiplo? Polis?

- Sim, polis, cidade. Guardiães da cidade. Para termos menos guardiães também temos de ter cidades mais pequenas, mais geríveis. E precisamos menos de proteger a polis do que proteger “civis", as pessoas, cidadãs. Temos um serviço civil que desempenha funções de proteção e cuidado, mas que é uma função como qualquer outra dentro do algoritmo do trabalho, com forte rotação. Mas pessoas geralmente não gostam, excepto dos corpos de investigação, mas mesmo esses são rodados frequentemente - estás um ano no serviço civil e depois vais fazer outra coisa. O facto de haver menos burocracia também melhora o trabalho. Sabes que os polícias passavam uma boa parte da sua vida a passar multas… 

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A conversa continuou até Josephine e Arwani partirem, pouco antes do sol se por. Nos dias seguintes descansámos em casa. Depois de uma forte chuvada a neve desapareceu toda e pudemos passear pela cidade. Pouco tempo depois a temperatura estava nos 20ºC. Encontrámos Gianni e Ettore, que nos confirmaram que a Lia e o António não poderiam ir. Gianni entregou-me um mapa previsto para a minha viagem e felicitou-me pela decisão. Visitámos mais tarde a sede europeia do Tratado Mundial do Clima, no antigo edifício da Comissão Europeia, onde recebi o meu passaporte e Arwani ainda arranjou outros dois para a Lia e o António. Visitámos ainda outras instituições em Bruxelas, mas a minha cabeça já estava na viagem. Revi as minhas notas da entrevista com Olivia e pedi livros à Josephine, que me passou alguns acerca dos Estados Unidos, do México, de Cuba e do Brasil, por onde eu poderia passar. Tratámos de arranjar mais roupas variadas para mim. Gianni arranjou-me aparelhos tradutores de pescoço e orelha, deu-me um novo gravador e um pequeno computador para nos comunicarmos. Pedi-lhe mais informação acerca da minha mãe.

- Não te posso ajudar. Não tenho muito mais informação porque a tua mãe, como muitos membros da Descarbonária, teve os seus ficheiros de informação apagados para proteção da Muralha e da máfia. 

Numa manhã chuvosa partimos para Norte e fomos até à fronteira com a Flandres, onde tivemos de atravessar um posto onde várias pessoas fardadas confirmaram todos os nossos documentos, fizeram várias chamadas e revistaram as nossas malas antes de nos deixarem entrar. A viagem de carro foi muito curta. Ao contrário de todo os outros sítios onde eu tinha estado até então, havia várias estradas na Flandres a funcionar, com carros elétricos com um ar muito luxuoso a passar. Não vi carris em cima de nenhumas das autoestradas. Em menos de uma hora chegámos a Antuérpia e fomos diretamente ao cais, junto ao rio Scheldt, que liga ao Mar do Norte. Despedi-me de toda a gente na doca. Abracei Lia e António com força, e deixei cair umas lágrimas. - Vai ser incrível. Amo-te muito. - disse-me ao ouvido. Subi as escadas até estar a bordo do “Hopp Winnen”. Fui cumprimentado pelo comandante, chamando Hans Groen. Disse-me ser um grande admirador do comandante Fratin e que me explicaria o funcionamento da vida a bordo ao almoço.

Enquanto a escada era recolhida acenei para quem deixava para trás: Gianni, Josephine e as minhas queridas Lia e António. O Hopp Winnen começou a afastar-se de terra. Quando já não conseguia distinguir as pessoas, peguei nas minhas coisas para me instalar. Do meio dos livros que Josephine me tinha dado caiu um dossier. Era um relatório de uma viagem de refugiados desde as Honduras até à Califórnia, assinado por várias pessoas. Sublinhado a vermelho estava o nome Maria García.

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