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'42/1 - Fatima

Não sabemos se as coisas vão piorar. No ano passado a temperatura voltou a aumentar, depois de quatro anos em queda, mas não voltou ao calor mortal do passado recente. Conseguiu-se cortar as emissões que era suposto até 2030 e continuam a descer desde então, mas ainda é demasiado cedo para perceber se fomos a tempo. 

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2 Novembro 2023

De: alexaguas@voo.com

Para: fidrissi@nhope.ma

Data: 23 de mai. de 2042, 06:20

Assunto: Re: Os meus sentimentos pelo teu pai
 

Salam, Fatima.

Como estás? Há algum tempo que não falamos. A última vez foi quando o meu pai morreu, batemos aquele papo Zoom, lembras-te? Espero que estejas melhor das dores, fiquei preocupado contigo. Vocês todos andam bué doentes para a vossa idade. Espero que te estejas a cuidar e que a família também esteja bem.

Tenho grandes news. Tivemos bebé, um menino a que chamei António, como o pai. Estou muito feliz e só tenho pena que nem o meu pai nem a minha mãe estejam cá para verem, tenho a certeza que ficariam muito felizes e orgulhosos. Mando-te um filminho. É muito tranquilo e dorme super bem. Nasceu há 10 dias.

Conto-te porque te estou a chamar. A Lia sempre foi super curiosa sobre a minha mãe, o meu pai e as vossas ações e aventuras. Quando estava grávida vasculhamos as caixas da mãe e ela sugeriu que eu escrevesse sobre o que aconteceu nas últimas décadas, para contarmos ao menino quando ele for maior, e também para conhecer os avós. 

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Ilustração '42

Quando ela me falou nisso eu fiquei um pouco indeciso, porque pai não gostava nada daqueles tratamentos de “herói” que às vezes faziam, odiava cerimónias e só queria ficar em paz. E com a doença piorou. Eu não queria escrever, apesar de ela insistir. Mas quando vi o António pela primeira vez, algo mudou. É mesmo parecido com o meu pai, Fatima. 

Apesar de ser bebé, fui procurar fotos dele em pequeno e encontrei numa drive velha com digitalizações. São mesmo iguais, o velho e o miúdo: nos olhos, na boca, no sorriso, mas o nariz é da Lia. Nas caixas da mãe encontrámos revistas, artigos, escritos por ti, pelo pai, pelo Sukumar, pela Stephanie, e fotos vossas.

Tens os contactos destas pessoas? Noutra drive também tinha vídeos, fotos, recortes, notícias e reportagens onde apareciam coisas da Última Geração, do Mundo Novo. Percebi que há ali muita coisa que eu não sei. Lembro-me de coisas, claro, mas falta muita informação que não está lá e também falta perceber a ordem pela qual as coisas aconteceram.

É por isso que te mando este mail. 

Decidi tentar juntar histórias do que aconteceu nos últimos 30 anos para contar ao miúdo. Estou a recolher notícias, infos em geral para explicar como acabámos por chegar aqui. Sei que muita coisa desapareceu com as big redes, mas ainda há de haver cenas, não? Olha, também quero saber melhor sobre o que aconteceu ao pai e à mãe, à malta que ia lá a casa... Umas vou vendo por aí até, outras deram ghost. Havia Pepe, que o pai defendia sempre na prisão, e que trazia sempre as melhores prendas para nós, lembras-te? Andavam sempre à procura dele. Acho que era da tua idade. 

Então, não te vou chatear mais sobre isto, mas se estiveres OK em ajudar-me e quiseres falar, marcamos uma call um destes dias à tarde. Que dizes?

Alex

 

Foi assim que esta história começou. O meu e-mail para a Fatima Idrissi, uma agricultora marroquina, de Marrakesh, que militou com os meus pais nos movimentos revolucionários dos anos 20 e 30 do século XXI, foi o primeiro de muitos contactos que fiz durante vários meses com pessoas de toda a parte. Entrevistei-os e recolhi material para tentar ajudar a contar a loucura que foram os últimos 25 anos. 

Perdoem-me pela confusão, mas estes anos foram mesmo uma loucura. Comecei por escrever esta história para o meu filho, mas descobri, ao longo do caminho, que o fazia muito para mim, e pela memória dos meus pais e de tanta gente que se empenhou em conseguir travar as Grandes Crises ou a Grande Mudança, como agora lhes chamamos agora. 

Não sabemos se as coisas vão piorar. No ano passado a temperatura voltou a aumentar, depois de quatro anos em queda, mas não voltou ao calor mortal do passado recente. Conseguiu-se cortar as emissões que era suposto até 2030 e continuam a descer desde então, mas ainda é demasiado cedo para perceber se fomos a tempo. 

Fui convencido por outras pessoas, incluindo a minha companheira Lia e amigas que trabalham na informação e diversão, a tornar esta história pública. Não sou especialista nisto, e muito do que vão ler são só as entrevistas que fiz e notícias que consegui recolher. Acho que talvez alguém possa pegar nisto e por tudo muito bem escrito e até, como me disse a Lia, fazer uma peça de teatro ou um cinema. Acho que era bom, para perceber o que aconteceu. Eu fiquei a perceber tudo melhor, fiquei muito impressionado, assustado e deslumbrado pela história louca do mundo nas últimas décadas e o papel que pessoas normais tiveram nela. 

Alexandre Águas

Lisboa, Janeiro de 2043


 

Sento-me na janela da minha casa em Lisboa. Moro em Santa Apolónia, encostado ao rio. O antigo Hotel da Estação, depois de se ter inundado tantas vezes, acabou por ser abandonado há mais de uma década. Agora, a poucos metros da minha casa, apanho o elevador que sobe até à Graça. As antigas docas e o cais dos cruzeiros, que há meia dúzia de anos ainda aparecia acima da água durante a maré baixa, agora está sempre submerso. Há vários anos que os cruzeiros já não atracam aqui.

Cumprimento a guarda-freios do elevador, lembrando-me do tempo em que fiz este trabalho, durante mais do que um ano. Era um trabalho tranquilo, embora fosse um pouco monótono andar a subir e a descer durante quatro horas por dia. O elevador passa por entre as árvores da rua do Vale de Santo António e consigo apanhar um pêssego com a mão - ainda está verde. Estamos na primavera e está quase na altura da apanha da fruta.

Esta encosta da cidade de Lisboa foi toda plantada com pessegueiros. Noutras partes da cidade há outros frutos, de acordo com os solos e o sol.

Há mais de uma década que o asfalto começou a ser arrancado, mas o nível de contaminação dos solos não permite ainda plantar comida nem frutos em várias zonas da cidade, depois de tantos anos debaixo de alcatrão. As ruas que tinham pedra em vez de asfalto são das que estão em melhor estado e por isso têm sido aquelas com mais produção. 

Vou à Biblioteca da Penha de França. Apesar de haver bibliotecas mais próximas de casa - e há mais de 300 bibliotecas em Lisboa - foi nesta que consegui marcar um estúdio para gravar a entrevista com a Fatima. 

Conheço a Fatima há muitos anos, de um período de talvez quase um ano que ela passou na casa dos meus pais. Ela vinha fugida da polícia política marroquina, segundo me lembro. Agora deve ter uns 50 anos. Era muito nova quando começou a militar em vários movimentos. Quero falar com ela para perceber o que aconteceu ali entre o fim dos anos 10 e o fim dos anos 20. Ela afastou-se das coisas mais tarde. 

- Olá Fatima. Salam!

- Alex, estás tão bonito. Que felicidade ver-te. Fiquei muito interessada no que me escreveste. Tenho todo o gosto em ajudar-te, tenho muito material aqui guardado que te pode interessar. Posso mandar-te fotos das coisas.

- Seria óptimo, sim, Fatima. Olha, eu vou gravar a chamada, ok?

- Sim, já não me preocupo com essas coisas há muito tempo.

- Desculpa, na verdade, isto já estava a gravar sozinho, começou automaticamente.

- Não tem problema, Alex. Conta-me então o que queres saber.

- Muito bem. Fatima El Idrissi, podes contar-nos quem és?

- risos) Agora sou uma agricultora urbana em Marrakesh, mas fui militante revolucionária durante muitos anos, criei e dirigi organizações políticas, participei ativamente na Revolução Marroquina e fui durante vários meses parte da assembleia constitucional ecosocial da República de Marrocos. Depois participei nas Caravanas do Futuro antes de me retirar da vida ativa, porque tenho estado doente. Pulmões e coração. O preço a pagar por tanta agitação.

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Ilustração '42

- Quando começaste a envolver-te com política?

- Comecei a ganhar consciência política nas primaveras árabes. Tinha 18 anos e participei nos protestos aqui em Marrocos. Olhávamos para o que se passava no Egipto - em que tiraram o Mubarak - para a Tunísia, para a Líbia… O mundo estava todo a mudar. Fiquei muito entusiasmada quando foi anunciado que íamos ter uma nova constituição… mas no fundo acabou por ser um truque. 

- Ou seja… 

- O rei manteve o seu poder intocado, e apesar de alguma maquilhagem, as coisas ficaram quase iguais. Depois as coisas começaram a explodir pela Europa, Estados Unidos, Brasil, Turquia. Mas no fim, com o que aconteceu no Egipto, na Líbia, na Síria, na Grécia e até mais tarde nos Estados Unidos e Brasil, foi muito frustrante. O mundo parecia avançar para melhor e em poucos anos tudo voltou para trás. 

- Ficaste surpreendida?

- Perdi a minha inocência política aí. Mas a vida continuou. Em 2016, a COP-22 foi aqui em Marrakesh. Foi um processo de aprendizagem e de envolvimento muito interessante para mim, para conhecer um novo mundo. Eu já estava interessada em alterações climáticas e quis participar.

- Participaste?

- Fui convidada por um amigo a participar em alguns eventos e ele explicou-me tudo: como o governo tinha inventado uma série de ONGs para fazerem de figurantes de sociedade civil, como as negociações não iam dar em nada, como nas mesmas salas se faziam os grandes negócios - agrícolas, energéticos, de transportes - pelas empresas que estavam a criar as alterações climáticas. Era incrível. O furor depois da assinatura do Acordo de Paris estava a desaparecer e, mesmo no meio da COP, Donald Trump foi eleito presidente dos Estados Unidos. Não se falava de mais nada na conferência, ele tinha prometido mesmo acabar com o Acordo de Paris. Mais uma desilusão para mim, mas pelo menos o meu amigo já me tinha avisado. 

- Foram muitas desilusões, como te mantiveste envolvida?

- Ia ligando e desligando. Nessa altura ainda não estava em nenhum grupo, fazia uns trabalhos avulsos como traduções, algum secretariado. Procurava não ficar em baixo, seguia a minha vida. Era amiga de várias pessoas que estavam envolvidas em lutas ambientais, sociais, as lutas dos professores. Marrocos tinha muitas convulsões… Mesmo antes da COP em Marrocos tínhamos tido protestos por todo o país porque a polícia tinha assassinado um vendedor de rua, as pessoas estavam descontentes de forma intermitente. Estavam desde as primaveras árabes. Antes, mesmo…

- Mas dizia-se nessa altura que o governo marroquino era muito avançado em termos de política climática… 

- O rei e os seus aliados eram donos das centrais a carvão e a gás, das centrais solares. Tinha sido construída em Ouarzazate a maior central solar do mundo de concentração solar, hectares e hectares de painéis no meio do deserto, não dava para ver a extensão toda do chão. Mas aquela energia não era para nós, todos os planos eram exportar, para a Europa, claro. E como não havia água para limpar a areia, era preciso estar sempre a tirar água de onde as comunidades precisavam dela. Além disso, o governo e o rei continuavam a explorar fósseis. Mesmo durante a cimeira, eles estavam a dar concessões para explorar petróleo e gás no mar, e gás de xisto em terra. Tudo o que pudesse dar dinheiro, eles faziam. Entretanto, uma grande parte da população não tinha sequer energia elétrica. Se desmantelassem a central solar de Ouarzazate e entregassem aqueles painéis solares todos nas aldeias e nos bairros, as coisas seriam profundamente diferentes, mas isso não servia os interesses da monarquia. Era principalmente propaganda política.

- E quando começaste a participar mais a sério?

- Em 2019, quando começaram as greves climáticas, a minha irmã mais nova pediu-me ajuda para falar com professores e organizar greves, e eu aceitei ajudá-la. Depois surgiu o Extinction Rebellion Maroc e eu fiquei curiosa. Participei em algumas ações, éramos muito reprimidas pela polícia, mas começámos a criar um grupo com alguma confiança, e a falar com outras organizações que não eram sobre alterações climáticas, mas também estavam preocupadas. Algumas pessoas que tinham estado envolvidas na fantochadas da COP-22 e que queriam mesmo fazer alguma coisa juntaram-se.

Com a Covid tudo foi abaixo. Com a morte de uma pessoa importante para o movimento, senti necessidade de assumir mais responsabilidade. Depois veio a crise pós-Covid, a crise da energia, os preços de tudo aumentaram, a invasão da Ucrânia pela Rússia e a subida da extrema-direita na Europa, o massacre na Palestina, parecia a concretização de uma premonição de que ia tudo por ali abaixo.

Começámos a falar com pessoas de vários outros países árabes e do Norte de África. A primeira coisa urgente a fazer era travar o acordo da União Europeia para enviar milhões de refugiados para a Líbia, mas não chegava. As ondas de calor estavam a fazer milhares de pessoas morrerem todos os anos aqui em Marrocos, mas nunca se dizia que morriam de calor ou por caso da crise climática, eram sempre “mortes adicionais”. 

E o descontentamento subia. Os preços da comida começaram a subir, às vezes não era possível sequer comprar cereais. Quando houve a grande maré morta, centenas de milhões de peixes deram à costa. As costas atlânticas da Europa, do Norte de África e dos Estados Unidos ficaram cobertas do prateado dos peixes mortos e do cheiro nauseabundo que deitavam. Foi devastador para as comunidades piscatórias, toda a gente sentiu a catástrofe. Nessa altura envolvi-me no Mundo Novo, foi a minha primeira grande experiência internacional. Pouco depois o governo decidiu vir atrás de nós. Vários companheiros foram presos. 

- E tu?

- Eu fui alertada a tempo e fugi para a Europa porque a minha mãe tinha nacionalidade francesa e por isso eu tinha passaporte.

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