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2023 não pode ter ecos de 1971

O pensamento crítico, a discussão e ação políticas são vistos como prejudiciais ao regular funcionamento e vida do ensino superior. Desde quando se tornou aceitável chamar a polícia para reprimir estudantes que se manifestam pacificamente?

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30 Novembro 2023

O ginásio académico estava “completamente cheio” naquele final de tarde. À porta havia um “cesto de papéis, para recolha de donativos destinados aos estudantes presos”. A afluência era imensa: quase 500 estudantes participavam na assembleia convocada pelo Movimento Estudantil para se analisar o sucesso das jornadas de luta e se exigir a demissão do reitor. Há anos que as universidades eram lugares de contestação.

Quando os trabalhos da assembleia iam começar, um grupo de agentes da PSP invadiu o pavilhão e obrigou os estudantes a dispersar com empurrões e ameaças de bastonadas, se não mesmo desferindo-lhes umas quantas. Tinham sido chamados pelo “Magnífico Reitor”. Há semanas que a mão dura do reitor se fazia sentir: os estudantes que não tivessem aulas não podiam entrar nas faculdades e os identificados como “fomentadores” eram impedidos de entrar por agentes da PSP. Fora das faculdades, nas suas cercanias, outros agentes “dispersavam e mandavam circular todas as pessoas”. Quem resistisse era levado para a esquadra.

Não aconteceu em Lisboa em 2023, mas a 17 de fevereiro de 1971, durante o Estado Novo de Marcello Caetano, na Universidade de Coimbra. O relato é de um agente da PIDE (na altura DGS) responsável por reprimir o movimento estudantil em Coimbra. Um dos estudantes identificados no relatório foi o meu pai, João Cabral Fernandes, na altura dirigente estudantil. Há uns meses, a curiosidade levou-me à Torre do Tombo para consultar o que a polícia secreta escreveu sobre ele. Senti um enorme orgulho ao percorrer as palavras do PIDE.

Ao ler as notícias sobre os acontecimentos nas faculdades em Lisboa nos últimos 15 dias, soaram-me ecos de 1971 em 2023. Relembrando os tempos da ditadura, os diretores da faculdade de Psicologia da UL e da FCSH-UN chamaram a polícia para reprimir estudantes que protestavam pacificamente contra as alterações climáticas. A polícia apareceu cinco vezes na Faculdade de Psicologia em apenas dois dias por causa de faixas e cartazes. No mesmo dia, já à noite, a direção da FCSH chamou a PSP para impedir que os estudantes passassem a noite nas suas instalações. Seis estudantes foram detidas.

“As estudantes acusaram a polícia de uso da violência e insultos durante as detenções: entorses de braços e pulsos, estrangulamento contra a parede, puxões de cabelo e pressão nos olhos de uma aluna”, escreveu Vera Ferreira na crónica dos Ladrões de Bicicletas desta semana. As ações repressivas não se ficaram por aqui: a 15 de novembro, três estudantes foram detidas na Faculdade de Psicologia por terem interrompido uma palestra. Foram arrastadas por agentes da unidade de intervenção rápida da PSP.

Houve ainda o caso dos estudantes que se manifestavam na FCSH, em que a direção decidiu encerrar mais cedo as instalações. Uma professora e vários alunos decidiram juntar-se-lhes por receio do que lhes poderia acontecer se ficassem sós.Não são casos isolados, é uma tendência autoritária que se vive nas universidades, com as direções a acharem que tudo podem fazer e ordenar. É uma das consequências da crescente fragilidade da cultura democrática nas universidades com a sua neoliberalização.

Neste contexto, o pensamento crítico, a discussão e ação políticas são vistos como prejudiciais ao regular funcionamento e vida do ensino superior. Os estudantes devem obedecer de mansinho e aceitar o que lhes dizem, limitar-se a aprender para depois serem trabalhadores qualificados que alimentam a máquina que depende de baixos salários e de precariedade. Uma máquina que todos os dias nos aproxima mais um pouco da catástrofe climática.

A História mostra-nos que os estudantes sempre estiveram na vanguarda do combate político. Seria bom prestar atenção ao que nos dizem e, sobretudo, não os deixar sozinhos. Desde quando se tornou aceitável chamar a polícia para reprimir estudantes que se manifestam pacificamente? 2023 não pode ter ecos de 1971. 

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