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Fotografia: Bruno Póvoa

Natália Bonavides: O PT tem de regressar ao “bom e velho trabalho de base” para cortar o bolsonarismo pela raiz

A recém reeleita deputada federal ressalva que a segunda volta das eleições presidenciais é um momento histórico que definirá os próximos anos no Brasil, mas avisa que o bolsonarismo não desaparecerá com uma eventual derrota. A esquerda brasileira não se pode contentar com ocupar espaços institucionais deixando de lado a disputa do dia a dia da classe trabalhadora.

Entrevista
27 Outubro 2022

Reeleita deputada federal no início deste mês, Natália Bonavides é um caso de popularidade. Em 2018, depois de dois anos como vereadora da cidade de Natal, foi eleita deputada federal do Partido dos Trabalhadores (PT) pelo Rio Grande do Norte com a segunda maior votação de sempre. Foi a única mulher eleita no estado nordestino. No passado dia 2 de outubro conquistou a reeleição com um número recorde de votos, mais de 150 mil. Mas toda essa popularidade também lhe valeu alguns ataques e ameaças de bolsonaristas.

Natália sabe que a sua presença é incómoda. Em dezembro de 2021 foi ameaçada de morte depois de apresentar um projeto de lei que visava trocar a expressão “marido e mulher” por algo mais neutro no texto da celebração civil de matrimónios. O ex-político e veterano apresentador de televisão Carlos Massa, mais conhecido por Ratinho e que atingiu notoriedade com os seus programas policias, sugeriu que Natália — autodesignada feminista e ativista pelos direitos humanos — fosse lavar e costurar a roupa do marido e ainda apelou a que a deputada fosse eliminada a tiro de metralhadora. 

Ser alvo de violência política não a espanta, já que representa as mulheres “nordestinas, feministas, de esquerda”, contou em entrevista ao Setenta e Quatro. “Também nos relembra porque estamos ali a lutar”, rematou. E, efetivamente, o combate político não lhe é alheio. Mestre em Direito Constitucional, foi advogada do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) e trabalhou com o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) e o Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR). 

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.

Denunciando o caráter conservador e elitista do sistema político brasileiro, sublinha que para garantir vitórias institucionais é fulcral “uma aliança com os movimentos populares e os setores organizados da classe trabalhadora”. Quando conseguiu, em outubro de 2021, que o seu projeto para suspender os despejos durante a pandemia se tornasse lei, não deixou de mencionar que essa promulgação era também produto da luta coletiva de centenas de movimentos sociais ligados à luta pela habitação.

A sua entrada na política representativa coincidiu com o golpe que destituiu a presidente Dilma Rousseff e a eleição que a tornou deputada federal foi a mesma em que Jair Bolsonaro se tornou chefe de Estado. Tendo passado os últimos quatro anos na oposição, Natália Bonavides lembra que enfrentou “uma série de ataques à classe trabalhadora que partiam de um governo autoritário e com características fascistas”. 

Para a recém reeleita deputada federal, uma derrota de Bolsonaro não representa a derrota do bolsonarismo. A política nordestina está bem ciente que o PT não se poderá contentar com a ocupação de espaços institucionais. Será preciso estar “no dia-a-dia da classe trabalhadora, para que esse bolsonarismo que se enraizou em alguns setores da população seja derrotado”.

As bases da sua ação política foram construídas no movimento estudantil. Como interpreta os sucessivos cortes orçamentais nas verbas para as universidades, iniciados com o presidente Michel Temer e aprofundados por Jair Bolsonaro? 

O movimento estudantil sempre teve uma atuação relevante aqui no Brasil. Desde o golpe militar de 1964 que esteve na luta contra a ditadura. Depois da redemocratização, a atuação do movimento estudantil na área da educação foi notável, lutando pela democratização do ensino público enquanto promotor da igualdade e da ascensão social. 

O grosso dessa democratização foi feito durante os governos do PT. Mesmo não tendo atingido os níveis com que sonhávamos, foi maior do que em qualquer outro período da história brasileira. Isso foi feito através da criação de novas universidades públicas, da ampliação do número de vagas, da criação de novos cursos e, principalmente, através da política de quotas, tanto sociais quanto raciais. 

Não foi por acaso que o ensino superior foi uma das áreas mais atingidas depois do golpe contra a presidenta Dilma, já a partir da presidência de Michel Temer em 2016, e de forma mais contundente ainda durante o governo Bolsonaro. É nítido que o governo Bolsonaro vê nas universidades públicas e nas instituições federais ambientes que, por serem democráticos e diversos, onde há pluralidade e participação política, devem ser tratados como inimigos políticos.

"Ao cortar nas bolsas de estudo, nas cantinas e residências universitárias, a chance de um estudante pobre permanecer no ensino superior baixa consideravelmente."

Os cortes orçamentais são só uma das faces do ataque que o governo Bolsonaro tem promovido contra a educação pública, mas não deixam de ser relevantes porque afetam profundamente o funcionamento das universidades e, sobretudo, a possibilidade de a classe trabalhadora permanecer estudando. 

Ao cortar na assistência estudantil, nas bolsas de estudo, nas cantinas e residências universitárias, a chance de um estudante pobre permanecer no ensino superior baixa consideravelmente. Enfrentar esses cortes é um grande desafio. Aqui no Brasil, cada parlamentar tem direito a escolher o destino de uma pequena quantia dos recursos públicos estaduais. No meu mandato, temos dado prioridade justamente à assistência estudantil, como uma forma de tentar reduzir os danos que o governo Bolsonaro tem causado.

Esse desinvestimento parece ser também ideológico e anti-intelectual, mais do que austeritário.

Desde o início do governo Bolsonaro que assistimos também a outros tipos de ataques ao ensino superior, numa tentativa de deslegitimar essas instituições perante a sociedade. Os ministros da educação de Bolsonaro sempre atacaram os professores. Chegaram a insultá-los, a eles e aos estudantes, chamando-os de vagabundos, dizendo que nas universidades não se produzia conhecimento, só se usavam drogas. 

Há uma política de ataques ideológicos que está ao serviço da política neoliberal dos cortes orçamentais. Quando você diz que uma instituição não serve para nada, fica mais fácil cortar os recursos que lhe estão destinados. Além disso, existe também uma política de perseguição ideológica. Conhecemos casos de professores que tiveram processos administrativos abertos contra si e chegou-se ao cúmulo de haver intervenção do governo em alguns institutos federais. 

Aqui no meu estado, por exemplo, o reitor do Instituto Federal do Rio Grande do Norte, que havia sido eleito, foi afastado e o ministro da educação nomeou um interventor bolsonarista para o cargo. Apenas com muita luta do movimento estudantil a decisão foi revertida. É um exemplo que ilustra bem como o governo Bolsonaro também tentou incidir através de perseguição ideológica. 

Foram muitas as formas de ataque: os cortes, as intervenções antidemocráticas e a constante deslegitimação mediática dessas instituições perante a sociedade. É fundamental que Lula da Silva seja eleito, para que possamos trazer de volta — e urgentemente — uma política que valorize a educação pública gratuita e de qualidade e que dê condições à classe trabalhadora para que ela possa permanecer estudando nessas instituições. Sabemos que isso é fundamental para mudar a vida das pessoas.

O ataque ao sistema educativo não se fica pelo ensino superior. A Natália também denunciou cortes nos orçamentos das creches e das escolas e o fim de programas de alimentação escolar. Como se justificam estes cortes no financiamento, que acabam por impactar os estados mais pobres?

O direito a ir à escola é fundamental na vida das crianças e dos adolescentes. Além do acesso à educação em si e da convivência com a diversidade, para muitas famílias que estão na miséria a escola pode representar o único momento do dia em que uma criança tem acesso a uma alimentação adequada. E também é um espaço de proteção. Sabemos que muitas das investigações de abuso sexual, ou de violência doméstica, contra crianças e adolescentes começam a partir de um professor que percebeu que alguma coisa estava mal. 

Curiosamente, todos esses aspectos estão sendo atacados pelo governo Bolsonaro. Um dos projetos que esse governo tentou passar na Câmara dos Deputados, sem sucesso, foi o da regulamentação do homeschooling, a educação domiciliar. Isso dispensaria a obrigatoriedade da frequência escolar, fazendo com que as crianças pudessem ser educadas somente em casa.

"A alimentação escolar sofreu os efeitos mais duros desses cortes. Recebemos relatos de casos em que um ovo é dividido por quatro crianças."

A alimentação escolar sofreu os efeitos mais duros desses cortes. Hoje, o recurso destinado para a alimentação de uma criança do ensino fundamental [equivalente ao ensino primário, em Portugal], numa escola pública, é de R$0,36 por dia [€0,07]. Não só está havendo um corte orçamental, como não há reajuste à inflação. Recebemos relatos de casos em que um ovo é dividido por quatro crianças ou de crianças terem a mão carimbada para assinalar quem já comeu, para não poder voltar a comer mesmo que ainda esteja com fome. São situações absurdamente graves. A nossa Constituição Federal diz que as crianças e os adolescentes devem ter tratamento prioritário em tudo, inclusive em matéria orçamentária. Não foi isso que aconteceu no governo Bolsonaro. 

Além de tudo isso, o Ministério da Educação (MEC) foi um dos ministérios em que mais escândalos de corrupção foram identificados durante o atual governo. Um ministro chegou a ser preso. Fui uma das parlamentares que denunciou o ex-ministro Milton Ribeiro por desvio de dinheiros públicos. Pastores próximos de Bolsonaro estariam negociando verbas públicas do MEC em troca de doações em dinheiro — e até em barras de ouro — para as suas igrejas. 

É insano a educação ter sido usada tão somente como moeda de troca para Bolsonaro conseguir agregar o apoio dos setores envolvidos nesse escândalo, e que o MEC, que era um ministério que muito nos orgulhava, tenha virado um balcão de negócios. Toda a política que estava sendo desenvolvida ou foi paralisada ou sofreu retrocessos.

Foi também advogada do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), um dos maiores movimentos sociais do mundo. Quando 33 milhões de brasileiros passam fome todos os dias ao mesmo tempo que o seu país é o maior exportador de alimentos do mundo, qual a importância do MST em tentar garantir a soberania alimentar da população?

Comecei a colaborar com o MST quando ainda era estudante e passei a ser advogada do movimento quando me formei em 2011. Ainda enquanto estudante ajudava com alguma orientação jurídica e dei cursos de educação popular em direitos humanos. 

O MST é um movimento que sempre foi criminalizado e estigmatizado, porque tem como principal pauta de ação a reforma agrária. Infelizmente, há setores do agronegócio brasileiro que seguem tendo na especulação imobiliária uma enorme fonte de rentabilidade. Então, os grandes grupos de média sempre trataram o movimento de forma desaprovadora. 

Isso também acontece por parte do poder judiciário, mas sabemos perfeitamente que não há poder judiciário neutro. A sua própria composição exibe uma marca de classe muito forte. A chance de um juiz conhecer um latifundiário é muito maior do que a chance de ele ter conhecido um sem-terra. 

Isso é visível em todo o Brasil, desde os processos de criminalização dos lutadores do movimento, até aos processos ilegais de despejo das ocupações que o movimento organiza Brasil afora. Foi a partir desses processos judiciais, inclusive, que a minha relação com o movimento se deu. Confiar na neutralidade dos tribunais, infelizmente, não é suficiente. É preciso que a luta política esteja sempre presente para garantir direitos legais. Principalmente quando falamos de movimentos sociais, de populações negras, de populações pobres de periferia. O poder judiciário é muito discriminatório e isso se reflete nas sentenças e nas decisões judiciais.

"A reforma agrária e a democratização do acesso à terra são lutas históricas no combate à pobreza, que se batem contra estruturas de poder vindas da época colonial."

Além disso, temos no Brasil uma das maiores áreas de terra arável do mundo, mas muitas dessas terras estão vazias. Somos o maior produtor de alimentos do mundo, mas também o campeão em terras que não estão sendo utilizadas para nada. São os latifúndios improdutivos: grandes áreas de muitos hectares de terra que poderiam estar sendo usadas para produzir alimento, mas que estão somente sendo guardadas para a especulação imobiliária. 

Diante disso, o MST teve um papel fundamental no que já houve de reforma agrária no Brasil. Na época dos governos do PT foi quando houve mais, mas, ainda assim, foi insuficiente para o que achamos necessário. Ainda existe muita terra que não cumpre a função social prevista na Constituição Federal. E aí o MST sempre teve um papel fundamental, através das ocupações de terras, ao mostrar ao poder público quais áreas não estariam cumprindo a sua função social ao permanecer improdutivas e que poderiam ser desapropriadas. 

No governo Bolsonaro, tudo isso foi absolutamente paralisado. Não houve desapropriação para reforma agrária no Brasil. Esperamos que essa luta seja retomada se Lula da Silva vier a ser eleito. A reforma agrária e a democratização do acesso à terra são lutas históricas no combate à pobreza, que se batem contra estruturas de poder vindas da época colonial. Antes do fim formal da escravidão no Brasil, foi feita uma lei de distribuição de terras que impediu as pessoas negras, depois de libertas, de se tornarem proprietárias de terras. Então, o combate à pobreza neste país passará sempre pelo reforço da luta por mais reforma agrária, que é algo que queremos que vá para a frente se Lula da Silva vencer essas eleições.

Está confiante que essa luta irá para frente? O governo Bolsonaro também se fortaleceu através de uma deriva neoliberal, fortalecendo por sua vez o agronegócio e o seu peso nas decisões políticas. Se Lula da Silva ganhar, como vai conciliar os variados e provavelmente opostos interesses da “frente ampla” que o apoiou na campanha eleitoral? 

Temos, como disse, uma frente ampla que apoia a candidatura de Lula da Silva. O próprio candidato a vice-presidente de Lula da Silva é Geraldo Alckmin, que tem uma história de afinidade com políticas neoliberais. Depois do primeiro turno, essa aliança se ampliou ainda mais e inclusive outros candidatos à presidência vieram declarar o seu apoio ao candidato Lula da Silva. 

Não tenho dúvidas que isso irá fazer com que um futuro governo de Lula tenha essa permanente disputa política entre as variadas visões que o irão compor. Isso tornará ainda mais importante a organização de movimentos sociais, de sindicatos, de organizações da sociedade civil para dar força às pautas que consideramos fundamentais para o Brasil retomar o desenvolvimento. 

Lula tem falado de algumas medidas que pretende adotar para enfrentar os problemas que temos no Brasil — a extrema pobreza, a fome e o desemprego — e cujo caráter é nitidamente antineoliberal. Falamos de retomar obras públicas para contribuir para a geração de emprego e fortalecer os bancos públicos, inclusive para que haja disponibilidade de crédito para os trabalhadores, pequenos comerciantes e pequenos empresários. Mas, também, da valorização real do salário mínimo, que aliás foi uma das coisas mais importantes que ele fez quando governou.

Todas essas medidas vão no sentido oposto ao neoliberalismo, porque sabemos o que esses quase quatro anos de política neoliberal fizeram com o Brasil. São essas políticas económicas que temos de fortalecer, ao invés das políticas do ministro da economia de Bolsonaro, Paulo Guedes, que fizeram aumentar as desigualdades, a miséria, a pobreza e a informalidade do emprego. Até trabalhos que não têm sequer um salário mínimo inteiro são contabilizados como empregos formais, graças à reforma trabalhista que foi feita ainda no governo de Michel Temer. 

Então, sem dúvida que haverá disputa. Há uma diversidade ideológica nessa frente ampla de apoio a Lula que se refletirá no seu governo. Ainda assim, existe uma linha fundamental que está sendo traçada e defendida abertamente por Lula, sobre aquilo que ele quer implementar. Os apoios estão chegando enquanto ele faz isso de maneira clara, então creio que será possível implementar todas as medidas propostas durante a campanha. 

Teremos alguns desafios, sim, e não será só em decisões de gestão. As decisões passam pelo Congresso Nacional e aí a dificuldade será maior ainda do que quando falamos apenas da composição do governo. 

O governo de Michel Temer fez uma emenda constitucional que congelou os gastos públicos por 20 anos. Isso significa que existe uma atualização pela inflação e que não é possível haver crescimento. Não é possível ampliar o investimento em educação, em segurança ou em saúde, uma das áreas que mais carências demonstrou desde o período da pandemia. 

Será necessário aprovar uma emenda constitucional que desfaça isso e esse será um dos maiores desafios do governo de Lula, porque o Congresso brasileiro tem um perfil conservador, pende para a direita. Isso não é uma novidade. Quando Lula governou já não tinha maioria no congresso, mas com o bolsonarismo a polarização ficou mais aguda. Será um grande desafio aprovar as medidas que achamos necessárias num Congresso que é conservador, que inclui vários apoiantes do atual governo e muitos defensores de uma política neoliberal.

"Fomos alvos constantes de violência política na forma de ameaças e ofensas. Sei que não é algo pessoal, mas contra a nossa presença na política: a de mulheres nordestinas, feministas, de esquerda. Somos um alvo prioritário."

Nestes últimos seis anos, sendo a Natália uma deputada assumidamente feminista e socialista e que trabalhou na proteção de vítimas de violência de género, como foi ser oposição num parlamento de maioria conservadora? 

Foi muito desafiador. Estávamos em minoria buscando enfrentar uma série de ataques à classe trabalhadora que partiam de um governo autoritário e com características fascistas. Sofremos ataques gravíssimos, como a própria reforma da Previdência [que fixou, pela primeira vez, uma idade mínima para os trabalhadores brasileiros se aposentarem], que aconteceu durante a gestão de Bolsonaro. 

O trabalho de contenção de danos foi quotidiano. Sofremos muitas derrotas nesse processo, mas também tivemos algumas vitórias, justamente quando eram assuntos que conseguiam mobilização popular. A garantia do auxílio emergencial durante a pandemia ou a lei de suspensão dos despejos são alguns exemplos de medidas que conseguimos aprovar. Outras não conseguimos evitar que passassem na Câmara, como as privatizações da Eletrobrás ou dos Correios — embora essa última não tenha, felizmente, passado no Senado. 

Também tivemos desafios extrainstitucionais. Fomos alvos constantes de violência política e violência de género, na forma de ataques, ameaças e ofensas. No meu caso, busquei acionar as instituições — a polícia e os tribunais — para lidar com isso, porque sei que não é algo pessoal. É contra a nossa presença na política. Quando eu digo “nossa”, é a de mulheres nordestinas, feministas, de esquerda. Somos um alvo prioritário da violência política de género. 

Isso afeta a nossa ação política, torna-a mais perigosa, mais arriscada, mas também nos relembra todos os dias porque estamos a lutar. Apesar de sofrermos este tipo de violência não baixamos a cabeça. Tudo o que for necessário fazer, ocupando esse espaço enquanto deputadas federais, nós vamos fazê-lo. 

O prefeito de Natal, a sua cidade, fez esta semana uma reunião onde ensinou empresários a assediar trabalhadores, de maneira a levá-los a votar em Bolsonaro. Esta tática não tem sido incomum nos últimos dois meses. Como tem sido estar em campanha e ver a oposição jogar sujo? 

Quem acompanhou as eleições presidenciais de 2018 já sabia que essa eleição seria muito dura. Já aí Bolsonaro usou métodos criminosos, principalmente com a disseminação de fake news. E Bolsonaro sempre incentivou a violência política, até muito antes de ser candidato a presidente. Sempre elogiou a ditadura militar e tem torturadores como ídolos. Na  campanha de 2018, dizia coisas como “vamos metralhar os petistas [militantes ou apoiantes do PT]” e coisas desse tipo. 

Já esperávamos uma campanha muito desafiadora. Sabíamos que seria violenta e que a rede de criação e propagação de fake news estaria muito mais aperfeiçoada. E agora eles têm a máquina estatal na mão e não hesitam em usá-la. Foi aprovada uma emenda constitucional, antes das eleições, que permitiu que o governo Bolsonaro despejasse dinheiro público durante o período eleitoral. 

Aqui, no Brasil, temos as chamadas “vedações” eleitorais durante o período da campanha eleitoral. Os candidatos não podem inaugurar obras, não podem lançar programas novos, não podem fazer certos tipos de pagamentos, há uma série de restrições para evitar que quem ocupa cargos no poder executivo use a própria estrutura do poder executivo para favorecer candidaturas. Bolsonaro conseguiu aprovar uma emenda constitucional que tirou todas essas vedações. 

Então, estamos agora enfrentando uma campanha que, além de ter violência política incentivada pelo próprio Bolsonaro e uma máquina de fake news extremamente sofisticada, tem permissão legal para despejar dinheiro público e lançar programas novos para granjear votos. Estamos enfrentando uma máquina poderosíssima em várias frentes.

"Quatro anos de políticas económicas neoliberais fizeram aumentar a fome, a miséria, as desigualdades e o trabalho informal."

Lula ter terminado em primeiro lugar, não só nessas condições de campanha, mas depois de tudo que aconteceu nesses últimos anos — o golpe contra a presidenta Dilma, a prisão de Lula e a interdição ilegal da sua candidatura — é algo extraordinário. 

Estamos em primeiro lugar nas sondagens, mas estes últimos dias são fulcrais. “A eleição só termina quando acaba”, como dizemos aqui. A campanha de Bolsonaro tem patrões assediando funcionários e médicos assediando pacientes para garantir votos. Empresas de transporte tiraram os seus autocarros de circulação para impedir que a população mais pobre, que mora nas periferias, fosse votar no primeiro turno. São práticas criminosas e de abuso de poder económico e político. Estamos muito cautelosos e a tentar agir institucionalmente enquanto fazemos a campanha nas ruas. Não queremos que a abstenção seja incentivada por esse tipo de práticas.

Está confiante na vitória de Lula da Silva? O trabalho não acabará com a derrota de Bolsonaro. Qual é o plano para derrotar o bolsonarismo? Que expectativas e que planos tem para o seu mandato? 

Estou muito esperançosa com o dia das eleições, mas não vai ser nada fácil. Estamos fazendo tudo o que nos é possível para manter a campanha na rua e para que ninguém deixe de fazer campanha porque tem medo. Temos de conversar com a população que está indecisa e garantir que há transportes para população pobre ir votar no dia 30. 

Como disse, existe uma diferença entre derrotar Bolsonaro e derrotar o bolsonarismo. Mesmo com um resultado positivo no domingo, isso não significa que o bolsonarismo e a extrema-direita neofascista serão derrotados. Assim como foram necessários anos até se chegar a esse ambiente político, não será do dia para a noite que será desfeito. 

Temos a intensa necessidade de que os partidos políticos que hoje fazem parte da aliança para a eleição de Lula da Silva estejam muito mais presentes na vida do povo brasileiro. Não se poderão limitar a uma atuação institucional e de ocupação de espaços públicos. Será preciso criar uma conexão mais forte com a população.

O bom e velho trabalho de base, que está nas cartilhas do Partido dos Trabalhadores desde o seu surgimento e que foi deixado em segundo plano porque havia tarefas institucionais enormes. Isso não podia ter acontecido. Nós temos que fazer [esse trabalho] ao mesmo tempo. Não é possível que nos contentemos em ocupar os espaços institucionais e deixemos de lado a disputa do dia a dia da sociedade, da política real. Não bastam políticas públicas. É preciso estar presente no quotidiano das comunidades, no dia a dia da classe trabalhadora, para que esse bolsonarismo que se enraizou em alguns setores da população seja derrotado. 

Que impactos crê que terão as governações de Fátima Bezerra, já reeleita governadora do Rio Grande do Norte, e de Lula da Silva, no seu estado?

Aqui no Rio Grande do Norte estamos muito esperançosos com o que aí vem. A nossa governadora, Fátima Bezerra, também do PT, foi reeleita no primeiro turno e isso é muito significativo. Foi a primeira governadora de origem popular aqui do Estado. É uma professora ligada à luta sindical e tem uma trajetória de vida enraizada nas lutas do povo. A sua reeleição no primeiro turno foi um reconhecimento muito importante do seu trabalho.

Se Lula vencer as eleições, teremos um alinhamento político que permitirá que o nosso Estado tenha melhores condições de desenvolvimento e mais investimento em saúde e educação. O nosso mandato vai seguir a pauta de defesa dos direitos da classe trabalhadora, como fizemos quando suspendemos os despejos durante a pandemia ou quando alocámos recursos para assistência estudantil. Cada denúncia que fizemos contra o atual governo, cada projeto de lei que apresentámos, tudo isso foi feito pela defesa dos direitos da classe trabalhadora. E procurámos fazer isso de maneira participativa.

"Empresas de transporte tiraram os seus autocarros de circulação para impedir que a população da periferia fosse votar no primeiro turno. A campanha de Bolsonaro foi marcada por abusos de poder"

É importante continuarmos com esta abordagem, em que um mandato é um instrumento de participação política, alinhado com os movimentos populares e com as pautas dos movimentos sociais brasileiros, reconhecendo os limites da institucionalidade. O Congresso, dentro do sistema capitalista, é um espaço burguês, a nossa legislação eleitoral favorece a elite e faz com que esta esteja sobrerrepresentada e a classe trabalhadora subrepresentada. 

Temos plena consciência que, para termos conquistas em espaços como esse, é necessária uma aliança com os movimentos populares e os setores organizados da classe trabalhadora. Essa tem que ser a perspectiva do novo mandato. Espero não ser mais uma deputada da oposição. Espero poder trabalhar para trazer mais investimentos aqui para o nosso estado e para o Nordeste, uma das regiões mais discriminadas por Bolsonaro em termos de recursos e políticas públicas. E nós estamos buscando construir um novo momento para o estado a partir do ano que vem e terminando. 

Os brasileiros são a maior comunidade imigrante em Portugal e votaram em massa no mês passado. Muita gente afirmou querer voltar para o Brasil caso Lula vença. Há algo que gostaria de dizer aos brasileiros em Portugal?

Tenham esperança. Estamos passando tempos muito duros aqui no Brasil, mas também sabemos que não existe nem vitória nem derrota definitiva. Como diria o nosso educador Paulo Freire: “o mundo não é, o mundo está sendo”. Então, se o mundo está sendo, ele pode ser alterado com a ação de mulheres e homens organizados. Estamos vivendo um momento histórico que definirá os próximos anos do nosso país e, principalmente, as condições de vida da classe trabalhadora. Lutamos com muita esperança. Sabemos que a luta do povo nunca foi fácil, mas temos a esperança de que voltaremos a dar dignidade aos trabalhadores. Aguentem firmes. E aos que quiserem retornar: estaremos aqui, de braços abertos.