Trabalhadores migrantes a verem um jogo do Mundial do Catar

Luís Cristóvão: “A grande conquista deste Mundial foi o tempo de antena dado aos direitos humanos”

O comentador desportivo crê que a FIFA perdeu muito do seu estatuto perante os adeptos e os governos ao perseguir o lucro acima de tudo e ao usar uma mão muito forte para silenciar as opções políticas dentro das quatro linhas.

Entrevista
22 Dezembro 2022

Os apelos de boicote ao Mundial no Catar parecem não ter surtido grande efeito. Foi o mais visto de sempre (cerca de metade da população mundial assistiu à final entre a Argentina e a França) e, futebolisticamente, foi um sucesso. Nunca houve tantos golos marcados como nesta edição da prova (172), ainda que a competição só tenha passado a disputar-se entre 32 equipas desde 1998. Vimos pela primeira vez uma seleção africana (Marrocos) disputar as meias-finais e assistimos à consagração final do argentino Lionel Messi.

Entretanto, os jogadores já voltaram aos clubes, alguns dos estádios no Catar vão ser desmantelados e os abusos laborais, a exploração do trabalho migrante, a opressão das mulheres e a repressão das pessoas LGBTQ+ no país árabe rico em petróleo deixarão de ser tema de conversa no café ou nota de condenação nos últimos minutos dos descontos de um qualquer Japão versus Costa Rica. Para lá do futebol, debate-se qual será, afinal, o legado deste mundial.

Para Luís Cristóvão, comentador desportivo na rádio e na televisão, cronista nos jornais e na Internet, que se dedica a analisar o desporto-rei, “foi preciso que existissem esse tipo de protestos, mesmo que saibam a pouco”. “Estivemos imenso tempo a falar sobre coisas de que não falaríamos se esses pequenos protestos não acontecessem” e essa atenção, crê o comentador, terá efeitos duradouros nas discussões sobre a ética e a política dentro do futebol. “Vai obrigar-nos a discutir sobre o porquê de a Supertaça espanhola ir jogar-se à Arábia Saudita, por exemplo.”

Em conversa com o Setenta e Quatro, Cristóvão falou também sobre a presença suspeita de Emmanuel Macron no balneário da seleção francesa, do mediatismo sebastiânico de Cristiano Ronaldo e do potencial do futebol feminino e de bairro. Para o comentador, o desporto mais visto do mundo, que transaciona jogadores avaliados em centenas de milhares de euros, ainda pode ser “um espaço de oportunidade para afirmações pessoais, ideológicas, políticas, culturais e sociais”.

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Disse recentemente que a FIFA saiu derrotada deste mundial no Catar. Porquê?

Este Mundial do Catar acabou por trazer mais carga negativa para a FIFA e isso é uma derrota. A análise de Gianni Infantino [presidente da FIFA] tem-se focado quase exclusivamente na questão financeira. E esse discurso, ao nível das instituições do futebol, tem ganho muito peso. Tem  que ver com a forma como quem está no comando dessas instituições encara aqueles que são os seus clientes ou interlocutores. O mesmo se aplica à UEFA, à CONMEBOL ou à Liga Portuguesa.

Este discurso esteve sempre muito ligado à conquista de poder junto das federações, ou seja, em quem vota na reeleição do presidente da FIFA. A FIFA conseguiu durante muito tempo ter um discurso mais próximo daquilo que os adeptos sentem. Agora já não é assim. Neste Mundial do Catar isso ficou muito visível na forma como Gianni Infantino interveio. Se houve um ganho financeiro, também houve perda de credibilidade, e não só junto dos adeptos. Também se notou essa perda de credibilidade junto de algumas federações e, sobretudo, de alguns governos. Isso levará a que a FIFA seja mais questionada nas suas ações. Na sua ânsia de perseguir o lucro, acaba por se pôr em processo de autodestruição e perda de estatuto…

Também disse que, além da Argentina, o próprio futebol saiu vencedor. 

Senti que este Mundial foi bastante rico em termos de jogo. Pôs em causa parte daquela que é a teoria da análise vigente no futebol. Foi uma competição em que o peso dos treinadores diminuiu. Olhando para a evolução do jogo, aquela que se vê no futebol de clubes, há um peso cada vez maior do treinador. E esse peso da organização e do treino do processo de jogo vai retirando um espaço para o talento se evidenciar. Neste Mundial foi ao contrário. 

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luis cirstovao
Luís Cristóvão é analista de futebol e comentador na Antena 1, na Eleven Sports e na SIC Notícias.

De alguma maneira, pode entender-se como um retrocesso, mas eu entendo-o como riqueza do jogo. É o próprio jogo a revoltar-se contra as suas tendências de evolução. Isso teve que ver com o facto de não ter havido tempo para trabalhar as equipas a meio da temporada, por os jogadores estarem num momento de forma melhor, e não terem de se escudar tanto na organização coletiva e trabalharem mais os seus talentos individuais. Isso trouxe maior equilíbrio e maior imprevisibilidade aos jogos. 

Houve muitos jogos a chegar ao intervalo com zero-zero. A própria final teve 80 minutos de domínio de uma das equipas. Mas o futebol é isso: estar à espera que algo aconteça. O que acontece a seguir, nos últimos dez minutos e no prolongamento da final, faz-nos sair do jogo com aquela sensação de que se viu uma grande partida, quando, na maior parte do tempo, não foi o caso. 

No basquetebol estamos 40 minutos a viver sempre grandes acontecimentos: cestos, pontos, correria, faltas. O futebol é ao contrário, é uma estabilidade frágil, porque a qualquer momento um pontapé transforma por completo o jogo. E aí o futebol venceu. 

O futebol acaba também por vencer com a vitória da Argentina na final. Sem dúvida nenhuma que, desde o início, a Argentina era um dos países que tinha maior presença popular nos estádios. Percebi que quem ali estava eram pessoas que vieram da Argentina e com prática de bancada, de ver o jogo e de apoiar as equipas. Viam-se bandeiras da Argentina e camisolas da Seleção, mas havia muitos cachecóis e bonés de clubes argentinos, mas num Mundial disputado onde foi, com o tipo de estádios onde estivemos e toda a história que o rodeou, ter o país que teve mais população a acreditar (ou a ver na sua Seleção uma possibilidade de ter o seu momento) foi sem dúvida a Argentina. 

Não vejo o futebol como momento de evasão. Não vejo que aquelas pessoas que ali estavam se tenham esquecido que na Argentina há uma inflação brutal, uma crise política e que vão haver eleições em breve. Têm tanta consciência disso que, ao mesmo tempo, querem ter mais que isso. Ao vencer, a Seleção argentina mostrou ao país que mesmo num momento de crise consegue continuar a ter símbolos e a alimentar uma certa capacidade de diálogo e de união muito difícil de conseguir com outras matérias. 

Certas seleções ou federações nacionais, como as da Alemanha ou da Dinamarca, protestaram na forma de boicotes e protestos, especialmente quando a FIFA ficou ao lado das exigências dos anfitriões cataris. Sente que essas seleções estavam a atenuar a sua presença no apelidado "mundial da vergonha" com gestos simbólicos? 

É uma excelente questão. Acho mais eficaz terem protestado no local, aproveitando toda a atenção que ali seria dada a esse protesto, do que ficarem à porta a apontar o dedo. Aquilo que aconteceu neste Mundial, e que acontece constantemente, foi fruto de uma conjugação de tensões que nós tendemos a ler como unidade, mas essa unidade não existe. A Federação da Dinamarca ter feito reparos a fazer em relação à organização do Mundial não criou uma onda que pudesse mudar o destino que ficou traçado em 2010 [a organização do mundial pelo Catar]. Mas o objetivo não era esse. 

É certo que logo em 2010 se percebeu que alguma coisa ali não cheirava bem, mas foi preciso aproximarmo-nos do acontecimento, e perceber como todo o processo no Catar se foi desenvolvendo, para se criar o momento para as tomadas de posição [sobre os direitos dos trabalhadores no país árabe] das federações dinamarquesa e norueguesa de futebol, por exemplo, no congresso da FIFA. Aquilo que se fez aí foi uma marcação de posição para o futuro.

"O Mundial obrigou-nos a pensar onde é que o Catar anda a gastar dinheiro, e quem estiver ligado ao país vai sentir essa marca negativa."

Quando a Noruega e a Dinamarca se posicionam, estão de alguma maneira a começar a arregimentar-se para, no futuro, terem um determinado peso neste tipo de decisões. Quando os jogadores ingleses ou alemães protestam no relvado, isso também é fruto de tensões, porque nem sempre as federações estão de acordo com os protestos que os jogadores fazem. Em Inglaterra isso tem sido muito evidente, porque foram os jogadores a forçar o protesto do antirracismo - o ajoelhar no momento inicial dos jogos.  Não foi uma tomada de posição da federação inglesa.

A Alemanha é exemplo de como as federações tentam gerir essas questões para não entrarem em conflito com o governo. Enquanto os jogadores alemães protestavam em campo contra a censura no Catar, o governo alemão assinava um acordo comercial importantíssimo com Doha. 

É difícil, senão impossível, imaginarmos que vamos em algum momento ter uma certa unidade no protesto. Acredito que a grande conquista deste Mundial foi o tempo de antena dado às questões dos direitos humanos, à corrupção dentro da FIFA, aos direitos das mulheres e pessoas LGBTQ+ e à diversidade de países e culturas representadas. Foi preciso que existissem esse tipo de protestos, mesmo que saibam a pouco. O certo é que estivemos imenso tempo a falar sobre coisas de que não falaríamos se esses pequenos protestos não acontecessem. 

O Catar sai bem visto do mundial? 

Depende do sítio onde estejas sentado. Li vários artigos que apontam que o Catar ganhou com a organização deste Mundial. Digo sim e não. Temos de estar conscientes do que falamos quando perguntamos se o Catar ganhou ou não ganhou. Ainda não ficou muito claro o que queria o Catar com esta competição. 

Provavelmente queria ter a sua relevância internacional reconhecida de forma alargada, ou seja, não estar dependente de um reconhecimento apenas estratégico ou momentâneo com este ou com aquele país da União Europeia ou com os Estados Unidos. O Catar queria que o mundo reconhecesse que o país existe. Tem sido esse o objetivo fundamental da enorme quantidade de investimentos que o Catar tem feito nos últimos 20 anos. Se esse era o objetivo, foi cumprido. 

Se o objetivo passava por transformar o Catar ou apresentá-lo como exemplo positivo ou país com uma apreciação positiva alargada nessa comunidade internacional, isso não aconteceu. A maioria das pessoas que assistiram a este Mundial foram expostas ao que acontece de errado no país. 

Não creio que o Catar tenha ganho por aí além como destino turístico, o que poderia ser um dos objetivos. Não creio que tenha conseguido demonstrar, e acho que poderia ter demonstrado, que, por comparação com outros países da região, consegue ser o mais aberto a uma certa convivência com o modo de vida ocidental. O Mundial obrigou-nos a pensar onde é que o Catar anda a gastar dinheiro, e quem estiver ligado ao país vai sentir essa marca negativa. 

Agora, se deslocarmos o nosso ponto de vista para o de um país árabe, muçulmano, o Catar aí ganhou bastante. Mas talvez ganhe por uma série de coisas que, nós, aqui onde estamos sentados, não aceitamos como positivas. Essa é outra grande discussão que não ficou bem feita neste Mundial, mas que passa a ser uma tensão muito mais evidente a partir de agora. No caso do futebol, este Mundial foi um marco temporal e vai obrigar-nos a discutir sobre o porquê de a Supertaça espanhola ir jogar-se à Arábia Saudita, por exemplo.

O que é hoje o futebol dentro deste emaranhado de capital? É um produto e ao mesmo tempo - não querendo romantizar as raízes populares do futebol - é um espetáculo, mas continua a ter um papel muito importante de expressão nacional e pessoal. O que é esta coisa plástica a que hoje chamamos futebol? 

O futebol é uma grande oportunidade para discutir muitos temas. Quantas pessoas nós conseguiríamos alcançar para discutir o Catar enquanto centro de trocas de interesses entre grandes atores do capitalismo? Quantas pessoas nós conseguiríamos alcançar para discutir a forma como a Seleção Francesa é composta e a sua diversidade de origens? Ou a prestação da Seleção de Marrocos [ficou em 4.º lugar], que se alimenta muito da diáspora marroquina? Quantas pessoas conseguimos alcançar quando queremos falar de temas complexos mas que tocam a maioria das pessoas? 

É difícil conquistar a atenção das pessoas para falar sobre determinados temas. O futebol é uma espécie de língua franca que nos põe a falar sobre temas que podem incluir tudo isto. O facto de o anterior mundial ter sido na Rússia devia ter-nos levado a muitas mais conversas. Creio que há uma grande evolução [em comparação com o do Catar], é um resultado não imediato e não tem um poder transformador como ansiámos, mas é um espaço e uma conversa que pode ajudar a plantar sementes. Agora, também tenho perfeita consciência de que, por um lado, pode parecer muito utópico, por outro lado, é um trabalho de uma 'formiguinha no meio de camiões'. 

Os jogadores do Irão, e o selecionador Carlos Queiroz, foram bastante pressionados para tomarem uma posição sobre o que se passa no país. Afinal, qual é o papel de um futebolista - ou de um desportista que represente o seu país internacionalmente - hoje em dia?

O exemplo do Irão é poderoso. Ficou relativamente claro de que terá havido intervenção de alguns agentes do governo iraniano junto da Seleção. Carlos Queiroz falou de reuniões durante a noite que impediram a equipa de descansar. Portanto, percebeu-se que houve ali uma intervenção clara da parte do Estado iraniano na forma como a equipa se comportava. É especialmente interessante que nestes países, onde há fortes tensões internas e sem liberdade de expressão, aquilo que o futebol atualmente lhes permite viver e os exponha seja muito diverso, porque são raríssimos os casos em que as seleções não têm jogadores a atuar noutros países. Isso leva a que o próprio espaço da Seleção seja um símbolo nacional e, muitas vezes, quase nacionalista.

Ao mesmo tempo, é também na própria Seleção que os jogadores encontram um espaço de reunião muito diferente. E isso já é um espaço de oportunidade, um sintoma de como a política e a sociedade estão muito presentes no futebol. Emmanuel Macron espera que a política não entre na Seleção francesa e, ao mesmo tempo, marca presença nas bancadas, no relvado e no balneário. Força quase uma visita ao balneário da Seleção de Marrocos, algo nada inocente. E, no fundo, usa todo esse poder simbólico do futebol para ter ganhos políticos.

"Por que razão a FIFA cria uma braçadeira contra a discriminação, mas não permite que este tenha as cores do arco-íris? Porque quer fazer o seu trabalho social, mas não quer que isso incomode os seus interesses económicos."

Fica bem claro que não podemos aceitar a ideia de que no futebol não existe política, ou que não deve entrar. Não, está lá faças o que fizeres. A FIFA e todas as entidades organizadoras de competições procuram ter uma mão muito forte sobre a expressão de opções políticas que possam de alguma maneira pôr em causa os interesses financeiros dessas organizações. O trabalho da FIFA é esse. Porque razão cria a FIFA uma braçadeira que diz não à discriminação, mas não aceita que a braçadeira tenha a bandeira de cores do arco-irís? Porque quer fazer o seu trabalho social, mas não quer que esse trabalho social incomode os seus interesses económicos. No fundo, conjuga uma série de países nas quais essa bandeira é ilegal, mas é importante ela aparecer nas bancadas. É importante que essa bandeira e a da Palestina apareçam nas bancadas. 

O facto de Marrocos procurar, com a questão Palestina, puxar para si uma certa simpatia dos mundos árabe e europeu não deve fazer-nos esquecer que Marrocos também tem questões territoriais no Sahara Ocidental, nas quais não está do lado positivo da moeda. Isso também é muito importante para chamar a atenção de que as coisas não são só boas ou más. 

Não creio que devamos demonizar Marrocos por causa do Sahara Ocidental, mas também não devemos endeusar Marrocos por trazerem a bandeira da Palestina. Marrocos acabou por agregar para si o apoio da generalidade dos países árabes, sendo que nem sempre é entendido como um país árabe pelos seus congéneres. É esse esforço que andamos aqui a fazer: não deixar que alguém defina o que é a política, porque tudo é política e todas as nossas ações acabam por ser políticas. 

No final do jogo entre Argentina e França, vimos Macron a consolar Kylian Mbappé. Os comentadores da RTP disseram que Mbappé é um símbolo do regime de Macron, de um liberalismo que quer anular as tensões raciais em França. Que achas disto?

Não acho que o Macron seja uma figura paternal. No fundo, tenta ser um padrasto à força do Mbappé. A ideia dessa figura paternal ficou acentuada quando, supostamente, Macron teve uma intervenção junto de Mbappé, para que ele renovasse pelo Paris Saint-Germain. Mas aí não há nada de paternal em Macron e creio que a imagem do final do Mundial é realmente muito interessante, porque Macron tenta quase consolar forçosamente Mbappé e ele ignora. Se há ali alguma leitura daquela imagem é a forma como Mbappé ignora por completo a presença de Macron. 

No caso francês, tem que ver com a questão de ser o Estado quem legitima aquela Seleção, e não o contrário. O futebol francês é um conjugar das muitas origens dos franceses das últimas duas décadas do século XX e da atualidade. Em 1984 tiveste a principal estrela, o Platini, descendente de italianos, e hoje tens uma Seleção com origens em quase todos os continentes: do Caribe, das Filipinas, muitos descendentes de africanos, portugueses e espanhóis. 

Curiosamente, é uma das seleções com menos jogadores nascidos fora do seu território. Creio que só três é que nasceram fora de França e, por isso, esta Seleção de 2022 é quase uma prova de que as políticas do Estado francês resultaram. 

Em 2016, Portugal foi campeão com uma equipa diversa: entre filhos de imigrantes e emigrantes, havia jogadores naturalizados portugueses e outros de minorias étnicas. Em 2018, o comediante sul-africano Trevor Noah entrou em conflito com o embaixador francês nos EUA por ter dito que a vitória francesa no Mundial era afinal uma vitória africana. Este tipo de narrativas de diversidade, para o bem ou para o mal, são usadas há muito tempo, especialmente no Brasil (para provar a democracia racial) ou em Portugal (para provar o lusotropicalismo). O que pensa do uso político do futebol como uma bússola para a tolerância racial?

As situações políticas e sociais em França são fatores de tensão. Parte do discurso político francês resiste a um certo sucesso das políticas do Estado, como se uma parte do país preferisse que essa integração não existisse ou não tivesse sido realizada. 

De certa forma, uma parte da França procura que estes jogadores não sejam franceses ou não se considerem franceses. É nesse discurso que depois se originam uma série de conflitos que podem ganhar um peso bastante complexo. 

Por exemplo, no caso de [Karim] Benzema é muito evidente a dificuldade na  forma de conjugar os seus interesses como a sua personalidade. Foram sempre tratados em algum espaço da federação, levando-o a tornar-se quase inapto.  Mas quando olhamos para a carreira dele nos clubes, isso não bate certo. Há muitos casos desses. 

Aliás, há cerca de dez ou 15 anos foi publicado um livro em França sobre a forma como eram tratados os atletas descendentes do Magrebe e isso criou muita polémica e discussão. Em determinada altura, parece ter havido quase um esforço dentro da Federação Francesa de Futebol para impedir, sobretudo no caso dos magrebinos, a sua integração plena na selecção. 

Depois, e um bocadinho ao contrário, tens este exemplo do Mbappé, que é francês em toda a sua postura. Em alguns momentos até parece enquadrar-se no preconceito que temos do que é ser francês. O sucesso e o peso que lhe são conferidos por Macron, mas também pelo Paris Saint-Germain, a sua transformação em símbolo, têm muito mais que ver com a sua qualidade do que propriamente com uma coisa plástica. É factual que estamos perante um jogador  de uma dimensão mundial de topo, mas isso tem-no empurrado um bocadinho para ser muito francês, quase na forma como publicamente se comporta.

"Mbappé representa uma nova França a que Macron não consegue dar resposta."

Ao mesmo tempo, Mbappé não só é negro, como é filho de um camaronês e de uma argelina e, por isso, até naquilo que é a sua história de vida escapa a uma série de esforços feitos para pôr as pessoas em determinadas gavetas, porque ele é camaronês e argelino. Aqui há uma diferença de tratamento ou de eventual tratamento na forma como se esperaria enquadrá-lo. E isso, de facto, é uma nova França que está ali na Seleção de futebol e a que Macron não consegue dar resposta.

Esta nova França não tem respaldo político, não tem uma voz política. Não estou a falar do multimilionário Mbappé, mas falo do jovem Mbappé que nasce num bairro dos arredores de Paris e por ali vive, filho de camaroneses e argelinos, mas que faz o seu percurso de vida na escola pública como europeu francês. Estas pessoas não têm voz em França, porque não se podem identificar nem com a extrema-direita nem com a direita tradicional, que se mesclou com a extrema-direita. Terá sempre muitas dificuldades para se sentir representada pela ideia de Macron, de um centro que se esforça por ser anti ideológico, mas depois também não tem propriamente na esquerda um espaço de afirmação. 

É curioso, porque depois vai levar a que haja um peso extra nas costas destas figuras. Mesmo que não queiram, acabam por ser transformados em símbolos políticos de um país que precisa deles e que vai ter de os encontrar no desporto. É que política ou socialmente não seriam tão evidentes. 

Não se falou na imprensa portuguesa de outra coisa que não de Cristiano Ronaldo, até mesmo quando os golos não eram seus. Acha que alguma vez aceitaremos que os Homens Grandes são do mesmo tamanho que os outros e quebrar esta abordagem sebastiânica? Ou isso vende demasiado bem?

Cristiano Ronaldo é uma figura com uma dimensão impossível de fugir. O Cristiano Ronaldo existe hoje em dia por si, por ser um famoso à escala planetária. Onde estiver o Cristiano Ronaldo vai sempre haver a necessidade de se olhar para o local onde ele está. Creio que aconteceu neste mundial, mas também foi, de alguma maneira, imposto pelo próprio Ronaldo ou pelo seu entorno. Ou seja, se é certo que muita gente esteve no Catar a querer ver Ronaldo, também é certo que Cristiano Ronaldo se forçou como ator bem para lá daquilo que era o jogo neste Mundial. 

Infelizmente, é um bocado a lei da vida, isso acontece porque dentro de campo a sua expressão tem diminuído. Para a nossa Seleção, é inevitável olharmos para estes anos, desde 2002, como o período de Ronaldo. Primeiro como o jovem que representava o futuro. Em 2004, Cristiano Ronaldo era um miúdo que já estava com o resto da equipa e representava ali um futuro. Não tinha sobre ele o peso da responsabilidade, mas tinha uma carga de esperança carregada pelo jovem Cristiano Ronaldo. Depois vai crescendo até se transformar. E em determinado período transformou-se na peça que segurou a Seleção Portuguesa de uma quebra que seria natural, depois da geração de Luís Figo, de Rui Costa, de Deco e companhia. 

Entre 2010 e 2014, a Seleção Portuguesa estava totalmente refém daquilo que Cristiano Ronaldo conseguia fazer e, depois, a partir daí, conseguiu iludir o declínio esperado a partir dos 30 anos de Cristiano Ronaldo. Ele até cresceu como jogador nos primeiros anos da sua terceira década, mas começou a aparecer também uma outra geração de pleno direito no futebol. Uma que transformou Portugal numa equipa que vai conseguir estar presente nestes momentos altos [do futebol mundial].

"Ronaldo não apresenta, neste momento, condições para ser titular na seleção nacional."

Quando, em termos futebolísticos, chegamos a 2022, essa Seleção já não é do Cristiano Ronaldo, mas desses outros jogadores em plena maturidade: Bernardo Silva, Bruno Fernandes, por aí fora. 

Em termos futebolísticos não vejo que haja um problema de herança com a eventual saída de cena do Cristiano Ronaldo. A grande discussão deste Mundial teve muito mais que ver com o testamento. No fundo estamos naquela fase em que, por um lado, parece aconselhável que o dono da fortuna escreva o seu testamento e, por outro, ele recusa-se a fazê-lo, porque acha que ainda está na fase de ditar o que acontece no dia-a-dia e não se preocupa com isso. 

É, de facto, um problema, porque o peso que a figura de Cristiano Ronaldo tem para o lá do futebol vai sempre aparecer como arma, impedindo que essa passagem de testemunho se faça de forma mais pacífica. Confesso que me custa a forma como falamos dele neste mundial. Somos [comentadores] muitas vezes empurrados para analisar as coisas do ponto de vista do espírito: "porque é que Cristiano Ronaldo está a sorrir? Porque não está?"; "Porque saiu a correr para fechar o segundo golo? Porque não saiu a correr quando foi chamado para ser substituído?". Esse tipo de análise afasta-nos da conversa que deveríamos estar a ter. 

Por um lado, olhando para o rendimento de Cristiano Ronaldo no seu clube, no Manchester United, e na Seleção, ele não apresenta neste momento condições para ser titular da Seleção. Quando um jogador do seu estatuto e com a sua história, com tudo aquilo que conseguiu na sua vida, não tem condições para ser titular, podemos realmente questionar se é o melhor para ele estar naquele grupo como suplente? Se ele consegue fazer ou não? Se ele quer fazer ou não? E isso é o que está em causa, mas não é uma questão exclusiva do futebol. 

Na análise política também somos empurrados para fazer uma autoavaliação daquilo que sentimos ser o estado de espírito do primeiro-ministro ou do Presidente, ao invés de analisarmos as suas ações. Há uma tendência de análise da nossa sociedade que acabou por transformar o caso do Ronaldo em algo mais central do que aquilo que deveria ser. Mas, ao mesmo tempo, isso foi aproveitado pelo próprio entorno do Cristiano Ronaldo para lançar sobre quem vê os jogos e faz na sua análise um anátema de anti-Ronaldo, o que não existe em Portugal. Pelo contrário, acho que todos percebem o peso e a grandeza daquilo que Cristiano Ronaldo fez pelo futebol português.

Escreveu sobre o europeu feminino que também aconteceu este ano. Vê no futebol feminino algo de especial? Poderá ser uma versão mais “real” do futebol?

No futebol feminino todas estas tensões existem e sempre existiram. Se olharmos para a história do futebol feminino, o momento da tomada de controlo da FIFA e da UEFA foi  de enorme tensão a nível do controlo financeiro. Estavam a ser organizadas competições de futebol feminino. Aliás, isso é até anterior. 

A questão da Liga Inglesa ter bloqueado a realização de jogos de futebol feminino, no pós-II Guerra Mundial, e proibido que o futebol se jogasse nos estádios das equipas da Liga foi uma procura de manutenção de controlo económico sobre o que acontecia no espaço do futebol. Isto deu uma machadada inicial na expressão que o futebol feminino já tinha e que poderia ter desenvolvido há mais tempo. 

Depois há uma segunda machadada por volta dos anos 1970, existindo organizações de competições a nível mundial de futebol feminino, sobretudo em Itália, no México, e que já tinham a sua própria organização, também a nível comercial. A procura da FIFA e das suas confederações, que tomaram o controlo sobre o clube, foi uma segunda machadada sobre o futebol feminino, porque tentou de novo controlar o seu crescimento a nível financeiro. 

Uma coisa é teres uma prática do ser mulher e jogar futebol, outra coisa são as condições dessa prática. As condições para a prática vêm do investimento financeiro. É aplicável a esta realidade desde o clube do bairro. Ou seja, o clube do bairro organiza uma equipa de futebol masculino ou feminino, consoante vê aí a capacidade financeira para desenvolver essa equipa, utilizando a ideia do futebol amador. O futebol amador sempre foi muito capitalista, no sentido em que organizavam a equipa ao fim-de-semana, e durante o jogo conseguias abrir o bar e vender uma série de coisas que justificavam a existência da equipa e que davam condições financeiras para poder desenvolver a tua associação. 

Depois os patrocínios vinham das empresas que achavam que patrocinar o clube do bairro, onde tinham a sua loja, seria bom para ela, porque as pessoas vêm depois comprar os seus produtos. Portanto, o futebol feminino está também exposto a estas mesmas tensões. Com grande mérito, quer nos Estados Unidos, quer em vários países europeus, há uma consciencialização do Futebol como espaço de oportunidade para afirmações pessoais, ideológicas, políticas, culturais e sociais da parte das atletas ou de algumas organizações. Olha-se para a liga norte-americana e percebe-se que a afirmação política LGBT é muito central na existência dessa liga. 

O facto de não haver ainda tanta pressão financeira sobre o futebol feminino permite que haja excelentes exemplos dessa afirmação política e social de jogadoras e de determinados clubes. É uma das tensões por resolver que estão em cima da mesa. No próprio [Campeonato] Europeu de Futebol Feminino e, agora, em 2023, quando vamos ter um Mundial, vamos com certeza voltar a ter oportunidade de ver isso na forma como certas federações abraçam por completo a imagética LGBT na sua seleção feminina, enquanto outras não o fazem.

"O facto de não haver ainda tanta pressão financeira sobre o futebol feminino permite que haja excelentes exemplos de afirmação política e social de jogadoras e de determinados clubes."

Por exemplo, tem sido interessante perceber em Inglaterra que, com o crescimento da Liga Inglesa de futebol feminino, há cada vez mais gente a comprar camisolas das atletas, das jogadoras. Considerando-se adeptos do Chelsea, do Aston Villa ou do Arsenal, podem comprar a camisola com o nome da jogadora preferida sem ter de comprar a camisola do jogador preferido. Em alguns clubes tens realmente jogadoras a estarem no topo de vendas em detrimento dos atletas masculinos, isso é um campo de influência que poderá estar em aberto. 

Portanto, vejo, por um lado, o futebol feminino como espaço de empoderamento dos direitos das mulheres, mas, por outro, como espaço que pode influenciar o futebol praticado por homens. Olhamos para os estádios e para os adeptos e as adeptas, os clientes do jogo, e percebemos que há uma presença de mulheres a um número muitíssimo superior em comparação com o acontecia há 20 anos. 

Estamos inclusivamente a entrar num tempo em que o caminho para o equilíbrio entre homens e mulheres nas bancadas no estádio se vai aproximando, mas esse equilíbrio também tem de vir com uma mudança de discurso à volta do jogo. Espero que o futebol feminino nos ajude também a fazer esse caminho. Enquanto tentamos ajudar o futebol feminino dando-lhe expressão, espero que ele  nos ajude a influenciar positivamente as imensas questões que temos à volta do futebol masculino. 

Dificilmente será feito fora de uma organização capitalista. Dificilmente será feito sem a intervenção de grandes atores do plano financeiro a nível mundial. A questão será sempre sermos capazes de aproveitar a oportunidade para mudar a forma como se fala das coisas.