Fotografia de José Sarmento Rodrigues, do livro Jamaika. 

Fotografia de José Sarmento Rodrigues, do livro Jamaika. 

José Sarmento Matos:“Consegui documentar o realojamento do Jamaica porque me escondia. Quando me apanhavam, tiravam-me de lá com a PJ”

O fotojornalista esteve três anos a acompanhar e a documentar a realidade que os moradores do Bairro da Jamaica vivem: condições de habitação indignas, violência policial, racismo e segregação. Uma realidade que o fotojornalista não tem pudor em caracterizar como “vergonhosa”e "obscura" disfarçada por “white saviors” (salvadores brancos), da autarquia". 

Entrevista
8 Fevereiro 2024

Pouco depois das nove da manhã do dia 6 de fevereiro de 2024, começaram os despejos no Bairro da Jamaica, no Seixal. Passaram-se quatro meses depois de 98% do bairro ter sido demolido e de grande parte das famílias realojadas. Mas houve tantas outras que permaneceram sem solução de habitação digna. Até ao final desse dia, seis famílias ficaram sem quaisquer alternativas habitacionais e este era um receio que o fotojornalista José Sarmento Matos confidenciou uma semana antes das demolições voltarem “à carga”. Estas preocupações não eram ingénuas e chegaram-lhe por chamada dias antes, do lote 6, do bairro, em Portugal, diretamente para Londres, onde atualmente vive. 

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José Sarmento Matos
José Sarmento Matos é fotojornalista há mais de 15 anos. 

Recordando todo o processo de demolição e realojamento da população que habitava no Bairro da Jamaica desde 2018, foi a partir de 2020, depois do anúncio oficial, que se dedicou a documentar o dia a dia do bairro. Em letras altas, grandes e bem redondas lia-se num dos registos que fez: “Casa para todos”, seguido do número do lote escrito à mão, a tinta branca. Este era o “último capítulo do bairro”. É nesse dia que o livro Jamaika começa. 

Do tempo que passou a fotografar o bairro, ficam “o sentimento de partilha, amor e carinho, que perdurará para além do espaço e continuará a fazer parte da vida dos que lá viveram”, diz o fotógrafo. Sobre o realojamento, não deixa de frisar o sentimento de criminalização dos moradores: “o livro mostra que esta desigualdade sistémica ainda existe em 2023. Havia polícia de choque no realojamento. É necessário falar disto para que as pessoas parem de ser estigmatizadas como ainda o são em Portugal”.

Antes do livro, que descreve como uma “memória visual do bairro”, José Sarmento Matos produziu uma curta-metragem sobre a premência do realojamento em tempos de pandemia que se estreou no Festival DocLisboa 2021. Seguiu-se a instalação Model of Jamaika, parte da exposição X não é um país pequeno, que esteve no MAAT – Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia, em Lisboa, entre abril e setembro do mesmo ano. 

O caminho foi longo até chegar a este objeto final, mas é também a partir de caixas ao comprido que sustentam cubos de vidro com polaróides de retratos de vários membros da comunidade (exposição a decorrer no atelier fotográfico Narrativa), que José Sarmento Matos nos aproxima daquilo que foi a comunidade e a constituição de um bairro diverso. A eles juntam-se ainda letras do músico do rapper Kid Robinn, que dão voz a uma “perspetiva que ele não seria capaz de dar, nem que ficasse no bairro da Jamaica durante 50 anos”. Uma realidade que o fotojornalista não tem pudor em caracterizar como “vergonhosa”: excesso de forças de segurança no bairro, impossibilidade da imprensa documentar o processo de demolição e realojamento e a obscuridade disfarçada por “white saviors” (salvadores brancos), da autarquia.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.

 

O livro Jamaika é “o contar de uma luta por uma habitação digna”. É um trabalho documental que nasce a partir de que necessidade enquanto fotojornalista? 

Sim, este é um dos trabalhos mais morosos que realizei e importante será dizer que desde muito cedo percebi que precisava bem mais do que três meses para o fazer. Lembro-me de uma reportagem que fiz [no Público] mais extensa e, como estagiário que tinha uma enorme vontade de fazer coisas e queria aprender, tive a oportunidade de fazer o "Cinco Terras, Cinco Retratos", um conjunto de reportagens mais longo. Na altura acabei por fazer a peça inteira e e fez-me perceber esse facto: a necessidade de fazer um trabalho longo e intemporal. Era importante para mim fazer esse exercício de se pensar na história com um conjunto de imagens. 

Essa foi a grande ferramenta que deu origem a todo este registo documental? 

É importante percebermos que, ao longo do tempo em que estamos com as pessoas, vamos abrindo portas e deixando as suas realidades expostas, ou melhor, deixar que a realidade da vida das pessoas se torne aquilo que efetivamente é. 

O Jamaika é uma memória física duradoura do amor que as pessoas sentiam pela sua comunidade e das dificuldades que enfrentam, assim como um registo da sua luta constante. É um objeto que retrata uma vontade muito íntima: deixar ser aquilo que é. Sinto sempre que isto é um processo muito egoísta, porque nunca se trata de mim, ou seja, não é sobre estas 55 fotografias enquanto autor, mas sobre o que reflete cada um destes momentos que se tornam reais, levando-nos ao lugar daquilo que seria privado, esquecido, degradado. É o momento que realmente prevalece. No fundo, trata-se de viver uma vida que não é minha, mas onde procuro que seja tão bom para mim como para as pessoas que o partilham comigo. 

Neste caso em específico, Portugal, como dizia Ana Naomi de Sousa, é um país que tem “muitas Jamaicas”. Paremos e pensemos quantas não são as realidades urbanas, tal e qual como esta, silenciadas, ou melhor, demolidas e invisibilizadas em Portugal? O resultado do abandono de uma empresa de construção falida, em finais dos anos 1970, intensificou aquilo que se vivia quase desde a génese do bairro, que sempre esteve associado a perigosas condições de habitabilidade e sobrelotação. 20 anos depois, graças ao pobre planeamento urbano, à migração de larga escala do campo e à imigração das antigas colónias portuguesas, a falta de apoio social e político intensificava-se. 

O Jamaika é um documento que representa não só o Bairro da Jamaica e a sua memória, mas de muitas comunidades que ainda existem semelhantes àquela.

Passaram-se 34 anos. E quatro desde os primeiros despejos, ou melhor, desde as primeiras demolições. Os imigrantes africanos foram empurrados para condições completamente precárias, muitas vezes tendo que arranjar as suas próprias casas, ilegalmente e nas periferias da cidade. É exatamente aqui que a segregação começa. Documentar tudo isto a partir de um lugar de privilégio que, obviamente não o deixo de ter e viver, tem apenas um objetivo: que tenha tanto impacto para as pessoas como tem para mim. Depois há um resultado, e esse acaba por ser fruto de um resultado maior. O que resta do ouvir, do estar, de dar tempo.

É também por isso que, muitas vezes, os meus temas acabam por retratar realidades, as quais nunca poderia criar. Elas não existem, a não ser que o tempo as faça existir. Por exemplo, um dos meus últimos trabalhos retrata o final de uma emigração de Portugal para a Venezuela e da Venezuela para Portugal com o culminar da terceira geração - o nascimento de um bebé na Madeira. Enquanto a senhora não estava grávida, eu não sabia que a história seria assim, levaria este caminho. O mesmo aconteceu com o Bairro da Jamaica. Enquanto não soube que o Bairro da Jamaica ia terminar, eu não sabia que o livro ia acontecer. 

Fala na importância do tempo e do desenvolvimento de várias necessidades de uma sociedade, aliás, todo o seu trabalho alberga estas lentes. No caso do Bairro da Jamaica não foi diferente, mas o interesse de fotografar vem através de propostas internacionais e não propriamente nacionais, e que coincidem com cercos e violência policial. 

É verdade. Foi a partir de um trabalho diário que estive, curiosamente, muito perto de recusar. Lembro-me que estava em Lisboa por causa da covid-19, durante a pandemia, e uma editora com quem trabalho da Bloomberg ligou-me a perguntar se podia ir ao Bairro da Jamaica. Estranhei aquele contacto vindo de Londres. Questionei. Disse-me que se tratava de questões de habitação, relacionadas com o contexto pandémico, e do sentido de dificuldade no que tocava à casa em si, enquanto ambiente, estruturado, consistente. 

O confinamento veio alimentar exatamente isso: a relação com a casa e com as paredes onde vivemos, que nunca tínhamos tido antes de forma tão intensa. A partir daí também passei a ver a casa de uma forma diferente. Voltei a questionar se faria sentido retratar tudo isto em menos de 24 horas, isto é, fazer algo que fosse digno e que não fosse só mais uma coisa sobre o Bairro da Jamaica. Ou melhor, não é que tivesse corrido muita tinta sobre o bairro no que toca à habitação, porque tudo o que tinha sido documentado até então, jornalisticamente ou não, era sempre sobre as intervenções policiais, sobre os cercos sanitários, o que não deixa de ser absolutamente ridículo. 

Recordo-me de um episódio em particular, um cerco sanitário que resultara de 16 casos de covid-19 no bairro e, por isso, decidiram fechá-lo na sua totalidade. Foi extremamente grave e problemático em termos sociais, porque as pessoas já não só estavam segregadas o suficiente, como ainda viram aquilo retratado na imprensa de forma completamente esmagadora, onde o desconhecimento permanecia. Recordemos que um bairro é uma unidade de habitações num território que partilha uma série de funções, com moradores, comércio e serviços, redes de vizinhança, economia local. A maior parte está num ambiente urbano, mas não exclusivamente. 

Não interessa saber que não são só pessoas negras, que não são só pessoas que vivem num contexto de muita desigualdade, que são mães e pais. Que muitas vezes acabam em contexto de criminalidade ou resta-lhes encontrar no futebol uma saída.

Não deixa de ser interessante a dissonância semântica atual na classificação de bairro no contexto da área metropolitana de Lisboa. Há uma antítese entre a nomeação dos bairros da cidade dos cidadãos. Aquilo a que chamamos de "desmaterialização do plural" contribui para a desumanização dos seus moradores, promove um preconceito geral.  E isso é gritante no Bairro da Jamaica. Depois há racismo direto. 

Como se retrata isso?

Dificilmente se retrata. O racismo já nem sequer é subtil. E todo ele vem de várias pessoas em consequência desses eventos super mediatizados, como do cerco, da violência policial. Neste primeiro contacto, fui ao bairro num dia, com o jornalista com quem tinha trabalhado poucas vezes. Ele ficou um par de horas, eu precisava de tempo. Em termos de fotografia, era impossível fazer algo digno num par de horas. Acabei por ficar o dia todo e isso ajudou-me a abrir portas dentro do bairro.

Fiz uma reportagem fotográfica que correu bem e o que era suposto ser um artigo pequeno, para o digital, acabou por ser um artigo para a revista da Bloomberg. Tudo isto foi uma espécie de "o primeiro passo". Comecei por falar com várias pessoas, entre elas a [jornalista do Público] Joana Gorjão Henriques, que tem conhecimentos não só sobre a causa, mas especificamente de algumas pessoas do Bairro da Jamaica. Fui conversando com eles enquanto me candidatava a uma bolsa, com o objetivo de fazer um filme com a comunidade. Falei também com o presidente da Associação dos Moradores, Salimo Mende, que entretanto faleceu em 2020, e com outras pessoas com quem fui comunicando, transformando-se em fixers que, no fundo, faziam parte da candidatura. Eram locais do bairro.

Como se transforma o Jamaika no “contar de uma luta por uma habitação digna”? Primeiro enquanto filme documentário e depois como livro?

Confesso que não era suposto ser um filme, mas um trabalho multimédia em que as pessoas iriam usar a sua forma de expressão, fosse filmar ou fotografar. Acabaram por filmar, maioritariamente, e acabamos a fazer um filme com entrevistas. Todas elas eram dirigidas em colaboração com as pessoas do bairro e feitas entre elas, ou seja, um filho entrevistava uma mãe, um sobrinho entrevistava um tio. Só assim é que faria sentido para mim, porque muitas vezes as filhas ou filhos querem ouvir os pais a conversar sobre a mudança para Portugal ou uma história de imigração, ou uma história de dificuldade que depois correu bem. Sentem que aprendem coisas que doutra forma não saberiam. Decidi que as entrevistas iriam ser feitas entre as pessoas e eu ia ser um mero assistente.

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jmaika

No entanto, esta bolsa dedicava-se à covid-19, eu parti desse mesmo contexto como história relacionada com o sentido de habitação, mas depois envolvia muitas outras coisas. Envolvia racismo, segregação, envolvia no fundo o dia a dia da comunidade no seu sentido puro de partilha, de desamor, de dificuldades.

E o trabalho fotográfico?

O trabalho fotográfico continua. Já tinha começado desde o início, em 2020. Há um momento em que percebo que o realojamento vai acontecer ou que vai recomeçar e, pois já estava a acompanhar as pessoas, simplesmente porque me propunha a fazê-lo, não tinha necessidade de me afastar delas. Acabei um filme, mas continuei próximo. Continuei a documentar o dia a dia delas, continuei a estar com elas como ser humano, como jornalista e como fotógrafo. Acabou por acontecer o momento em que o realojamento recomeçou. É aí que percebo que este trabalho pode chegar ao fim. 

Quando termina o realojamento, decido fazer o livro. Era importante fazê-lo no sentido do mais rápido possível, para que a memória não fosse esquecida. E uma das minhas motivações partiu logo pela forma como a autarquia tratou as pessoas. O processo de realojamento feito pela Câmara Municipal do Seixal foi muito mau, porque tiveram comportamentos de white savior [Salvador Branco]. Foi muito esquisito. As pessoas têm todas as oportunidades para fazerem coisas boas e até nisso têm uma abordagem estranha. 

Para mim, isto é uma vergonha. Estas realidades serem constantemente ignoradas e, nós, ou certas e determinadas pessoas, questionamos se há ou não há racismo em Portugal.

Mesmo a intervenção que houve, ou seja, nenhuma imprensa pôde documentar o realojamento ou demolição. Fui a única pessoa que o documentou porque me escondia. Quando me apanhavam, tiravam-me de lá com a Polícia Judiciária. Mas o processo, com algumas dificuldades e com algumas sensibilidades, foi correndo bem e mal. E era o que as pessoas queriam efetivamente ser realojadas. Entretanto, o livro acabou por acontecer, assim como a exposição na Narrativa, em Lisboa. Olho para o livro e vejo muitas recordações de todo o processo de trabalho. No fundo, é um documento que representa não só o Bairro da Jamaica e a sua memória, mas de muitas comunidades que ainda existem semelhantes àquela e que, infelizmente, são realidades que nem sequer deveriam ser toleradas, quer como a existência da segregação em Portugal, num país da União Europeia, e perto de uma capital europeia. 

Disse que o que fazia era colocar-se num lugar em que “vivia a vida de outra pessoa” nesta ideia de documentar. Como se equilibram os diferentes lugares de fala neste tipo de trabalho? 

É muito difícil. Tenho que justificar porque é que durante tanto tempo me interessa aquela realidade. E não me interessa pelo facto de ser uma realidade exótica, mas porque sou contra esta desigualdade existir. Continua-se a olhar para o que se faz nesses sítios como algo exótico e não como algo que faz parte de onde estás. Esse é o grande problema. 

É natural que quem trabalha na minha dimensão relacional com a fotografia tenha a capacidade e sensibilidade de perceber o que está a acontecer, porque estás a fazê-lo muito antes dos vários filtros que existem.Toda a cultura que se faz nestes territórios é vista pelo ângulo do social e não esqueçamos que há 500 mil pessoas classificadas a partir de pressupostos como o de exclusão. Já vimos a situação e continua tudo na mesma. Lisboa é o centro de uma grande metrópole que tem três milhões de pessoas, é o espaço mais fácil para as pessoas de fora circularem, e isso quer dizer que há pessoas muito diferentes. É preciso existir um lugar que respeite todas elas. 

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livro exposição Jamaika

Claro que, por um lado, é uma forma de contar uma história que me preocupa, mas, não sendo eu parte dessa história, a única coisa que posso fazer é usar um privilégio que tenho: ter o tempo para me dedicar às pessoas e, de alguma forma, esse privilégio ser uma espécie de um fio condutor. As pessoas levavam tudo tão a sério que para mim era gratificante. O mesmo acontecia com o processo de fotografar. 

É interessante porque havia pessoas que filmavam o trajeto para o trabalho e eu não ia com elas, também por isso é que os registos que fazia, no caso de vídeo, só faziam sentido sendo feitos por elas mesmas. Para mim, também foi uma forma de aprender, porque nunca tinha passado por este tipo de processos. 

Neste caso, do Bairro da Jamaica, a forma como as pessoas também filmavam era uma forma de aprender o que queriam contar sobre elas próprias e não num universo paralelo, em que este contexto de bairro social é retratado como uma redline ou manchete de jornal que venda cada vez que há uma intervenção policial ou que seja uma questão de política, como Marcelo Rebelo de Sousa ter lá ido, ou André Ventura. 

O racismo não só é estrutural como é constante, é subtil - o pior racismo que existe - como é no dia a dia, a qualquer momento da vida das pessoas, como qualquer esquecimento constante que haja em relação a uma pessoa.

Tudo isto interessa porque é político. Mas não interessa saber quem são esses seres humanos. Não interessa saber que não são só pessoas negras, que não são só pessoas que vivem num contexto de muita desigualdade, que são mães e pais. Que muitas vezes acabam em contexto de criminalidade ou resta-lhes encontrar no futebol uma saída. Se se nasce num sítio, tem-se direito àquela escola, àquele centro de saúde, àquela vigilância policial e isso define muito o futuro. Lisboa em si é um exemplo disso. 

É muito mais fácil fazer as coisas em A e B. É bem mais fácil dizer que há o bom e o mau. Isto é uma ideia do estado em que vivemos e, por um lado, essa é a maneira como a sociedade atual se organiza, mas tem muitos problemas. Voltamos à ideia de colonizador brando. E isso é perverso e produziu em Portugal o assimilado, alguém que se tornava civilizado. 

Em algumas comunidades periféricas, há uma grande cultura de resistência, mas o percurso é mais fácil para quem tem uma história de assimilado. É muito mais complexo que isso. É preciso saber muito mais do que isto em certas realidades. E, no caso do Bairro da Jamaica, à partida há muitos handicaps que tenho, não só por ser branco, mas porque nunca vivi num bairro social como aquele. Nunca vivi naquelas condições de habitação, nem emigrei de uma ex-colónia portuguesa para Portugal, portanto, essa colaboração de vídeo e entrevista foi muito importante para perceber como as pessoas queriam ser vistas. 

A minha fotografia foi melhorando em termos de intimidade e proximidade com elas, porque fui aprendendo mais sobre estas pessoas. Sentiram-se mais ouvidas. Não olhavam para mim como jornalista, mas como pessoa, como ser humano. Sabiam que sou jornalista, sabiam as minhas intenções, reconheciam o meu trabalho, sabiam que sou fotógrafo, mas o objetivo foi que me sentissem como uma pessoa que está mesmo interessada no que elas são e no que têm para dizer. Acho que esse processo correu bem e ajudou.

Tendo em conta tudo isso, encara o documental como um ato de escrutínio? 

Não procuro fazer ativismo no meu trabalho. Procuro usar a minha forma de expressão artística e documental de maneira a poder ouvir e contar histórias às quais a minha atenção deve ser dada. Há uma coisa muito importante: a própria questão do ativismo pode ser super condescendente e, tal como a Câmara Municipal do Seixal tem um comportamento extremamente condescendente do white savior [Salvador Branco], há muitos jornalistas que também o têm. A mudança do mundo ou de mentalidades não depende de mim. É uma sociedade, é tempo, é história. São várias coisas que mudam a vida. Agora, se posso alertar para certas e determinadas coisas? Sim, posso, mas depende da forma como o quero fazer, depende de como me quero posicionar.

Outra semântica que me incomoda bastante no contexto da fotografia e que ainda se usa muito internacionalmente, em Portugal especialmente, é a questão de dar voz às pessoas. Questiono-me sobre isso, porque acho que eu próprio, quando comecei a fazer fotografia documental, talvez escrevesse uma sinopse de trabalho em que escrevia e falava dessa forma, mas vou dar voz a quem? As pessoas são mudas? As pessoas não têm voz? Temos alguma capacidade de dar a voz a alguma coisa? 

O meu trabalho e, aí pode ser a tal ideia de resistência, tem a capacidade de amplificar vozes, porque consigo chegar a meios de comunicação específicos. Tive a capacidade de recolher fundos e fazer um crowdfunding para fazer um livro e isso é um privilégio. Estou a usar isso para amplificar certas e determinadas vozes e histórias. Assim, pode ter um outro lado de resistência ou de vontade. A minha sinopse do livro é muito clara sobre isso. 

O Bairro da Jamaica termina. Enquanto existiu não havia luz pública em lugar algum, nomeadamente, na zona do Vale de Chícharos, não havia flores. Havia um campo de futebol feito pelas pessoas da comunidade, mas nunca foi arranjado, e tinha ervas. Havia ratos, ratazanas e mosquitos por todo o lado.

Para mim, isto é uma vergonha. Estas realidades serem constantemente ignoradas e, nós, ou certas e determinadas pessoas, questionamos se há ou não há racismo em Portugal. Chega a ser patético. São pessoas que vivem num mundo completamente à parte, porque o racismo não só é estrutural como é constante, é subtil - o pior racismo que existe - como é no dia a dia, a qualquer momento da vida das pessoas, como qualquer esquecimento constante que haja em relação a uma pessoa. Depressa nos esquecemos de dimensionar o outro. 

Quando isso acontece com pessoas de uma minoria étnica no contexto português, não é só esquecimento, não é só porque a pessoa é distraída, não é só porque te preocupas com a tua vida, porque também tens que te preocupar com a tua luta. É mesmo uma segregação. 

A segregação existe e nunca a sentirei na pele ou de qualquer outra forma. Neste caso, no Bairro da Jamaica, fui percebendo o quão forte é. Por exemplo, o Bairro da Jamaica termina. Enquanto existiu não havia luz pública em lugar algum, nomeadamente na zona do Vale de Chícharos, não havia flores. Havia um campo de futebol feito pelas pessoas da comunidade, mas nunca foi arranjado, e tinha ervas. Havia ratos, ratazanas e mosquitos por todo o lado. 

Não é que as pessoas que lá viviam procurassem que as casas fossem arranjadas, mas, passada uma semana dos prédios serem demolidos, começou a ver-se passeios com flores, passeios com calçada para as pessoas poderem cruzar a zona de passagem, por causa da estação de comboios, no Fogueteiro, e construíram ainda um parque infantil. Se eu fosse do Bairro da Jamaica e hoje voltasse àquela zona e visse aquilo, percebia que é tudo sobre esquecimento. Agora que não estão lá, afinal já interessa. Aquele espaço interessa. Acredito que esta é, sim, uma das formas, subtilmente, de se ser racista. 

Tendo em conta todo o seu trabalho de proximidade, como se equilibra todas as vivências, isto é, a necessidade de intervenção nos locais, a vida com a comunidade e, em contrapartida, o objeto final ser um livro que retrata 98% das demolições do Bairro da Jamaica?

É, de facto, importante arranjar um equilíbrio. Vimos do século XX em que a ideia de exploração do outro é constante, mesmo de muitos fotógrafos cujo trabalho admiro, mas não admiro a sua posição. Esse equilíbrio é fundamental. No contexto inglês, a academia está a ir ao extremo oposto, o que também sou contra. Dei aulas na faculdade em Londres, na London College of Communication, e há muito a ideia de ensinar os alunos de que apenas podem fotografar as suas comunidades. Só podem fotografar pessoas negras se forem negros, e isto também é levar a um outro extremo. 

O que temos que ensinar é: se querem fotografar uma coisa, que o façam de forma não condescendente, que saibam usar as suas formas de expressão em colaboração com as pessoas, sem um comportamento de superioridade ou de quase total condescendência. É muito possível fazerem e trazerem uma visão diversa, tal como também é preciso a visão de alguém da comunidade local. As duas coisas têm que existir e são possíveis. É muito importante haver cada vez mais diversidade e procurar pessoas com vozes de dentro, que têm trabalhos e que pertencem às comunidades. 

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exposição jamaika

Agora, é importante também saber que, como homem branco, é possível trabalhar nestes temas e é preciso ter a consciência do tal privilégio e de, em algum momento, tudo isto ser perigoso. O caminho, e tenho tentado procurar isso, é encontrar as duas coisas: o facto de eu não ser do Bairro da Jamaica, nem negro, nem sofrer de racismo de forma nenhuma, mas, por outro lado, saber como posso usar a minha existência como pessoa externa para fazer um trabalho digno,humano, íntimo e algo diferente sobre o bairro. 

Acima de tudo, ser o ouvinte e o fio condutor dessas comunicações que vão existindo, e isto permite-te ser uma espécie de ultra-objectivo. As pessoas olham-te em função do que estás a fazer e precisas de criar uma série de recursos,  porque essas decisões de uma forma mais ou menos involuntária podem influenciam a vida das pessoas.