Antirracismo

A história do movimento negro em Portugal é longa, mas foi reprimida e silenciada – até agora

A partir de 1911, ativistas negros fundaram organizações e jornais para combater o racismo. Assim nasceu o movimento negro em Portugal, mas poucas pessoas sabem das suas origens e como se desenvolveu, dos seus sucessos e erros. Foi para resgatar esta história que Cristina Roldão, José Augusto Pereira e Pedro Varela vasculharam inúmeros arquivos. O resultado é o livro Tribuna Negra.

Entrevista
18 Maio 2023

Contradição, repressão e silenciamento. A primeira geração do movimento negro em Portugal foi profundamente marcada por cada uma destas palavras. Em 1911, a I República tinha sido proclamada poucos meses antes e, na efervescência revolucionária, ativistas negros juntaram-se em organizações e redações para combaterem o racismo. Acreditaram no espírito dos ideais iluministas e republicanos, de que os negros finalmente teriam direitos iguais aos brancos. Estavam enganados.

A elite branca portuguesa proclamava “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, mas esses ideais nunca chegaram às antigas colónias. Bem pelo contrário, tropas coloniais adentraram por Angola, Moçambique e Guiné massacrando e espoliando negros para expandir o domínio colonial. O poder político republicano chamou-lhes eufemisticamente “campanhas de pacificação”, destruindo quem fazia frente ao domínio de Lisboa. O movimento negro, então composto sobretudo por homens negros da pequena burguesia, viu-se numa situação algo contraditória: defendeu o império colonial – principalmente quando era internacionalmente criticado por causa dos trabalhos forçados ou se via no horizonte a cobiça de outros impérios – enquanto sofria racismo e dominação colonial. Não foi uma particularidade portuguesa, aconteceu também com outros movimentos negros em impérios coloniais.

Essa geração construiu várias organizações e jornais, alguns dos quais duraram vários anos, defendendo direitos para as populações negras, lutando contra o trabalho forçado, denunciando as limitações à mobilidade social, exigindo mais infraestruturas nas antigas colónias (escolas, hospitais) e, no palco internacional, promovendo o pan-africanismo. O combate ao racismo era transversal. Chegou-se a formar um Partido Nacional Africano e o seu objetivo era claro: fundar uma espécie de representação na metrópole do que se passava nas antigas colónias, para fazer pressão junto do Estado na metrópole.

Este movimento heterogéneo sofreu cisões, com as suas organizações a multiplicarem-se na luta contra o racismo, e houve aproximações à esquerda da altura, sofrendo depois com desilusões. Ao mesmo tempo, tiveram de suster a repressão da Ditadura Militar, a partir de 1926, e depois do Estado Novo, com a sistematização da dominação colonial. Esta primeira geração lançou as sementes, inclusive pelos seus erros, para as gerações que se seguiram e que deram origem à luta de libertação do domínio colonial português em África. As páginas que este movimento imprimiu durante décadas foram relegadas para o esquecimento nos arquivos do Estado português, ainda dominados pela organização colonial.

Qualquer sujeito político precisa, antes de mais, de criar uma identidade cultural, social e programática e resgatar a sua história é um passo essencial nesse caminho. Foi com este pano de fundo que a socióloga Cristina Roldão, o historiador José Augusto Pereira e o antropólogo Pedro Varela vasculharam inúmeros arquivos para contarem a história do movimento negro entre 1911 e 1933. O resultado foi o livro Tribuna Negra – Origens do Movimento Negro em Portugal (1911-1933), publicado pela Tinta-da-China.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui. 

Um dos objetivos do vosso livro é contribuir para acabar com o silêncio sobre o primeiro movimento negro português, que existiu entre 1911 e 1933. Como é que este silêncio se estabeleceu?

Cristina Roldão: O silenciamento no arquivo dá-se em diferentes etapas da sua constituição. É mais difícil para os povos mais oprimidos deixarem fontes, documentos, registos que perdurem no tempo e que cheguem até nós. Depois há a questão da categorização dos nossos arquivos, muito orientados para uma história branca e eurocêntrica de Portugal.

Por exemplo, mais de uma dezena dos jornais [que consultámos] são de Lisboa, não só duraram imenso tempo como os  seus organizadores estão em Lisboa e são entendidos como parte da história de África. Muito bem, mas eles também fazem parte da história de Portugal. Então, esse silenciamento do arquivo dá-se nessas fases, e, depois, claro, por algo que [o antropólogo] Michel-Rolph Trouillot cunhou: a significação retrospetiva. A forma como questões do presente vão iluminando determinados eventos na história e não outros. Isso já acontece fora da academia, mas o arquivo é convocado. Vai ganhando enviesamento. A ideia de Portugal branco e imperial do Estado Novo trouxe importantes limitações.

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Tribuna Negra

José Augusto Pereira: Os arquivos reproduzem as lógicas das instituições e dos períodos históricos a que se referem. Tratando-se de arquivos que lidam com realidades geradas pelo colonialismo, essas questões tornam-se mais presentes. Sendo o colonialismo uma forma de opressão, o arquivo colonial é um espelho deformado dessa opressão. Um exemplo: aqui em Portugal temos um Arquivo de História Ultramarino que reproduz a forma de funcionamento do Ministério das Colónias e do Ministério do Ultramar. É muito difícil conseguir-se construir a história das pessoas oprimidas, das pessoas de baixo.

Pedro Varela: Uma das coisas interessantes em relação a esta geração (e como a história até agora lida com ela) é ter sido fundamental na I República. Houve dois deputados negros na I República, pessoas que estiveram na esquerda daquele período e que tiveram algum destaque, nomeadamente João de Castro e Mário Domingues, mas na história da I República nunca aparecem. Normalmente só aparecem na História vinda de África. Tentámos mudar a seta: "estas pessoas vivem aqui, estão colocadas aqui". O silenciamento é isso: como se faz tanta história sobre Portugal e estas pessoas nunca estão lá.

Cristina Roldão: Apanhamos neste período [1911-1933] o início da I República, o golpe militar e o arranque do Estado Novo. O colonialismo era uma coisa transversal a estes dois regimes: a I República reforçou [a colonização portuguesa em África] com as campanhas de ocupação e estava vinculada a uma ideia imperial, o que vemos também no Estado Novo. É interessante termos deputados e organizações [antirracistas] ao mesmo tempo que há a entrada dos canhões em África. Depois, no Estado Novo, é o culminar do ato colonial.

Sobre a história colonial muito já foi escrito. Sendo académicos, porque demorou a academia tanto tempo para se focar nesta história oculta?

José Augusto Pereira: Não acho que a academia tenha demorado tempo. Colocaria a questão de um outro ponto de vista: a luta contra o racismo não é de agora. O que este livro procura demonstrar é que a luta contra o racismo, as manifestações políticas e a crítica ao colonialismo andam de mãos dadas. Tudo isto para dizer o quê? A academia foi pressionada de fora para se debruçar sobre estes assuntos, foram as mobilizações sociais de cariz internacionalista...

Repara, W.E.B. Du Bois é um académico, um sociólogo e um ativista político. Já na sua altura temos a mobilização social e política a puxar a necessidade de a academia estudar as realidades para as transformar. O que se passa agora é que o movimento social, no caso concreto em Portugal, tem vindo a chamar a atenção para uma série de realidades que a sociedade portuguesa não quer discutir; e a academia foi forçada a pegar no assunto. Também é importante dizer que este livro não foi financiado por nenhum projeto de investigação científica, foi escrito nos intervalos das atividades centrais de cada um de nós, para as quais somos financiados. 

É importante sublinhar isto: muito do trabalho da academia é feito de forma gratuita e em condições muito graves de precariedade. Além disso, duas das pessoas envolvidas neste livro são racializadas, então há ainda mais dificuldades. Nesse sentido, foi feito nas margens da academia, apesar de ter sido feito por três académicos. 

Cristina Roldão: Não sinto que seja propriamente a academia que se esteja a abrir. Uma coisa é falar da história da escravatura em Portugal e de pessoas negras, mas o que se está realmente a contar é a história da escravatura ou do colonialismo português. São trabalhos críticos importantes, ninguém está a dizer que não importam. Criticam o colonialismo, há pessoas negras nessa narrativa, mas é uma história do colonialismo português, das suas violências, das suas contradições. Não é uma história das pessoas negras. O nosso livro traz isso, ou procura trazer, porque não se consegue romper [de imediato] com o eurocentrismo. Foi muito importante ler autores negros e não o digo por serem negros, mas por procurarem construir uma teoria, que leve em conta os seus lugares no mundo para entender e problematizar o que se passa à nossa volta.

O racismo, o capitalismo e as questões de género estão profundamente articulados. Esse é um olhar que nós trazemos e, como o José estava a dizer, somos da academia, muito do material e da fórmula tem a ver com a academia, mas é um trabalho que deve muito aos avanços de conhecimento que o movimento social em Portugal, e a nível internacional, tem criado. Não é por acaso que este livro aparece agora e não há 20 anos. 

Fazer uma história sobre as pessoas negras, sem sujeitos negros implicados na construção dessa história, é algo que tem de deixar de acontecer na academia portuguesa. Haverá exceções, mas o reconhecimento que precisamos não é o “vamos dar uma oportunidade aos investigadores negros”, ainda que seja importante, mas sim que a academia precisa deles e das suas tradições intelectuais de pensamento para se descolonizar. Há todo um aparato dentro e fora da academia que exclui as pessoas negras da produção de conhecimento académico sobre realidades que são as suas. Precisamos de avançar nesse aspecto. Há grandes dificuldades em, por exemplo, assumir a necessidade de quotas étnico-raciais na academia ou no acesso ao ensino superior. 

Pedro Varela: Uma das nossas referências é Mário Pinto Andrade. Um dos seus principais livros foi editado postumamente em Portugal: Origens do Nacionalismo Africano. Ele foi um anticolonialista militante, foi intelectual, sociólogo, historiador, mas quase não existe na academia portuguesa. Existe nos Estudos Literários e nos Estudos Africanos, mas mesmo assim é uma pessoa muito esquecida para a dimensão do seu trabalho. Deveria fazer parte do cânone da história portuguesa. 

O movimento negro focou-se mais na dita metrópole do que em África ou nas antigas colónias, pelo menos foi essa a ideia com que fiquei. Há duas ou três fases em que se foca mais em Lisboa, ou seja, uma elite são-tomense vem para a metrópole, estudar e a partir daí começa a criar jornais, organizações, e, apesar de haver uns académicos que viajam entre Portugal e África, há muitos que ficam em Portugal continental. Como se formou o movimento negro e quais as suas principais caraterísticas neste período?

Cristina Roldão: É importante dizer que, por exemplo, a Liga Africana é uma organização que federa várias organizações do espaço ocupado por Portugal. Portanto, quando lemos os jornais lemos muitas reivindicações que têm que ver com o trabalho forçado e as limitações à mobilidade social de uma certa classe média negra. É um movimento sempre em rede nos espaços ocupados, na diáspora e a nível internacional, com o pan-africanismo e a fase da liderança de Du Bois. São particularmente internacionalistas na prática e na sua condição, porque estão em Lisboa, mas as suas famílias são de classe média, média alta. Vêm de famílias mais ligadas à propriedade, ao capital económico, a propriedades de plantações em São Tomé, a profissionais liberais, ao funcionalismo público. 

Não havia uma concentração em Lisboa, ou foi só num período inicial?

Cristina Roldão: Como pessoas eles estão em Lisboa, mas enquanto movimento pensam em como conectar-se ao debate do pan-africanismo com a UNIA [Universal Negro Improvement Association]. Também querem que o que se passa em Angola comunique com o que acontece em Cabo Verde. Ayres de Menezes é dos primeiros a dizer: "é preciso criar um partido nacional africano". Como se fosse uma espécie de representação na metrópole do que se passava nas colónias, para fazer pressão junto do Estado na metrópole. Mais tarde, ele diz: "para quê estar aqui quando está tudo por fazer?". Tudo por fazer quer dizer: criar organizações e mobilizar [nas colónias].

José Augusto Pereira: Ao folhear a imprensa percebe-se claramente que as reivindicações e as realidades retratadas reportam-se a factos e a pautas que surgem num contexto colonial. Há uma circulação de ideias, de aspirações políticas, de pessoas entre os territórios ocupados por Portugal e Lisboa. Procurámos dar essa ideia. O nosso propósito foi falar destas organizações em Lisboa e das reivindicações de teor antirracista absolutamente inéditas feitas aqui em Portugal e nas colónias. Só o Mário Pinto Andrade fala disso.

"É interessante termos deputados e organizações [antirracistas] ao mesmo tempo que há a entrada dos canhões em África. Depois, no Estado Novo, é o culminar do ato colonial", disse Cristina Roldão.

Pedro Varela: Falamos de três fatores para o surgimento do movimento: o que já acontecia em África com organizações, o internacionalismo negro, e a I República. Foram fundamentais para a origem deste movimento e para entendermos o que foram os anos daqueles ativistas. A mobilização política que já existia em África, nomeadamente a resistência de vários povos. A existência de organizações semelhantes àquelas que havia em Lisboa, que já tinham muita força em São Tomé e em Angola. Muitos dos ativistas que conhecemos vinham de São Tomé e já deveriam ter experiência com organizações. Havia o contexto do internacionalismo negro. O pan-africanismo é fundamental, por um lado, o contexto da I República, de um ambiente revolucionário, de criação de associações e de imprensa, vai ser uma das bases para esta geração.

Em termos de caraterísticas, quais é que apontariam como as mais importantes?

Cristina Roldão: São sobretudo homens, embora para o final acabemos por encontrar sinais mais visíveis de mobilização feminina dentro do movimento, com a Georgina Ribas e outras mulheres negras. Mas [os homens] vêm de um sector muito particular, essa tal pequena burguesia negra, uma classe intermediária que está numa posição muito contraditória. Ao mesmo tempo que têm um privilégio económico face ao resto da população negra, também não conseguem gozar das mesmas vantagens que a população branca da sua condição social. Exemplo: a progressão em determinado tipo de carreira ou o acesso a empréstimos nos bancos quando as coisas corriam mal. Isso foi uma marca muito forte desta geração, e até do seu discurso.

Pensando na geração que vem a seguir, na de Mário Pinto Andrade e Amílcar Cabral, vai preconizar a ideia do suicídio de classe e considerar que a classe é um impedimento brutal para esta intelligenzia, pois estava numa posição de corrente de transmissão do poder. Precisava, portanto, de romper do ponto de vista de classe, da reafricanização, que inclui várias coisas, desde logo reconhecer-se como negro e não querer ser branqueado.

Esta primeira geração tinha coisas interessantes nos seus jornais: deu conta das mobilizações do feminismo pequeno-burguês branco e até o apoiou, mas depois há pouca referência à mobilização política de mulheres negras nos congressos. Dedicou ainda páginas a criticar a exploração colonial, as plantações, a violência física, a apropriação, a expropriação, de propriedade, tudo isso...

Sobre as mulheres negras, só mesmo no final, já em 1929/1930, é que aparece a Liga das Mulheres Africanas, por exemplo. Portugal e o Império Português têm algumas particularidades, desde logo a sua posição semiperiférica. Mas também a combinação da opressão colonial com o fascismo, que trouxe particularidades às formas de opressão e às possibilidades de organização política. 

A primeira geração do movimento negro defendia a permanência das colónias no império. Como foi perceber que assim foi?

José Augusto Pereira: Esta geração de ativistas adota uma forma de politização que se está a reafirmar em novos termos, com as campanhas de ocupação militar [em Angola, Moçambique e, mais tarde, Guiné-Bissau] e com a realidade em São Tomé e Príncipe. Antigos proprietários negros estavam a perder a posse das suas terras para proprietários brancos oriundos da metrópole e que tiveram o contributo decisivo do Banco Nacional Ultramarino. Isso causou descontentamento entre muitas das pessoas letradas que viviam em contexto colonial e que estariam numa certa posição de privilégio.

Depois, muitos destes ativistas foram conquistados por um ideário republicano que radica na Revolução Francesa, por ideias iluministas de modernização, através de um entendimento que hoje criticamos. Acharam que conseguiriam a sua emancipação. Na I República tornou-se notório que esta surgiu como um projeto de cidadania ou com a promessa de cidadania para o conjunto das pessoas residentes em Portugal e nos territórios ocupados em África. A República não cumpriu essas promessas. Nem podia cumprir, porque ao mesmo tempo tinha uma campanha de ocupação militar que submetia [essas pessoas] pela força, pela violência, pela morte e pela produção de ideologias de opressão e de exclusão.

Era nestas encruzilhadas que esta geração se encontrava, iludida por estas promessas, mas a sentir na pele o que se passava em São Tomé e Príncipe, as campanhas militares de ocupação em Angola, Moçambique e na Guiné, as fomes em Cabo Verde, a transferência de recursos dos territórios ocupados para Lisboa. Tudo sem que houvesse contrapartidas a nível de criação de infraestruturas, de escolas, de uma série de mecanismos que o Estado pudesse pôr à disposição das populações.

É neste contexto que devemos entender essas posições ambíguas desta primeira geração: critica aspetos do colonialismo enquanto defende o colonialismo português quando [este] era atacado internacionalmente. Agora, isso não a livrou da perseguição do colonialismo durante a I República nem durante o Estado Novo. Aliás, em 1926, com a Ditadura Militar, houve um acentuar da repressão e depois a sistematização de todo um sistema de opressão colonial.

As influências internacionais. Houve o III Congresso em Lisboa, mas que impacto tiveram na evolução da condenação do colonialismo ou para a crítica ao império português?

José Augusto Pereira: Naquela época, Du Bois não defendia o princípio da autodeterminação ou da independência das colónias, mas a história é outra a partir de 1945. Aliás, ele está em 1945 nos Congressos pan-africanos que defendem a autodeterminação e a independência, mas naquela altura não. Defendia reformas no sistema colonial que pudessem colocar pessoas negras na administração colonial. Com Marcus Garvey já era diferente, ele defendia um retorno das populações africanas da diáspora a África, o que pressupõe que essas populações deveriam ser autogovernadas. Daquilo que pudemos perceber, aquilo que se defende em Portugal está sintonizado com o que se defende fora de Portugal por organizações negras ligadas a outros impérios coloniais. Este livro procura mostrar que as pessoas que dirigiam o movimento negro estavam absolutamente a par do que se passava no mundo, não é aquilo que geralmente as elites em Portugal gostam de dizer: "as coisas chegam a Portugal com dez anos de atraso".

Pedro Varela: A geração que estudámos não defendia a autodeterminação, a não ser o Mário Domingues. 

Que depois recuou mais tarde... 

Pedro Varela: É importante dizer que Mário Domingues só entra no movimento negro que estudámos numa fase tardia. Na fase inicial, quando ele defende a autodeterminação, está no jornal A Batalha e no movimento anarquista. Olhamos hoje para a autodeterminação como algo óbvio, mas na altura não era assim. Du Bois não a defendia na altura, Blaise Diagne não a defendia e Marcus Garvey tinha um outro projeto que não coincidia tanto com o movimento. A única referência é George Padmore, que era negro, estava ligado à Internacional Comunista, e a partir dos anos 1930 começou a fazer um trabalho nas organizações negras na Europa, defendendo a autodeterminação. As organizações de esquerda em Portugal também não defendiam a autodeterminação, nem o Partido Socialista Português [1875-1933], nem o Partido Comunista. No espaço político português, só no movimento anarquista havia a ideia de autodeterminação. 

Cristina Roldão: O pan-africanismo ou os congressos pan-africanos foram uma tentativa de combinar e organizar gente muito diferente e de contextos muito distintos. Não há uma sintonia completa entre o que Du Bois pensa como intelectual e político e as reivindicações dos Congressos. Ele e os congressos pan-africanos estavam a tentar combinar uma coisa já de si difícil e que era um grande avanço: não é possível libertar a diáspora do racismo se não libertarmos África e os africanos do colonialismo. 

Olhando sobretudo para a Liga Africana, da qual temos mais informação sobre as suas ligações internacionais, ela acompanha e participa nos Congressos, indo ao II Congresso e recebendo em Portugal o III Congresso Pan-africano. Nota-se perfeitamente que tem uma relação muito estreita com uma certa elite europeia negra de altos funcionários em cargos políticos que olham para a realidade dos afro-americanos como uma muito distinta da sua, enquanto os afro-americanos também olham para estes negros deputados e proprietários de uma forma igualmente distinta.

"Fazer uma história negra, e ter ou não sujeitos negros implicados na construção dessa história, é algo que falta reconhecer na academia portuguesa.Há todo um aparato da academia que exclui as pessoas negras da produção de conhecimento sobre realidades que são as suas", criticou Cristina Roldão.

Pedro, referiste que há um momento em que o movimento antirracista internacional tinha relações com a Internacional Comunista na segunda metade da década de 1920. O Partido Comunista Português foi criado em 1921 e também existia o Partido Socialista Português. Qual era a relação entre a esquerda e o movimento negro?

Pedro Varela: Há várias personagens deste movimento negro que vão pertencer à esquerda portuguesa da altura. Temos João de Castro, que vai ser deputado pelo Partido Socialista Português, o partido histórico da Internacional Socialista, e que depois sai no momento que levou à fundação do Partido Comunista, mas sem ter feito parte do partido. Mário Domingues foi uma personagem central do anarquismo naquela época mas, mais uma vez, o silenciamento… Pôs o anticolonialismo n’A Batalha. Essa relação existiu, mas, ao mesmo tempo, isso remete para a atualidade, há uma certa desilusão com essa esquerda.

Indo além do livro, como caraterizam hoje a ligação entre o movimento antirracista e a esquerda parlamentar e extra parlamentar? 

Cristina Roldão: O livro mostra alguns impasses que não têm sido ultrapassados. Em diferentes momentos históricos, há a aproximação de movimentos políticos progressistas ou de esquerda orientados para as questões negras, mas isso parece esgotar-se em algum momento por contradições internas. Pensando na realidade portuguesa dos últimos anos, temos figuras importantes do movimento antirracista ligadas aos partidos maiores de esquerda que estão em conflito e a sair desses partidos. É algo interessante de ver naquela altura, é interessante ver agora quando olhamos para um discurso do PS, que, por exemplo, ao mesmo tempo que lança o primeiro plano nacional de combate ao racismo, diz não existir racismo estrutural em Portugal.

Não há um posicionamento firme sobre a existência de racismo em Portugal, no seu formato estrutural e como parte das relações de desigualdade no país, como acontece com o género e a classe. Parece que nunca mais avançamos. Há sempre um lusotropicalismo. Pode até ser o mais bacoco, que diz que não há racismo nenhum, ou aquele um bocadinho mais sofisticado que diz que até existem umas maçãs podres. Houve questões e disputas que estiveram em cima da mesa e que mostraram as dificuldades mais à direita, obviamente, mas também à esquerda. 

Que disputas, por exemplo?

Cristina Roldão: A recolha de dados étnico-raciais na campanha pela nacionalidade, a questão da brutalidade policial nos bairros com as ditas Zonas Urbanas Sensíveis (ZUS). A falta de representatividade negra nos partidos. Tivemos três deputadas negras em partidos de esquerda e isto num período de ascensão da extrema-direita. 

José Augusto Pereira: É uma relação difícil que gera ilusões e desilusões. Tenho observado que alguns partidos com uma lógica mais parlamentar tentam incorporar nas suas listas pessoas racializadas. É uma forma de capitalizar com a mobilização visível nas ruas, mas as lógicas de funcionamento do sistema político, económico e social geram desilusões que depois produzem afastamento. Além das posições historicamente equívocas de organizações à esquerda sobre a questão colonial e à racial.

É preciso ter muito cuidado quando se faz a história das ligações de organizações de esquerda com a luta anticolonialista. Se é certo que há organizações que podem reivindicar, hoje, posições favoráveis à autodeterminação a partir de um determinado período histórico, essas reivindicações trazem também consigo contradições e desentendimentos com os militantes anticolonialistas que faziam a luta contra o colonialismo. Está por fazer uma história crítica das relações dos movimentos políticos à esquerda com o anticolonialismo, bem como uma história das relações das organizações da esquerda e da direita com o racismo.

À direita, a admissão de dirigentes e de militantes políticos faz-se no pressuposto da negociação de que "tu não falas sobre racismo" para entrares. Ou então o racismo é tratado sob o viés do lusotropicalismo. À esquerda, as coisas são mais complexas. Toda a luta contra o racismo tem de ser feita agora, lutando por conquistas na situação presente, mas temos de integrar uma outra forma de organização social que permita que sejamos colocados em condições de dignidade e de igualdade, e não neste formalismo do voto e de direitos políticos consagrados na lei mas que não têm efetivação na prática. 

George Padmore é um exemplo histórico de uma saída de uma organização de esquerda. Estava na III Internacional e defendia o princípio da autodeterminação, mas viu-se confrontado com uma série de contradições e de recuos. Não será a única explicação, mas terá sido decisiva para a sua desmoralização e saída da III Internacional. É um exemplo e haverá muitos outros. 

Falaram por exemplo da inclusão de pessoas racializadas nas listas dos partidos. Se formos a reuniões de partidos não vemos pessoas racializadas. Porque é que PCP e Bloco não conseguem chegar às pessoas racializadas, seja em termos de militância ou de implantação social?

Cristina Roldão: Quem participa nos partidos e está normalmente nas organizações partidárias não são todas as pessoas da sociedade portuguesa. As elites políticas não são extraídas arbitrariamente de todas as classes sociais da sociedade. Se colocarmos aí a questão racial, tanto pior.


"Este livro procura mostrar que as pessoas que dirigiam o movimento negro estavam absolutamente a par do que se passava no mundo, não é aquilo que geralmente as elites em Portugal gostam de dizer: 'as coisas chegam a Portugal com dez anos de atras'", salientou José Augusto Pereira.

A representação política implica também haver sempre um ponto em que tem se defender uma determinada visão de identidade nacional, e a identidade nacional e a narrativa sobre quem são os portugueses é profundamente colonial. Mesmo naqueles discursos mais humanistas, no melhor sentido da palavra, vem aquela ideia da missão histórica, dos portugueses que sempre tiveram a capacidade de dialogar. O lusotropicalismo entra-nos pela porta e pela janela. Forças políticas que precisam de votos têm de agradar uma certa maioria, não de a confrontar com o passado colonial, com a guerra Colonial e o que foi feito, com a escravatura em Portugal.

Trabalho muito com os manuais escolares e é claro que há uma narrativa colonial sobre o Estado-nação e a história de Portugal.

A mitologia portuguesa...

Cristina Roldão: Sobre quem nós somos. Vai fundo não só no simbólico, mas nas relações económicas, nas relações políticas, na CPLP, na lusofonia. 

José Augusto Pereira: O mais notório é que todos os partidos, e falo dos com maior representação parlamentar, ficam reféns de uma lógica eleitoralista que os leva, no momento de escolher, a optar por falar para aquilo que entendem ser a maioria das pessoas. A conceção que têm da maioria das pessoas que vota está baseada precisamente numa conceção hegemónica do que é este país, país que não reconhece o seu passado diverso feito por pessoas vindas de várias proveniências e não exclusivamente brancas e europeias. 

Depois tem que ver com a forma como o sistema político se organiza: dá a ideia de que representa e fala por toda a gente, quando na verdade todos os partidos representam de alguma forma interesses baseados em classes sociais. Talvez o problema das organizações políticas à esquerda com algum peso parlamentar seja a classe trabalhadora — as pessoas que trabalham, muitas delas racializadas — não estarem suficientemente nas tomadas de decisões.

A esquerda tem um défice de pessoas de baixo, de trabalhadores, de pessoas racializadas, de mulheres, de pessoas da comunidade cigana. Faltam estas perspetivas que têm de estar presentes nas direções dos partidos, para poderem influenciar a tomada de posições políticas. Senão vamos estar sempre neste círculo vicioso: captar pessoas para as listas de deputados quando há ascenso das mobilizações sociais, mas depois remetê-las para o quintal quando se chega às eleições. 

Cristina Roldão: Nos anos 1990, o movimento imigrante estava forte nas ruas. Tivemos Fernando Ka, Manuel Correia, Celeste Correia.. Tivemos. Onde estão essas figuras? Onde está a continuidade dessa aposta? Fica-se sempre entre a inclusão e a cooptação.

Quais são as principais reivindicações do movimento negro de hoje?

Cristina Roldão: Acho que as mais transversais e unificadoras são a [denúncia da] violência policial e o direito à nacionalidade portuguesa para quem nasceu cá. 

José Augusto Pereira: O direito à habitação também o é. Embora seja neste momento uma questão percecionada como transversal à sociedade portuguesa, mas, por força de como o Estado se demitiu de ter políticas públicas de habitação, fez com que se notasse mais a segregação racial ou a segregação dos espaços a nível da formação de comunidades. A construção de casa própria, a defesa dos bairros autoconstruídos, também é importante. 

A direita norte-americana e uma parte da esquerda norte-americana pegou no identitarismo e chegou ao debate público em Portugal. Como veem esse debate do identitarismo?

Cristina Roldão: É uma falsa questão. Como se houvesse mobilizações verdadeiras e depois as outras, identitárias, como se não fossem tão importantes. Quer o movimento sindical, quer os movimentos de extrema-esquerda ou de extrema-direita, todos eles precisam da construção de subjetividade, de sujeitos, todos fazem isso. Esse não é um apanágio do movimento negro.

Outra das coisas que ouço insistentemente, e que não faz muito sentido, é a ideia de que o movimento negro é identitário, porque não atende às condições materiais de vida. Meu Deus! Ser negro tem tudo que ver com condições de vida, de habitação, de violência, de exploração, de desumanização dos seus corpos. Pode não ser colocado exatamente nos mesmos termos que alguns acham que deve ser, como Martin Luther King também dizia: "estão sempre a querer dizer-nos como se faz a luta". O identitarismo parece-me ser uma falsa questão, levantada para não ter de se enfrentar e resolver o problema. Quer dizer, há racismo em Portugal, quotidiano, estrutural, institucional, e é óbvio que Portugal teve dos maiores e mais longos Impérios, teve das guerras coloniais mais longas, teve o maior envolvimento no tráfico transatlântico, não teve movimento abolicionista. Se não houvesse racismo é que era uma surpresa.

José Augusto Pereira: Essa discussão sobre identitarismo está armadilhada e parte de premissas falsas. Constroem uma ideia de país com base em características estritamente brancas europeias. A armadilha começa logo por aqui. Tu tens de construir-te a ti próprio em algum momento do processo de luta, porque de outra forma não vais conseguir identificar quem é o teu adversário, contra o que estás a lutar.

Amílcar Cabral construiu uma identidade guineense e cabo-verdiana em conjunto, sobretudo guineense, tendo em conta uma série de caraterísticas da cultura guineense, para depois congregar esforços dos vários povos da Guiné contra o colonialismo. Não era contra os portugueses, era contra o colonialismo português, como ele dizia. Amílcar Cabral dizia e fazia esta construção de identidade, se é que lhe podemos chamar assim. Não quero confundir isto com a construção de um identitarismo, note-se bem. Ele dizia que era necessário unir esforços e essa união de esforços pressupõe a união de várias identidades.

Portanto, a partir de um determinado momento vai ser necessário arranjar uma síntese que permita construir convergências e alianças, e essas alianças têm de ser construídas com programa político.

Cristina Roldão: O José foi buscar os movimentos de libertação e o interessante, aí, é como a cultura não é tornada uma coisa subalterna, mas um aspeto central do processo de descolonização. Vimos isso na Casa dos Estudantes do Império. 

E o Estado Novo tramou-se, porque eram casas para controlar...

Cristina Roldão: Sim, saiu-lhes o tiro pela culatra. Mas imaginemos então que os partidos e figuras que hoje dizem que o movimento antirracista é identitário, provavelmente pela mesma lógica, diriam: "bem estes movimentos de libertação, eles estão a construir uma identidade africana que não existe, até há pessoas brancas que também cresceram lá, portanto aquilo já nem é bem só negro". São ideias que estiveram presentes, se calhar chamar-lhes-iam identitários, mas como a história e o conflito levou a um desfecho distinto daquele que interessava a Portugal… Hoje são reconhecidos como movimentos legítimos. 

O identitarismo é, então, a arma de arremesso quando a branquitude é posta em causa. Nos últimos anos, talvez nos últimos seis, sete anos, o racismo estrutural e institucional tornou-se muito mais reconhecido, mas o conceito de branquitude ainda causa muita urticária e não é debatido. Acham que este conceito vai ganhar força nos próximos anos?

"Está por fazer uma história crítica das relações dos movimentos políticos à esquerda com o anticolonialismo, bem como uma história das relações das organizações da esquerda e da direita com o racismo", disse José Augusto Pereira.

Cristina Roldão: Não sei, vai depender de como a história decorrer. Os conceitos de branquitude e de lugar de fala remetem para duas coisas. Por um lado, para a necessidade de reconhecer que há uns que têm privilégio e que é necessário que reconheçam que o têm. E, por outro, que os que não têm privilégio possam de forma mais assertiva ocupar espaço. Independentemente das relações que existam, as desigualdades étnico-raciais favorecem determinados grupos e desfavorecem outros e quem está na posição de privilégio numa determinada dimensão normalmente têm grande dificuldade em abdicar.

Se pensarmos em Portugal como tendo uma maioria branca, é muito importante que ela faça avanços no sentido de se conhecer como tal. Por exemplo, uma professora branca tem uma situação de racismo numa sala de aula. Ela tem de entender que está numa posição específica naquele conflito, não só de autoridade perante os alunos que tem na sala, mas também uma posição nas relações étnico-raciais. E isso significa posicionar-se e atuar, o que não é exatamente a mesma coisa se fosse negra ou se não houvesse nenhum tipo de pertença. Não há pessoas acima das relações étnico-raciais. 

Pedro Varela: São debates inevitáveis da branquitude, que é as pessoas brancas perceberem que a sua identidade também foi formada de maneira privilegiada e de domínio na sociedade. O lugar de fala existe no movimento operário. Ou seja, o marxismo também falava disso: uma pessoa que vive de uma certa forma tem uma consciência. Agora, a consciência de um operário oprimido é diferente da de um pequeno-burguês. Então, o lugar de fala, pelo menos para mim, não é só umas pessoas poderem falar, não é isso. As pessoas falam, mas têm de perceber de que posição falam. No caso das pessoas brancas, falam a partir de uma relação de privilégio, construíram-se como seres universais - e as outras como seres estranhos à sociedade. Têm de falar desse lugar e perceber que as pessoas LGBTQIA+, negras, ciganas, têm formas diferentes de ver o mundo.