Lisboa

Habitação: uma problemática em constante mudança

Sónia Alves e Alda Azevedo são investigadoras do Instituto de Ciências Sociais que se dedicam à área da habitação, entre outras coisas. Fazem parte do SustainLis, um projecto que avalia as mudanças no centro de Lisboa e que está agora a organizar um ciclo de seminários. Nesta entrevista, partilharam com o Setenta e Quatro algumas ideias sobre o complexo tema da habitação.

Entrevista
14 Abril 2022

As questões da habitação encontram muitas vezes respostas no mundo académico. Não é de agora e assim sempre será. A academia é onde questões como a habitação podem ter espaço de debate e de análise mais profunda e abrangente. Sendo uma realidade em constante mudança de paradigmas, implica uma permanente avaliação, para a qual as instituições governamentais nem sempre têm a capacidade ou distanciamento suficiente para o fazer. É por isso essencial manter este diálogo entre academia e decisores políticos, que no caso da habitação é cada vez mais necessário. 

Foi sobre esta questão e outros temas que o Setenta e Quatro falou com as investigadoras Sónia Alves e Alda Azevedo. As interrogações sobre habitação são sempre muitas, principalmente num país em que algumas áreas metropolitanas atingiram “uma exuberância de preços”, como refere uma das entrevistadas. Entender isto é também entender a forma como o passado moldou o presente, e quais foram os momentos de ruptura ou decisões que criaram entropia.  

Nos últimos quatro anos, um dos projectos que estas investigadoras dirigiram é o SunstainLis, que reúne investigadores de várias áreas: da demografia à sociologia, arquitectura ou geografia. Na sua maioria pertencem ao ICS e ao Instituto de Geografia e Ordenamento do Território (IGOT), mas há também elementos de outras instituições da Universidade Nova, da Faculdade de Coimbra ou da Universidade de Oxford. É um projecto financiado que começou em 2018 e que está a terminar. Durante abril e maio, está a decorrer um ciclo de seminários do SustainLis, ao qual o Setenta e Quatro se juntou como Media Partner. 

Os temas que estão a passar por estes seminários são vários mas encontram foco nas metamorfoses de Lisboa, muitas vezes estabelecendo comparações com outras cidades. Imigração e populações vulneráveis, reabilitação urbana, regulação de arrendamento privado e governação dividiram-se em quatro sessões que juntam investigadores que se dedicam à área da habitação. 

Nesta conversa, falámos sobre algumas destas questões, e de que forma a habitação condiciona o quotidiano das cidades e das comunidades. Paralelamente, publicamos também durante estes meses uma série de ensaios de alguns oradores que participam no seminário.

Gostaria de começar por falar do Plano de Recuperação e Resiliência. Vai permitir o maior investimento de sempre na habitação. De que forma se vai refletir nas soluções mais urgentes?

Sónia Alves: O PRR surge pelo motivo que nós sabemos, para a recuperação de uma crise económica causada pela pandemia, mas foi de facto uma oportunidade para o governo colocar as questões de habitação e procurar com este financiamento da Comissão Europeia dar resposta aos problemas de habitação indigna que tinham sido identificados pelos municípios, num total de 26 mil, se não estou em erro, de situações graves.

Inicialmente era para haver um acordo de recuperação município/governo para financiar a habitação que vier a ser construída, para pôr fim a estas condições habitacionais indignas, mas com o PRR abre-se oportunidade de ser um financiamento a cem por cento, até haver dinheiro. 

Acho que esse anúncio, feito pelo ministro da Habitação, encontrou os municípios sem contar com isso. Foi uma excelente notícia, mas por outro lado levantou algumas críticas sobre qual a estratégia de oferecer o financiamento a cem por cento, para os municípios que cheguem mais depressa. Havia municípios que já tinham feito a estratégia local de habitação, há outros municípios que ainda não fizeram, e confesso que não estou a acompanhar o processo.

O que me parece evidente, pelo trabalho que temos feito de investigação, não no âmbito do PRR, mas no do que foi o Plano Especial de Realojamento (PER), dirigido para as áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto nos anos 1990 e 2000 e o mais importante financiamento para pôr fim às barracas, sabemos que as respostas municipais são muitas vezes não articuladas territorialmente. E, portanto, havia estratégias a nível do município que não tinham uma escala mais abrangente, e que podiam ter tido. Percebeu-se também que as respostas focadas só nas condições mais graves, naquela lógica de providenciar habitação social para os mais pobres, de construção rápida e de identificação dos terrenos, às vezes em áreas suburbanas e com uma fraca infraestrutura de equipamentos e serviços, não têm assim muito bom resultado. 

Os municípios são todos muito diferentes do ponto de vista dos seus recursos técnicos: há municípios com muitos técnicos, há municípios só com um ou dois que trabalham no domínio da habitação e reabilitação. Acho que devia haver muito mais sessões de esclarecimento, muito mais debate e mais acompanhamento. 

Pessoalmente, tenho visto o trabalho de quem faz a estratégia local do município, internamente ou recorrendo a uma equipa externa: envia para o IHRU, o IHRU demora algum tempo a responder (e de uma forma um pouco burocrática) e só se interessando pelas questões mais ligadas às respostas com necessidades urgentes. Do meu ponto de vista, e de outras pessoas, devia haver logo à partida a nível nacional uma maior articulação entre o Ministério do Planeamento e o Ministério da Habitação, devia haver a definição de princípios de integração espacial da nova habitação. Não queremos criar guetos… 

Alda Azevedo: Portugal tem um problema crónico de despesa em habitação. Em termos do PIB, a despesa em habitação e relacionadas, nomeadamente construção de infraestruturas, é menos de 1%. Este problema crónico faz com que nós estejamos sempre a tentar apagar o fogo, a tentar resolver as situações mais urgentes, deixando sem qualquer resposta as outras situações. 

Quando falamos de programas como o PER, ou o 1º Direito, estamos a falar de famílias que residem em alojamentos de residência habitual não clássica, ou seja, estamos a falar de autoconstrução de barracas, não estamos a falar de pessoas que apenas precisam de mudar de casa. Precisam porque não têm uma casa minimamente digna onde viver. Mas todas as outras questões que existem em Portugal, de sobrelotação da habitação, de privação severa das condições de habitação, não estão incluídas neste PRR, não vão ser respondidas por este grande investimento que chega agora. 

Se a tendência ao nível de políticas continuar muito focada, com toda a razão, nas circunstâncias mais graves, mas sem conseguir uma estratégia de longo prazo, [a situação das] outras famílias, que apesar de terem um tecto onde viver não têm condições mínimas garantidas, continuam por resolver. Este PRR acomoda as 26 mil famílias identificadas em 2018. Potencialmente, todos os dias pode existir uma família que deixa de precisar deste apoio, ou inversamente todos os dias pode existir uma família que entra na situação de passar a precisar deste apoio. Não é um número estático, é dinâmico, como tal os levantamentos não podem ser retratos do momento no tempo. Têm de ser bases de dados de actualização constante. 

"No período da Segunda Guerra Mundial, como nós agora vamos provavelmente atravessar, com falta de recursos para a construção, houve necessidade de não deixar aumentar as rendas, o que passado algumas décadas teve um efeito desastroso", explicou Sónia Alves.

As respostas de instituições como o IHRU têm sido suficientes para obter informações úteis para avaliação?

SA: Tenho experiência no âmbito do financiamento Marie Curie, em que fazia entrevistas em três capitais europeias ( Lisboa, Copenhaga e Londres), com representantes do governo ao nível nacional e local e do sector, com o objetivo de entender qual era o contributo do planeamento para a habitação social e acessível, e para evitar a segregação. 

Tive oportunidade de fazer pedidos de entrevista e de informação em vários países. O que  verifico é que não só o tempo de resposta é bastante diferente, como por vezes nunca nos respondem… Nós, investigadores, candidatamo-nos a financiamento para fazermos investigação, e fazemo-lo na área da habitação porque é um tema que julgamos muito útil, apesar de trabalharmos noutras áreas - de geografia urbana, social - e temos feito um esforço muito grande para fazer investigação aplicada, com algum interesse para as políticas, com vista à sua  melhoria, e daí a nossa preocupação de comparação internacional. 

Tem-nos inclusivamente acontecido que nós perguntamos ao IHRU, na fase de candidatura dos projetos, se querem colaborar connosco na definição de perguntas, se têm informação que nós podemos tratar para conhecermos melhor a realidade, e às vezes não respondem de todo aos nossos e-mails, que é algo surpreendente. O IHRU tem como objetivo executar as políticas do governo e fazer a sua avaliação, criou inclusivamente um observatório com esse objetivo. 

Portanto, o instituto devia ser o primeiro a ter interesse e curiosidade, e dar-nos a mão, porque nós somos a academia, que deve trabalhar com os atores não académicos, como o sector municipal, ao nível dos decisores políticos e executores. É surpreendente a falta de interesse. 

Entretanto, já consegui falar com algumas pessoas que estão lá, que referem a falta de recursos humanos. Sou empática no sentido de perceber, mas de facto há aqui algo de muito errado no papel que o IHRU tem tido. 

Eu estava na Inglaterra quando estavam na fase do Brexit, uma altura em que todas as instituições estavam super ocupadas. Duas semanas depois de ter feito o pedido por e-mail, responderam às minhas perguntas. A mesma coisa na Dinamarca. Tem de haver interesse genuíno para a avaliação das políticas, tem de haver colaboração entre a academia e os decisores, e tem de haver mais debate. Acho que os municípios precisam de mais informação. Por exemplo, os decisores políticos precisam de perceber porque é que um programa não teve a taxa de execução política que eles esperariam. E nós temos muitos exemplos disso, valores que são orçamentados e depois não são executados. Quais são as dificuldades ao nível local, quais são os bloqueios que existem… Nós queremos dialogar e sentimos alguma dificuldade na articulação intersectorial e institucional.

Image
Sónia Alves
Sónia Alves, investigadora do Instituto de Ciências Sociais.

Em relação aos planos não executados, é possível fazer um diagnóstico? Ou seja, corremos o risco de acontecer o mesmo com este PRR?

SA: Um dos mais completos relatórios publicados pelo IHRU sobre este tema, "25 anos de esforço no Orçamento de Estado para a habitação", mostra quais eram as rubricas onde o governo alocou financiamento e qual é que foi executado, e depois até tinha um detalhar de alguns programas. A mim chamou-me particularmente atenção que os programas de reabilitação não tivessem tido a execução esperada. 

No caso do RECRIA, a execução foi baixa, e nós tentámos perceber porque é que era assim. Nos anos 1980 Lisboa estava a cair, o centro histórico estava a cair, havia inquilinos que estavam a habitar em condições péssimas, porque as rendas tinham sido congeladas durante décadas. Os senhorios não queriam investir ou não podiam porque estavam descapitalizados na reabilitação dos imóveis. O governo lança o RECRIA com o objetivo de reabilitar edifícios arrendados com rendas antigas. Face a tal nível de degradação como é que se percebe que o nível de execução tenha sido pequeno? É isso que nós investigadores tentamos fazer. Como fazemos isso? Entrevistando os técnicos municipais. Tem a ver com a forma como o programa foi desenhado. 

O programa permitia o acesso a financiamento numa comparticipação a fundo perdido paga na execução das obras, mas, por exemplo, não permitia o aumento das rendas, portanto os senhorios não se sentiam estimulados para fazer essas obras. Os que se sentiram estimulados, para evitar depois receberem cartas de intimação da Câmara, etc, fizeram-no, e nós fomos seguir alguns dos edifícios reabilitados para ver como estão hoje. Olhando para o desenho de um programa, nós tentamos perceber como é que foi a sua execução e se atingiu os objetivos que queria atingir. 

A análise comparável internacional permite-nos ver à mesma data o que estava a ser feito  noutros países. Permite-nos ver a problemática do congelamento das rendas depois da II Guerra Mundial, como foi resolvida numa segunda geração nos outros países. Verificamos que há grandes diferenças. Nos outros países regula-se a renda, não se deixa aumentar, mas dá-se um subsídio aos arrendatários que precisam, por isso consegue-se dinamizar o sector de arrendamento. Isto são apenas alguns exemplos para lhe dizer que mais informação é super importante para avaliarmos se a comparticipação a fundo perdido é a melhor solução, ou se é um apoio à renda. 

AA: O IHRU é um caso particular por ter recursos humanos muito limitados. É muito difícil obter dados, mas isso acontece também noutras entidades. Sobre muitos programas aquilo que normalmente é divulgado é o valor orçamentado e o valor executado. Para quem faz investigação, para quem quer perceber melhor quem são os beneficiários destes programas, em que medida estes programas beneficiaram as suas vidas, precisamos de mais. Precisamos saber quem foram as pessoas que concorreram a esse programa, quem é que se candidatou, quais as características demográficas.

Por exemplo, no Porta 65, quem são os jovens que se candidatam, como é que estão distribuídos no país, qual é a idade média, se são sobretudo jovens que querem um arrendamento e que vivem sozinhos ou que vivem em casal, com filhos ou sem filhos. E, destas candidaturas, quantos é que efetivamente foram aprovados. Assim conseguimos perceber qual o impacto destes programas no dia-a-dia das pessoas. Só estes dois grandes números são insuficientes. 

Quando há pouco a Sónia se referia a este relatório, ele destaca-se precisamente por olhar para um período longo: 25 anos da habitação no Orçamento de Estado. Nós devíamos ter isto com uma atualização constante, com séries cronológicas longas.

O IHRU tinha um separador na sua página web, que toda a gente podia consultar, que era o Observatório da Habitação, o sítio onde estas estatísticas podiam estar alocadas para qualquer pessoa poder consultar. Esse separador está vazio. Isto é ilustrativo da falta de acessibilidade à informação. 

Image
Alda Azevedo
Alda Azevedo, investigadora do Instituto de Ciências Sociais | Foto de Alexandre Gaspar

Quais são as situações mais urgentes que referia há pouco?

SA: As estratégias locais de habitação que vão definir as prioridades para alocar esse dinheiro são definidas ao nível local, e é ao nível local que tem de ser feita essa identificação, porque um município em perda demográfica no interior é completamente diferente de um município como Lisboa, com outro tipo de problemáticas. 

Em primeiro lugar, as estratégias de habitação têm de ser feitas ao nível municipal, e de facto podem definir as suas prioridades e como vão alocar. Desse ponto de vista é crucial que as estratégias sejam descentralizadas. Até acho que tem de ser o mais bottom-down possível, mas acho que há um papel do IHRU ou de qualquer instituto com responsabilidades de promover o debate e o diálogo ao nível do domínio da habitação. Tem de haver mais trabalho horizontal para apoiar os municípios. 

"Temos feito um esforço muito grande para fazer investigação aplicada, com algum interesse para as políticas, com vista à sua  melhoria , e daí a nossa preocupação de comparação internacional", disse Sónia Alves.
 

Os problemas de habitação são transversais a todo o país ou são de facto muito diferentes em Lisboa e no Porto?

AA: Há um efeito, de que o meu colega Paulo Rodrigues falava esta semana... em vez de bolha imobiliária ele falava de exuberância de preços. Há efetivamente uma subida de preços a partir do final de 2016 que não é acompanhada da subida dos rendimentos das famílias portuguesas. É por isso que isto se torna um problema. 

Além desta subida generalizada, sabe-se que a subida é maior nas principais cidades e nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto. Há um crescimento muito acentuado e depois há efeito de contágio aos municípios circundantes. Passa a ser um problema sobretudo das áreas metropolitanas e das principais cidades.

Lisboa foi a cidade europeia com mais aumentos entre 2013 e 2018. Isso muda uma cidade. 

AA: Muda uma cidade e o acesso à cidade. Muda a população que reside na cidade, o tecido social vai alterar-se. Altera-se ao nível dos novos contratos de compra e dos novos contratos de arrendamento. Os preços subiram muito entre 2013 e 2018, mas nós só temos uma série estatística regular produzida pelo Instituto Nacional de Estatística desde o final de 2016 para a compra e do final de 2017 para o arrendamento. Portanto, esses são os números que ao fim ao cabo melhor nos transmitem aquilo que tem sido a evolução. 

O que sabemos é que os novos contratos são afectados por esta questão. Quem comprou antes, quem arrendou antes e mantém o contrato de arrendamento nos mesmos termos, apenas com o aumento da inflação quando foi contratualizado antes desta grande subida, ainda não foi afectado por estas questões. Mas quem passou a procurar casa de 2016 em diante em Lisboa, ou quem quis mudar de arrendamento, sentiu profundamente este aumento. Aí, naturalmente, nenhum de nós compra a casa dos seus sonhos no sítio dos seus sonhos, ou poucos de nós. Compramos aquilo que podemos pagar, e as pessoas acabam por se ir afastando de algumas zonas, deixando a cidade para quem a pode pagar. 

Ou arrendar. 

Ou arrendar. Ainda por cima, com a cultura de casa própria que temos em Portugal, em que 75% da população reside em casas ocupadas em propriedade, aquilo que acaba por acontecer é uma preferência pela compra e muitas vezes tendo em conta as vantagens e desvantagens da propriedade e do arrendamento. Na maioria das situações é mais barato comprar do que arrendar.

SA: Talvez só acrescentasse mais uma coisa. Sobre a pergunta da diversidade a nível municipal, se são todas iguais. Diria que não, obviamente que não, e a análise de dados estatísticos dos CENSOS de habitação, como a habitação vaga...

Que significa...

AA: Alojamentos que não estão ocupados como residência habitual. Podem estar para venda, podem estar para arrendamento, devolutos... 

SA: É importante, porque nós temos alguma habitação em alguns concelhos de municípios interiores que pode estar vaga simplesmente porque a população não encontrou emprego nesses municípios e vai para outros. Nesses casos as soluções ao nível dos instrumentos políticos não passarão pela construção de nova habitação. 

As escolhas dos instrumentos ao nível municipal são  importantes. O de financiamento pode ter como objetivo o apoio à procura ou à oferta. Dou um exemplo: um subsídio à renda que permite às famílias com menor rendimento acederem a uma habitação. Até certo ponto, o Renda Segura da Câmara de Lisboa faz isso, no Porto também. Vão ao mercado de habitação procurar imóveis que vão subarrendar, alocando famílias que não encontram soluções no mercado livre.

Mas o apoio financeiro também pode ser dado à construção, que pode ser de reabilitação. Aqui é o apoio à oferta, para ajudar a resolver o problema de habitação por essa via. O próprio sector público pode fazer provisão direta em termos de habitação chamada social, ou acessível. Ou então temos o apoio à reabilitação, como foi este RECRIA, que dava comparticipação a fundo perdido. Esse apoio pode até ser por via de terrenos públicos. A Câmara faz uma parceria. Estão a ser desenvolvidas concessões nesta lógica, já foram desenvolvidas no passado. Há uma colaboração entre o público e o privado. E depois há uma parte aqui que eu acho que se esquece muito em Portugal: a parte da regulação.

Quando se fala da regulação, fala-se muito da regulação das rendas, houve várias gerações de regulação de rendas. Os países que desenvolveram políticas têm tido trajetórias diferentes, mas basicamente o percurso foi o mesmo. Ou seja, uma primeira fase, no período da II Guerra Mundial, como nós agora vamos provavelmente atravessar, com falta de recursos para a construção, houve necessidade de não deixar aumentar as rendas, o que passado algumas décadas teve um efeito desastroso. Porque os senhorios deixaram de fazer manutenção e os inquilinos estavam a viver em condições muito pobres.

A segunda geração de regulação das rendas tenta pôr o mercado a funcionar. Quando se iniciou esta geração, fez muita diferença. Nós somos um país que começa muito tarde a fazer esta atualização dos valores das rendas, daí o declínio enorme que o sector de arrendamento privado teve.

Mas, além da regulação do valor das rendas, não se fez a regulação do valor da qualidade de habitação. A questão da qualidade da habitação é importante ao nível do tamanho do fogo e a questão do planeamento, do uso dos solos. Transformou-se habitação que tinha o objetivo de habitação permanente em alojamentos locais. 

O que quero dizer é que além do financiamento, que já tínhamos falado, e o PRR é uma ajuda, há uma parte muito importante que é a regulação. Noutros países, como a Inglaterra, há uma preocupação para capturar mais-valias ao nível do planeamento para a provisão de habitação. É todo este mindset que temos de perceber. Não é só financiamento, há todo um aspecto de regulação de coisas muito diferentes e que temos de ter em atenção. 

Por exemplo, na Dinamarca o governo lançou uma política que em cada nova habitação urbanística 25% tinha de ser habitação sem fins lucrativos, para as housing associations, as associações que constroem habitações para arrendamento, poderem construir. Como é que isso se faz? O dono do terreno que pretende fazer um empreendimento vai ter de se entender com uma housing association para lhe fazer um desconto vendendo parte do terreno ou vendendo parte das frações que ele for construir.

Não se pode ser muito estridente nas decisões que se vão tomar. Corre-se o risco de parar ou afrouxar a oferta de habitação, e nós não queremos isso, precisamos de construir mais mas também precisamos de regular o que é construído para responder às várias necessidades. Em Lisboa será preciso utilizar instrumentos que noutros sítios não é preciso, porque os mercados de habitação não estão tão inflacionados. 

"As pessoas, mesmo que muitas vezes assumam que a sua casa não tem as melhores condições, não gostariam de sair da casa e não gostariam de sair do bairro", disse Alda Azevedo.

Falando do arrendamento privado, como é que é possível regular? Seja qual for o local ou o município. 

AA: A partir da II Guerra Mundial, houve na maior parte dos países europeus uma expansão da propriedade. Em Portugal essa expansão começou mais tarde, já no período democrático, mas deu-se de forma muito acentuada. Em 2011 tínhamos apenas 27% do stock de residência habitual em arrendamento, quando em alguns países europeus já se notava um crescimento do arrendamento. 

Em 2021, agora que temos os resultados provisórios dos Censos, conseguimos observar que houve um crescimento na ordem dos 16%. Temos uma distribuição de 70% dos alojamentos de residência habitual ocupados em propriedade, 30% em arrendamento. Fica por saber quanto deste crescimento se deve às restrições colocadas à compra desde a crise económica e quanto se deve a uma eventual mudança nas preferências residenciais.

Aquilo que temos também é uma assimetria muito grande entre as áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto e as outras regiões. Até mesmo nos municípios, entre freguesias, há assimetrias assinaláveis. Houve uma grande mudança da ocupação do stock de habitação. Em Lisboa, na Misericórdia e em Santa Maria Maior, entre outras, assistimos a quebras brutais de população que acontecem a par de quedas muito grandes no número de alojamentos de residência habitual e no número de alojamentos em arrendamento, superiores a 25%. Portanto, há mudanças localizadas que apelam ao estudo destas questões à escala da freguesia, fugindo a escalas mais macro.

Ou do tal equilíbrio necessário entre senhorios e arrendatários. 

SA: O congelamento das rendas é o instrumento mais barato que existe, só tem de haver uma decisão a dizer que não se altera durante x tempo. O grande desafio dos países foi saber como é que nós conseguimos aumentar a renda de forma a que os senhorios façam a manutenção das suas casas e a que o sector de arrendamento privado continue atrativo e haja investimentos. Que haja pessoas a querer pôr as suas casas no mercado, não as deixar vazias ou devolutas. 

Um bom funcionamento dos mercados de arrendamento é fundamental. Em Portugal isso não aconteceu, as reformas foram sendo proteladas, ou seja, deixando para a frente. Tivemos ali uma fase em que o governo assume as suas responsabilidades e cria programas de apoio à reabilitação, em que diz aos senhorios 'aqui tem o dinheiro, façam as obras mas deixem lá ficar os inquilinos, independentemente da sua condição económica'. 

Estivemos um pouco neste oxigénio, para o paciente não morrer, e para as pessoas conseguirem viver de forma decente. Entrevistei imensas pessoas que viviam em centros históricos numa sobreocupação horrível, foi uma primeira fase de qualificação dos centros históricos, mas continuamos sem resolver este problema. Nos outros países, entretanto, optou-se, ao contrário do nosso, por fazer-se caso a caso uma identificação de quem precisava de apoio à renda, com incentivo à reabilitação e incentivo à procura. Isto foi importante porque num mercado que se mantém congelado durante muito tempo os inquilinos que estão numa boa situação não saem, os senhorios não fazem obras, e não há estímulo para se pôr no arrendamento. 

Como é que se faz a regulação noutros países? A Alemanha tem uma grande percentagem de contratos de longa duração. A proteção dos inquilinos continua a ser enorme, a Dinamarca também [faz o mesmo]. Nestes países nórdicos com maior tradição em regulação, o novo contrato de arrendamento vai depender do valor médio da renda daquela freguesia, vai depender da idade do edifício, da qualidade da própria fração. Há ali uma tabela que vai definir o que é possível ser a renda. É muito controlado. 

"Portugal tem um problema crónico de despesa em habitação. Em termos do PIB, a despesa em habitação e relacionadas com a habitação, nomeadamente construção de infraestruturas, é menos que 1%", afirmou Alda Azevedo.

Por princípio a renda não devia ser sempre em função dos rendimentos?

SA: Por princípio, os mercados deveriam funcionar, devia haver um equilíbrio entre a oferta e a procura. Por exemplo, há determinados mercados de habitação em que bem podem pôr a oferta de um apartamento com um valor elevado que as pessoas não conseguem pagar. 

Normalmente os mercados funcionam, quando não funcionam, e não funcionam muitas vezes, o sector público tem de garantir habitação para quem não encontra solução no mercado. E aí faz-se como já disse: por provisão directa, constrói habitação pública, ou através de incentivos aos privados que recebem um grant, uma comparticipação, têm acesso a créditos mais baratos. E, portanto, também ficam obrigados durante x anos a pôr arrendamentos a determinado valor. Ou então através de planeamento, em que se deixa construir, mas tem de ficar com renda acessível durante x tempo. 

AA: Por princípio implica por exemplo a seguinte situação: eu decido que quero viver num magnífico T4 na Avenida da Liberdade e como o meu rendimento é o salário mínimo nacional alguém tem de me providenciar esta possibilidade. Não, não é assim que as coisas funcionam. 

Por um lado, é claro que as pessoas têm de ter oferta que possam pagar, porque se  trabalho em Lisboa, e se só posso  arrendar uma casa em Setúbal, tenho garantida uma viagem de uma hora de comboio e estou aqui a excluir as eventuais deslocações para Setúbal cidade e depois para Lisboa, para o meu local de trabalho. Isto é um problema de desfasamento entre o valor dos preços do arrendamento e aquilo que são os rendimentos das pessoas, mas nós também temos de ter em conta o valor real do alojamento em si e aquilo que é a rentabilidade do senhorio. Porque mantermos situações em que o senhorio tem prejuízo ou tem lucro irrisório com os seus investimentos também não favorece nenhuma das partes envolvidas. 

Há pouco falava do equilíbrio entre inquilinos e senhorios. Tem de haver aqui uma identificação muito clara do que são as necessidades de cada um e naturalmente o inquilino tem uma necessidade absoluta de ter casa, de ter uma casa em condições e  uma que possa pagar. O senhorio tem a obrigação de arrendar uma casa em condições, mantê-la em condições, mas tem de ter garantido que o seu investimento tem o lucro que permita que isto seja um negócio.

Como é que se pode regular o que é privado?

AA: Construções novas, por exemplo.  

SA: Ou como se faz na Dinamarca, com os tais 25% a preço de custo. É o valor de fazer e manter uma habitação sem fins lucrativos.

AA: Estamos a falar de requisitos que têm de ser cumpridos para que os privados possam obter licenciamentos. É pedido um licenciamento para a construção de um edifício com cinquenta fogos, e nestas circunstâncias o município (e há freguesias que são particularmente críticas neste aspecto) poderá dizer que 25% têm de ser vendidos ao município a preço de custo. Quem tem o empreendimento sabe que só vai obter lucro sobre 75% do total de fogos. Dos restantes também não obtém prejuízo. É este tipo de regulação. Não é destruir o mercado. 

Isto em relação a novos edifícios.

SA: Reabilitação também.

Quando vou procurar ao site de uma imobiliária, os valores estão lá...

SA: Aí não se pode fazer nada. 

AA: Pode-se fazer numa circunstância. É possível garantir vantagens fiscais aos senhorios se arrendarem dentro de determinados preços. O imposto pago pelos senhorios é na ordem dos 28%, portanto estamos a falar de um valor muito elevado. Um senhorio que tenha benefícios fiscais por arrendamentos mais longos e arrendamentos mais baixos consegue aqui um benefício que favorece. 

Agora, o que tem havido muito em Portugal, e é preciso ter atenção, é o cumprimento ou não cumprimento dos inquilinos. Um inquilino que deixe de pagar a renda torna-se um problema para o senhorio, que ao mesmo tempo se vê impossibilitado de ter qualquer rendimento do seu imóvel ou usar a casa para outros fins. 

Isto é problemático em Portugal, porque temos muito a prática de segundas residências, compradas com recurso à banca para fazer um complemento a salários baixos ou a pensões baixas. Estes pequenos senhorios que têm apenas uma casa, que estão a pagá-la ao banco, se têm uma família que infelizmente não pode pagar a casa - e nós sabemos que a última coisa que as famílias deixam de pagar é a casa -, quando deixa de pagar é porque está numa situação muito frágil. Acaba por colocar também o senhorio em incumprimento. Há que proteger tanto inquilinos como senhorios. 

Quais são as questões essenciais que fazem parte do projeto SustainLis?

SA: Projetos como este são interessantes porque são uma oportunidade de investigadores com um background muito diferente, demógrafos, urbanistas, planeadores ou arquitetos, com experiências de vida diferentes e experiências práticas, se juntarem para debater estes temas, são difíceis e complexos, que exigem de facto esta colaboração. 

O objetivo do SustainLis é perceber como nas duas últimas décadas o centro histórico de Lisboa mudou e porque é que mudou. É muito um trabalho que a demografia faz, com a análise dos dados estatísticos, dos CENSOS, etc. [A parte do] Porque tem muito a ver com os quadros legais de reabilitação e de arrendamento, o contexto legislativo que permite ou não acabar com os contratos. E também com as próprias políticas que foram sendo feitas, se as prioridades a dada altura eram manter habitação acessível e reabilitar habitação para os inquilinos e para a população poder pagar, ou se era mais uma reabilitação do espaço público. Todas estas questões nos interessam.

E compararam com outras situações e outros países, não é?

AA: Existe uma grande falta de dados. Os recenseamentos dão-nos um perfil macro destas pessoas em termos demográficos e sociais, vemos por exemplo em termos de estatuto sócioprofissional a reconfiguração da freguesia. Tem havido uma reconfiguração da freguesia de Santa Maria Maior, mas depois para perceber melhor e conseguir relacionar os indivíduos dentro dos alojamentos em que residem, olhar para as suas condições de vida, precisávamos de falar com as pessoas. Portanto, fizemos um inquérito a 450 pessoas residentes em Santa Maria Maior. 

Percebemos muito sobre as condições de vida, que existe um grande apego àquilo que é o bairro. As pessoas, mesmo que muitas vezes assumam que a sua casa não tem as melhores condições, não gostariam de sair da casa e não gostariam de sair do bairro. Existe um apego ao espaço que é relevante. Existem dificuldades que são muito diferentes entre estes dois grupos (seniores e jovens). 

As dificuldades dos jovens estão muito associadas à integração laboral e, portanto, à saída de casa dos pais. Nos idosos, mesmo que digam que estão muito satisfeitos com a habitação, depois percebemos que apesar da idade não existem propriamente formas de apoio à mobilidade que perdemos ao longo da nossa vida, com o processo de envelhecimento. As pessoas não vivem nas condições ideais, e ainda assim não gostariam de sair da casa onde estão. Gostariam sim que a casa melhorasse.