Enzo

Enzo Traverso| Fotografia de Freddy Davies/ La Directa/ Jacobin 

Enzo Traverso: A extrema-direita ainda não é uma opção estratégica das elites europeias, mas pode vir a sê-lo

O historiador italiano acompanhou com esperança a Revolução dos Cravos e, 50 anos depois, olha com grande apreensão para a ascensão da extrema-direita. Garante que quando chegam ao poder, são "submetidas a constrangimentos que as levam a aplicar políticas neoliberais”, daí serem um “fenómeno transitório”, cuja natureza política "ainda não está claramente estabelecida”. 

Entrevista
22 Fevereiro 2024

Italiano do Norte, filho de comunistas, o historiador Enzo Traverso começou cedo a aproximar-se de grupos da esquerda operaísta, alternativa dissidente às esquerdas parlamentares. Fez parte, aos 17 anos, de uma geração de “jovens politizados e radicalizados” que acompanhou com apetite o 25 de Abril de 1974: “o ritmo da nossa vida política era ditado pelo que se passava em Portugal”. Acreditavam que a revolução que iria varrer a Europa ocidental de verdadeiro socialismo acabara de começar em Lisboa.

Traverso insere-a numa sequência histórica que começa na Revolução Bolchevique, encontra-lhe características clássicas trazidas da Revolução Francesa, aponta-lhe parecenças ao Maio de ‘68 e até à Revolução Haitiana, pelo processo formal de descolonização que desencadeou. No final, tudo resultou numa democracia liberal ao estilo capitalista. Esse produto, não sendo inevitável nem lógico, continua, foi contra “as aspirações e esperanças” da revolução.

Para o historiador, que há pouco tempo publicou Revolutions: An Intellectual History, a revolução era o “horizonte de expectativas” da sua geração. Perante os flagelos (baixos salários, precariedade, desigualdades gritantes, guerras, genocídios) que hoje nos assolam, diz ser urgente criar um horizonte novo, para podermos construir na sua direção. É urgente prevenir a criação de um novo fascismo, diz, nascido das contradições de uma extrema-direita submissa ao neoliberalismo.

Quando celebramos os 50 anos do 25 de Abril, a extrema-direita pode eleger bastantes deputados nas próximas eleições legislativas. “O crescimento da extrema-direita é um fenómeno global. Isto significa que a extrema-direita é uma constelação heterogénea, dentro da qual encontramos movimentos com origens, trajetórias e referências ideológicas diferentes”, diz Traverso. Mas, garante, quando as extremas-direitas chegam ao poder “são submetidas a constrangimentos que as levam a aplicar políticas neoliberais”, daí serem um “fenómeno transitório” cuja natureza política "ainda não está claramente estabelecida”. 

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.

Estamos a um mês de eleições legislativas em Portugal que podem solidificar a presença da extrema-direita no parlamento. Daqui a dois meses celebramos os 50 anos do 25 de Abril de 1974. Nessa altura, a Revolução dos Cravos foi vista como uma última oportunidade de haver uma revolução socialista na Europa, sendo que hoje a celebração pública da sua memória se cinge quase apenas à sua dimensão antifascista. Quais são as suas memórias?

Lembro-me bem do mês de abril de 1974. Tinha 17 anos. Durante dois anos, toda a Europa ocidental seguiu a "agenda portuguesa". O ritmo da nossa vida política era ditado pelo que se passava em Portugal. 

Nessa altura, a revolução portuguesa pareceu-nos — aos jovens politizados e radicalizados — uma espécie de confirmação das nossas expectativas. Estávamos profundamente convencidos de que a era das revoluções estava a acabar, mas a revolução era o nosso horizonte de esperança. Pensávamos que estava para amanhã. Então, acreditámos que a revolução europeia havia começado em Lisboa.

Fez-se uma interpretação da revolução portuguesa relacionada com a nossa própria interpretação da palavra "revolução". Nos anos 1970, acreditávamos que "revolução" significava uma convergência de três linhas: anticapitalismo (na Europa ocidental), antiburocratismo ou antiestalinismo (na Europa de Leste) e anticolonialismo (no Sul [global]).

A revolução portuguesa combinava uma revolução anticapitalista no Ocidente com uma revolução anticolonial no Sul. Foi um momento excitante para a Europa. Movimentos italianos de esquerda, como o Lotta Continua, criaram as suas próprias organizações em Portugal. Queriam estar aí. Foi um momento de grande entusiasmo e de grandes expectativas, que durou ano e meio, até novembro de 1975.

O que significou o 25 de Abril para a história global das revoluções?

Hoje, a recordação desse tempo — para aqueles que o viveram — e a memória coletiva que ficou dele juntam-se a uma inscrição particular da revolução portuguesa na História. Temos uma visão histórica sobre o que significou para a História da Europa, para lá das fronteiras portuguesas.

É também mais fácil, hoje, localizar a revolução portuguesa numa sequência histórica. Foi um domínio simbiótico onde várias experiências revolucionárias se fundiram. Foi uma espécie de Maio de '68 português, em algumas práticas e no seu aspeto geracional. Ao mesmo tempo, foi uma resistência tardia, no sentido de que a sua essência era antifascista, e quem observava de França ou de Itália não podia deixar de a ligar à história alargada da resistência ao fascismo. Foi, também, retrospetivamente, a última revolução socialista do século XX na Europa.

Houve várias potencialidades socialistas e anticapitalistas que se expressaram nessa revolução. É-me evidente que há uma continuidade entre a revolução bolchevique de outubro de 1917 e a revolução portuguesa de 1974. Foi uma revolução pelo socialismo no século XX. Deste ponto de vista, foi bastante diferente da Revolução de Veludo, na Checoslováquia, em 1989, que não era anticapitalista.

"Lembro-me bem do mês de abril de 1974. Durante dois anos, toda a Europa ocidental seguiu a "agenda portuguesa". O ritmo da nossa vida política era ditado pelo que se passava em Portugal."

[A portuguesa] foi uma revolução clássica, moderna, que replicou variadas facetas de um paradigma revolucionário criado pela Revolução Francesa. A ligação entre a revolução portuguesa e o fim do colonialismo português em África lembra-me a relação simbiótica entre a Revolução Francesa e a Revolução Haitiana, no final do século XVIII.

A revolução portuguesa foi algo único onde convergiram, reaparecendo, diversas experiências revolucionárias europeias do passado. Gosto de pensar na revolução portuguesa através de algo que Walter Benjamin disse certa vez: o passado nunca desaparece totalmente, nunca está acabado e arquivado. Pode reaparecer subitamente e interagir com o presente. Foi algo assim que aconteceu em Portugal. Um desses momentos mágicos que há na História, e em que parece possível mudar o mundo. 

Subitamente, as múltiplas energias que viajam pelo corpo social são ativadas e as pessoas descobrem que são sujeitos históricos e políticos, que podem mudar o mundo ao agir coletivamente. A revolução portuguesa foi isso. Subitamente havia comités de soldados, de camponeses e de operários, os trabalhadores ocuparam fábricas, a paisagem social e política mudou. Isto é exatamente o que “revolução” significa.

Nos últimos 50 anos, a memória da revolução foi sendo inscrita numa tradição liberal. Os seus aspetos revolucionários foram romantizados e o seu legado resumido de modo genérico à "liberdade" e à "democracia". Como diz que, neste momento, a esquerda não tem qualquer "farol" que a guie para o futuro, há alguma utilidade em olhar para o processo revolucionário português e tentar tirar ideias sobre o que devemos fazer quando confrontados com problemas políticos similares àqueles que havia em 1974?

Há muitas interpretações possíveis da revolução portuguesa, e realmente a mais mainstream é a de que estabeleceu uma democracia liberal moderna em Portugal e, quase naturalmente, colocou o país dentro da Europa moderna, através da adesão à CEE e por aí em diante. Esta é a narrativa liberal, que estabelece uma espécie de sabedoria teleológica sobre o processo revolucionário: “é claro que em 1974 e 1975 muitos jovens viveram sob a ilusão de que estariam a construir uma revolução socialista, mas a verdadeira lógica dessa revolução seria a modernização, a introdução de uma democracia liberal”.

Não partilho esta visão das coisas. Factualmente, é a verdade. A revolução portuguesa estabeleceu uma democracia liberal, mas esse não era o resultado lógico e inevitável da revolução. Foi produto — não sei se podemos falar abertamente de uma contra-revolução — de uma espécie de Termidor [contra revolucionário]. O resultado da revolução portuguesa entrou em conflito com os seus objetivos e potencialidades e até com as suas aspirações e esperanças. É a dialética do processo histórico. Podemos dizer o mesmo para muitas outras revoluções.

Seria interessante que hoje não somente se celebrasse, de forma apologética, a revolução portuguesa como ponto de partida da integração portuguesa na União Europeia, mas antes de mais se redescobrissem as suas diferentes dimensões revolucionárias, utópicas e emancipatórias. Eram as dimensões dominantes nesses tempos, que entretanto foram escondidas. Este aniversário não deveria ser somente celebrado, deveria ser um momento para reinterpretar a História. Ou, como dizia Walter Benjamim, mais uma vez, "passar a História a contrapelo". Fazer uma releitura inconformada da revolução portuguesa.

Escreveu que hoje a União Europeia "não é uma barreira ao crescimento da extrema-direita", mas que a "alimenta". Descreve-a como uma entidade superior que normalizou os estados de exceção como modo de governança, que "submete o político ao financeiro". Alimentar a extrema-direita faz parte dessa estratégia de submissão?

O crescimento da extrema-direita é um fenómeno global. Isto significa que a extrema-direita é uma constelação heterogénea, dentro da qual encontramos movimentos com origens, trajetórias e referências ideológicas diferentes. Observo uma diferença significativa entre a extrema-direita na Europa Ocidental e Central e a extrema-direita crescente nas Américas.

Jair Bolsonaro e Javier Milei representam uma extrema-direita peculiar, uma vanguarda radical, autoritária e quase fascista do neoliberalismo. São líderes políticos do neoliberalismo radical. Na Europa, uma das premissas para o crescimento das novas extremas-direitas é a sua oposição às políticas neoliberais implementadas pela Comissão Europeia. Isto é, a sua oposição ao neoliberalismo. Mas a alternativa que a extrema-direita oferece é reacionária, regressiva e autoritária. Mesmo dentro da Europa há diferenças.

"A revolução portuguesa foi algo único onde convergiram, reaparecendo, diversas experiências revolucionárias europeias do passado. [O passado] pode reaparecer subitamente e interagir com o presente. Foi algo assim que aconteceu em Portugal. Um desses momentos mágicos que há na História, e em que parece possível mudar o mundo."

O Vox, em Espanha, tem uma relação diferente com o neoliberalismo daquela que tem Marine Le Pen, em França, ou mesmo a extrema-direita na Polónia e na Hungria. Depois, há extremas-direitas que estão, como no meu país [Itália], no governo. Assim que se tornaram forças de liderança no governo, o seu antiliberalismo mudou. Em muitos casos, simplesmente aplicaram as receitas neoliberais que antes criticavam.

A extrema-direita está prisioneira destas contradições. Podem ganhar eleições porque se opõem ao neoliberalismo; se chegam ao governo, são submetidos a constrangimentos que os levam a aplicar políticas neoliberais. São levados.

É por isso que olho para estas extremas-direitas como fenómeno transitório. São algo novo e a sua natureza política não está estabelecida claramente. São suscetíveis a desenvolvimentos contraditórios. O resultado pode ser, de entre todas as contradições, a emergência de um fascismo do século XXI. Também poderemos ver a transformação destes movimentos em variantes da direita conservadora e autoritária. 

Até agora, na Itália, Georgia Meloni, que tinha muito orgulho na sua identidade fascista, manteve-se muito respeitadora das instituições europeias. Nos Estados Unidos, como Bolsonaro no Brasil, Donald Trump estava pronto para pôr em causa a estrutura institucional da democracia norte-americana. Há muitas contradições. Não podemos olhar para a extrema-direita como fenómeno homogéneo, monolítico.

É importante reconhecer que, até agora, a extrema-direita não foi uma opção estratégica das elites europeias. Essas elites económicas apoiam a própria União Europeia, não Orbán na Hungria, Le Pen em França ou a AfD na Alemanha. 

Claro que essas elites podem encontrar um compromisso de coexistência. Podem muito bem trabalhar com Giorgia Meloni, mesmo que não em total harmonia. Meloni não é uma representante orgânica dos seus interesses. Podem acomodar Marine Le Pen, mas o seu líder em França é Emmanuel Macron. Na Alemanha, é a CDU ou o SPD, não a AfD. 

Macron não é avesso a Estados de exceção, à militarização das polícias ou à perseguição de ativistas considerados ameaças à "segurança do Estado". Talvez a extrema-direita já não seja necessária.

É comum definir-se a presidência de Macron como autoritarismo neoliberal ou neoliberalismo autoritário. Depende do momento. É pertinente falar-se dos Estados de exceção em França, por causa da própria natureza das instituições da V República francesa, um sistema político bonapartista, e também porque Macron concentra em si muitos poderes e governa o país sem maioria parlamentar. A sua presidência é um Estado de exceção, no qual o poder executivo não é controlado pelo poder legislativo.

Este estado de exceção toma regularmente aspetos autoritários e acaba por partilhar alguns dos discursos ideológicos da extrema-direita. Hoje, debate-se em França uma revisão constitucional que quer acabar com o jus solis [direito à nacionalidade francesa de quem nasce em território francês], um dos pilares da república em França. Isto significa que há uma aproximação progressiva aos discursos da extrema-direita, nas suas suposições ideológicas, não só no que diz respeito à imigração.

Caminhamos, então, se o virmos como sintoma de uma tendência maior, em direção a uma espécie de nova aliança entre a direita tradicional (ou o neoliberalismo) e a extrema-direita. Neste caso, a extrema-direita pode tornar-se mais elegante para as elites económicas. Não creio que esta seja, hoje, a tendência dominante, mas é um dos caminhos possíveis.

O discurso islamofóbico é hoje partilhado por toda a extrema-direita europeia. O imigrante muçulmano tornou-se no novo objeto de ódio dos europeus em época de crise cultural e capitalista?

Esta nova onda de islamofobia, que se espalha pela Europa, reflete ao mesmo tempo uma certa continuidade e uma inovação significativa. Continuidade, porque esta vaga de xenofobia, que toma uma dimensão islamofóbica muito pronunciada de hostilidade contra muçulmanos e imigrantes e refugiados de países islâmicos, pode ser inscrita numa tradição política de direita: a procura de um bode expiatório.

Estamos a lidar com inflação, desemprego e dificuldades trazidas pelas políticas neoliberais que destruíram os serviços sociais e públicos. Em vez de lutar contra essas políticas, procuramos um bode expiatório. Os imigrantes tornam-se a raiz de todos os nossos problemas. Cria-se o mito da "grande substituição". Assume-se que os valores europeus estão a ser atacados, os valores cristãos, os pilares da nossa civilização e por aí em diante. Este é o discurso típico da extrema-direita. O nacionalismo e o fascismo sempre basearam as suas acções na procura de um bode expiatório. 

"A extrema-direita está prisioneira destas contradições. Podem ganhar eleições porque se opõem ao neoliberalismo; se chegam ao governo, são submetidos a constrangimentos que os levam a aplicar políticas neoliberais."

Por outro lado, há algo significativamente novo. No passado, um dos elementos constitutivos das ideologias nacionalista e fascista era o antissemitismo. A identidade nacional podia ser definida em oposição aos judeus, que incorporavam uma alteridade dentro da nação e da Europa. Hoje, observamos uma mudança para a islamofobia. Os novos movimentos de extrema-direita, nacionalistas, pós-fascistas, não são particularmente antissemitas. Em muitos casos, têm relações muito boas com Israel e com os seus governos mais conservadores, quase fascistas, particularmente o de Benjamin Netanyahu. Mas são profundamente islamofóbicos. 

Isto significa que algo mudou e que a extrema-direita europeia está a redescobrir um dos seus códigos genéticos: o colonialismo. Esta islamofobia está profundamente enraizada na extensa história do colonialismo e do racismo colonial. É uma tendência geral.

Sobre isso escreveu: "a memória dos campos de extermínio centra-se no antissemitismo, enquanto hoje a islamofobia está a crescer por todo o lado. Separada do presente, essa memória acaba assim por se tornar estéril". A memória coletiva do Holocausto não leva a Europa, em bloco, a colocar-se contra o genocídio em Gaza. Para que nos pode servir, então, essa memória?

O Holocausto foi, historicamente, o resultado de diversas tendências. O antissemitismo foi, claro, a sua premissa, mas houve outras tendências. Uma delas foi o colonialismo. O Holocausto aconteceu no meio de uma guerra colonial, de conquista e extermínio, pelo estabelecimento de um "espaço vital" na Europa de Leste. Ao mesmo tempo, aconteceu durante uma guerra contra o bolchevismo. Para os nazis, o bolchevismo era uma invenção dos judeus — ou, pelo menos, era encabeçado por eles. Todas estas dimensões convergiram no Holocausto.

"Estamos a lidar com inflação, desemprego e dificuldades trazidas pelas políticas neoliberais que destruíram os serviços sociais e públicos. Em vez de lutar contra essas políticas, procuramos um bode expiatório. Os imigrantes tornam-se a raiz de todos os nossos problemas. Este é o discurso típico da extrema-direita."

O que acontece hoje em Gaza pode muito bem ser definido como um genocídio em andamento. Enquanto historiador e académico, sou muito cético em relação ao uso analítico da categoria de genocídio, que é uma categoria jurídica criada para distinguir entre culpados e inocentes, carrascos e vítimas. Mas há uma definição normativa de genocídio, estabelecida pelas Nações Unidas em 1948, e esta pode muito bem ser aplicada à guerra israelita em Gaza. Isto não significa que a guerra sobre Gaza e o Holocausto sejam a mesma coisa. Qualquer comparação elementar entre os dois eventos revela mais diferenças que parecenças. 

Dito isso, o problema está em perceber que uso frutífero podemos fazer da memória do Holocausto. Podemos dizer que o Holocausto é único, incomparável. Consequentemente, podemos aceitar tudo, pois nada se compara ao Holocausto. Outro uso imoral e reacionário da memória do Holocausto, e que é comum em Israel e no Ocidente, é a sua utilização como argumento, dando a Israel a liberdade de se “defender” ao destruir Gaza e a Palestina. 

Há ainda outra maneira de usar a memória do Holocausto, e que penso ser a única frutífiera. Depois do Holocausto, não podemos permitir qualquer forma de exclusão, discriminação, racismo ou opressão. E, neste caso, lembrar o Holocausto significa lutar contra a opressão dos palestinos, contra a ocupação israelita dos territórios da Palestina e, agora, parar a guerra genocida em Gaza.

Creio que merece ser mencionado que há inúmeros movimentos judeus, particularmente nos Estados Unidos e minoritariamente em Israel, como o Jewish Voice for Peace, que se manifestam contra esta guerra dizendo: "não em nosso nome". Não se pode instrumentalizar a memória do Holocausto para legitimar uma guerra que se tornou genocida.

Em Gaza, vemos um governo de extrema-direita usar tecnologia de ponta para matar crianças mal nutridas. Na Europa e nas Américas, vemos o continuado crescimento da extrema-direita a reboque da xenofobia. Conseguimos ver uma catástrofe climática a vir na nossa direção. Sei que não tem uma resposta mágica para isto, mas que tipo de estratégia pode a esquerda assumir contra aquilo que o capitalismo tem para a humanidade, a barbárie?

Até agora, infelizmente, todas as tentativas de recompor a esquerda a uma escala europeia falharam. Pensemos no entusiasmo trazido pelo Syriza, na Grécia, pelo Podemos, em Espanha, ou mesmo pelos partidos de esquerda que entraram num acordo parlamentar em Portugal, há uns anos. Todas essas experiências mostram que não é uma tarefa fácil. Não há uma autoestrada à nossa frente.

A esquerda deve agir de forma a criar a consciência de que todos esses problemas mencionados — políticas neoliberais, racismo e xenofobia, a catástrofe climática — estão interligados. Não os podemos separar. Nas próximas décadas, receberemos na Europa dezenas de milhares de imigrantes, não só fugidos de guerras e ditaduras, mas também de catástrofes ecológicas. Separar isso da luta contra a islamofobia, o racismo e a xenofobia é impossível.

Temos de estar cientes de que há tendências demográficas, mas não podemos separar as tendências migratórias do futuro demográfico da Europa. Há muitas tendências que devem ser analisadas em conjunto, à escala global, e que requerem uma resposta global.

Uma das tarefas da esquerda é criar a consciência de que o capitalismo é uma catástrofe para a humanidade. Não pode ser o nosso futuro. Criar um novo horizonte de expectativas — como havia em 1974 e desapareceu — é hoje a tarefa maior para a esquerda.