Refugiados Lampedusa

Emellin de Oliveira: o novo Pacto Europeu de Migrações vai "criar um regime generalizado de detenção"

A investigadora em Direito de Migração e Asilo entende que o novo Pacto Europeu de Migração e Asilo podia ir mais longe: acabar com a criminalização da ajuda humanitária no Mediterrâneo e garantir mais vias seguras. Mas vê sobretudo com preocupação a criação de um regime generalizado de detenções.

Entrevista
20 Julho 2023

A Europa assistiu no início de junho a uma das maiores tragédias no Mediterrâneo: uma embarcação com mais de 700 pessoas afundou-se ao largo da ilha grega de Pylos. Sabe-se, agora, que as autoridades gregas terão sido responsáveis pelo naufrágio. Desde 2014 que mais de 20 mil pessoas morreram ao tentar atravessar o Mediterrâneo, segundo dados da Organização Internacional das Migrações.

Desde 2015, quando a União Europeia se deparou com a chegada de milhares de pessoas a pedir asilo através do Mediterrâneo, que a política de acolhimento a refugiados tem causado fraturas, debates e controvérsia no seio do projeto europeu. Hungria e Polónia recusam-se a receber refugiados, assiste-se à criminalização de organizações não-governamentais que resgataram refugiados e migrantes e aos retornos forçados para “empurrar” migrantes e refugiados para fora do seu território, vedando o acesso aos seus direitos legais pela Frontex em coordenação com as guardas costeiras de Estados-membros. 

Cinco dias antes da tragédia no início de junho, vários Estados-membros assinaram o Pacto Europeu de Migração e Asilo. Registaram-se dois votos contra (Hungria e Polónia) e quatro abstenções (Bulgária, Malta, Lituânia e Eslováquia).

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Em 2020 o acordo foi apresentado pela Comissão Europeia, mas pouco avançou até agora. Entre algumas das suas propostas estão o pagamento de uma compensação financeira de 20 mil euros a cada Estado-membro por cada requerente de asilo não recolocado ou a definição de uma capacidade adequada de 30 mil pedidos de asilo que os Estados devem processar. O Regulamento de Dublin, que definia que o país de primeira entrada seria aquele que deveria analisar o pedido de asilo, não sofreu alterações.

A diretora do escritório da União Europeia da Amnistia Internacional teceu críticas ao Pacto argumentando que os novos procedimentos nas fronteiras europeias podem “causar sofrimento, incluindo deter pessoas em centros de detenção durante meses”. Disse ainda que “o Parlamento Europeu deve usar as discussões que se seguem para prevenir este acordo, e assegurar uma duradoura abordagem humana e sustentável”.

A Lighthouse Reports tem vindo a denunciar, com uma série de investigações jornalísticas, a detenção de milhares de refugiados e migrantes em centros de detenção, violando as leis internacionais. Estes centros não são situações isoladas, fazem antes parte de um sistema financiado pela UE e cuja responsabilidade de coordenação recai sobre a agência europeia Frontex. 

Este acordo poderá vir a ser um marco nas políticas de migração e asilo da União Europeia, mas mesmo assim fica aquém do que se esperava e é necessário. Para Emellin de Oliveira, investigadora Direito de Migração e Asilo no Centro de Investigação e Desenvolvimento sobre Direito e Sociedade, o pacto devia criar “mecanismos claros de responsabilização para as pessoas que trabalham nas ajudas no Mediterrâneo” e que fazem pushbacks e criar "mais vias seguras”.

Mas, também, direccionar o debate sobre o acolhimento para uma perspetiva de direitos humanos em vez de contagem de números. “O que importa é as pessoas serem recebidas bem, com condições de habitação, com acesso ao direito à saúde."

Tendo em conta as diretivas anteriores da União Europeia de migração e asilo, o que vai mudar com este novo acordo? 

O Pacto Europeu de Migração e Asilo apresenta nove propostas que variam entre regulamentos, pareceres e recomendações. Os regulamentos são leis, por isso os Estados têm de os aplicar, enquanto os pareceres e recomendações não o são. Neste momento, discute-se o regime de receção e acolhimento das pessoas, ou seja, quais são os procedimentos quando as pessoas chegam e requerem asilo.

Quem procurar asilo na União Europeia terá que passar por um procedimento obrigatório na fronteira para o seu pedido ser avaliado. Quem é sujeito a este procedimento, que tem uma duração máxima de seis meses, não está autorizado a entrar no território do Estado-Membro. Onde vão ficar estas pessoas durante este período

Este pacto foi um conjunto de propostas de legislação da Comissão Europeia. Quem decide se a legislação vai ser adotada é o Conselho da União Europeia, juntamente com o Parlamento Europeu. Agora está a decorrer a discussão no Conselho, ainda falta a discussão no Parlamento. Se os dois aceitarem, teremos legislação. Se passar, a ideia é multiplicar os hotspots, que são, por exemplo, aquelas ilhas gregas transformadas em zonas de acolhimento. As pessoas ficariam nessa zona enquanto o seu procedimento é analisado.

Podemos dizer que os chamados hotspots são uma criação de centros de detenção? 

Sim. Hotspots não é a nomenclatura utilizada pela legislação da União Europeia. O termo hotspot foi usado em 2015 para as ilhas gregas – os locais para onde as pessoas que vieram nas embarcações no Mediterrâneo e pediram asilo tiveram que aguardar até o seu pedido ser analisado. Só depois podiam ir para a Grécia continental.

Isto já existe em Portugal. Uma pessoa que chega de avião e pede asilo num posto de fronteira no aeroporto não sai desse aeroporto. Fica naquilo a que se chama “espaço equiparado de instalação”, onde ficam até o seu pedido ser analisado. Em 2020 houve uma alteração e no caso dos pedidos de asilo deixam entrar, mas algumas pessoas ainda ficam [retidas], sobretudo no Porto, onde há a Unidade Habitacional de Santo António (UHSA), o único centro de instalação temporária que temos. A ideia nesta proposta é de os multiplicar.

No caso português, tal como a UHSA, são centros de detenção. Não são os termos usados na legislação, mas os ativistas e os académicos relacionam com centros de detenção.

Uma outra mudança prevista é o pagamento a cada Estado-Membro de uma compensação financeira de 20 mil euros por cada requerente de asilo não recolocado. O que significa esta alteração? 

É importante perceber o que se passou em 2015 para entender a alteração de agora. A Itália e a Grécia foram os dois Estados-membros que mais receberam pedidos de asilo, sobretudo por causa das embarcações que chegavam do Mediterrâneo, e foi ativado o mecanismo de emergência. Este mecanismo trazia pessoas da Grécia e de Itália para territórios de outros Estados-membros. Eram requerentes de asilo e eram recolocadas para outros Estados para continuar o seu processo, para aliviar o sistema de asilo grego e italiano. Este mecanismo ficou obrigatório apenas por dois anos — de setembro de 2015 a setembro de 2017.

Desde então que há um mecanismo voluntário. Os Estados decidem se querem ou não receber pessoas dos estados "mais afetados" pelo número de requerentes de asilo. Percebendo que os Estados não estão a querer receber de forma voluntária, pensou-se nessa nova proposta: criar um mecanismo obrigando essa "solidariedade". Esta proposta dá três opções aos Estados: receber a pessoa e analisar aquele pedido de asilo; não receber ninguém no seu território, mas ajudar com os retornos – se o pedido de asilo é negado e a pessoa fica em situação irregular, os Estados podem deportá-la para o seu país de origem; e ajudar com mecanismos operacionais ou dinheiro.

Quem não receber pessoas no seu território vai ter de ajudar com 20 mil euros por cada pedido de asilo indeferido, que é teoricamente o valor referente aos gastos para retornar esses estrangeiros ao seu território.

Portugal recebeu mais de 57 mil refugiados vindos da Ucrânia, tendo sido no entanto um dos que menos acolheu, enquanto a Polónia, por exemplo, recebeu quase um milhão. Uma mudança prevista neste pacto é a definição de uma capacidade adequada de 30 mil pessoas a fazer pedidos de asilo anualmente para cada Estado-membro. Este número é adequado?

Este número foi usado com base nos números de 2015. Se multiplicarmos este número por 27, foi praticamente o que a Itália e a Grécia receberam. Se é adequado ou não, vai depender da quantidade de chegadas. O importante a perceber é se vamos fazer com que os Estados recebam 30 mil pessoas. Já fico feliz se receberem pelo menos dez.

O que se viu em 2015 foi a Hungria, a Polónia e a República Checa recusarem-se a receber pessoas. Mais do que números, gostaria de saber se alguém vai receber estas pessoas e, se sim, em que condições. A discussão deve virar-se mais para uma perspetiva de direitos humanos do que para a contagem de números. O que importa é as pessoas serem recebidas bem, com condições de habitação, com acesso ao direito à saúde. 

Há alguma contradição entre este pacto e os direitos das pessoas refugiadas e as obrigações dos Estados conforme a Convenção de Genebra? 

A Convenção de Genebra não veio estabelecer regras ao pormenor sobre os Estados. A sua grande vantagem é definir quem deve ser considerado refugiado. Até então eram os próprios ordenamentos jurídicos dos Estados que decidiam o que na altura ainda se chamava de refugiado político.

Encontram-se regras gerais, como o acesso à educação, a questão dos direitos sociais, a habitação, mas a Convenção de Genebra permite que os Estados adequem essas situações ao tratamento que dá aos estrangeiros de forma geral. É um documento importante para a defesa dos direitos humanos, mas deve-se ter atenção ao floreado que se faz dela. Na União Europeia, a regra específica que os Estados-membros devem seguir o que consta da diretiva Condições de Acolhimento, que tem as regras que garantem os direitos fundamentais se as pessoas ficarem num local, nomeadamente o acesso à educação para crianças ou a alimentação.

A grande diferença deste pacto é criar um regime generalizado de detenções. Enquanto alguns Estados o faziam à entrada, outros não. Era mais à escolha do freguês. O que penso ser problemático é esse regime generalizado de detenções. Se essas propostas avançarem no Conselho da União Europeia como estamos a ver, e se passarem também no Parlamento Europeu, será bastante complicado.

Há políticas que deviam ter sido alteradas e que foram deixadas de fora neste pacto? O regulamento de Dublin, que já há muito tempo vinha para ser reformado, não chegou a ter grandes alterações. Devia ter havido alguma emenda?

Dentro das novas propostas apresentadas pela Comissão Europeia, duas são bastantes interessantes: a incitação à participação da sociedade civil, sobretudo no âmbito de criação de entradas seguras, e a não criminalização da ajuda humanitária no mar pelas organizações não-governamentais. Em 2019 estive na Universidade de Pisa, em Itália, onde se estava a tentar criar um esquema comunitário que consistia em trazer pessoas requerentes de asilo ou refugiadas de fora da União Europeia, vindas sobretudo do Egito. Matriculavam-se na Universidade e vinham para a UE não como requerentes de asilo, mas como estudantes.

A ideia principal no pacto é aumentar a criação destes esquemas comunitários para facilitar as entradas seguras. Se isto é suficiente? Não. No que toca à abertura de entradas seguras e à não criminalização das ONG foram feitas recomendações. Os Estados não são obrigados a segui-las. Na criação de centros de detenções nas fronteiras europeias, estamos a falar de regulamentos que os Estados são obrigados a seguir. Era necessária uma mão mais forte da União Europeia a estimular os Estados neste aspeto, e não a teve.

Recentemente, uma embarcação a caminho da Grécia com 750 pessoas afundou no mar Mediterrâneo, com o conhecimento prévio das autoridades gregas sobre o perigo da embarcação afundar. Um relatório feito pelo movimento Diem-25 identificou que as embarcações da Guarda Costeira Grega e da Frontex, abandonaram no mar mais de 27 mil pessoas, entre 2020 e 2022. A negligência perante o resgate marítimo é uma prática comum das autoridades europeias? 

É uma questão que as pessoas que redigiram o relatório e as agências que fiscalizam podem responder. A grande problemática é como se responsabilizam estas pessoas. A Frontex trabalha com a participação de operacionais dos diversos Estados-Membros, e normalmente culpam-se mutuamente e não se encontram os responsáveis. Não se criminaliza e continuamos a assistir a relatórios que demonstram reiteradamente situações de abandono. 

Situações como a que está a ser investigada, com esse número gigantesco de mais de 700 pessoas. Estavam naquele barco que aparentemente foi empurrado de Malta para Grécia, de Grécia para Malta, e ali ficou até que, infelizmente, teve o trágico fim que se viu.

Não me importa se isso é reiterado, ou se acontece uma única vez. Quero saber quem faz isso, criminalizar para evitar que continue a acontecer, como um caso isolado ou reiterado. Há sobretudo a necessidade de se criarem mecanismos claros de responsabilização, mecanismos para que pessoas que trabalham nas ajudas no Mediterrâneo não sejam criminalizadas. Mas também para haver mais vias seguras.

Poucos dias depois do início da guerra na Ucrânia, a União Europeia simplificou os procedimentos de asilo dos refugiados vindos deste país, contrastando com a resposta dada em 2015. Há falta de vontade da União Europeia para acolher refugiados vindos de outras partes do mundo? 

Em 2015 estávamos a receber pessoas para pedir asilo, ou seja, para se tornarem refugiadas ou beneficiárias de proteção subsidiária. Em 2022 o que se fez foi ativar a Diretiva de Proteção Temporária, recebendo-se as pessoas vindas da Ucrânia não como refugiadas, mas como beneficiários de proteção temporária. Elas podiam pedir asilo e tornarem-se refugiadas, mas isso é outro processo.

Em 2015 empurraram-se as pessoas para um processo complexo e em 2022 criaram-se mecanismos para o facilitar, garantindo a sua proteção, mas não como refugiados. Quem sai do seu país por ser perseguido ou porque há um conflito armado não quer saber se vai ser recebido como refugiado ou beneficiário de proteção. Provavelmente nem sabe muito bem o que significam essas nomenclaturas.

Há interesses políticos que dificultam a criação de mecanismos que facilitem a proteção. Se esta depois vai ser como refugiados, beneficiários de proteção temporária ou qualquer outra coisa, é uma consequência político-jurídica da situação.

Não se pode deixar de mencionar que a Ucrânia faz fronteira direta com a União Europeia. A UE sentiu-se "ameaçada" pelo número de pessoas que entrariam de forma mais rápida no seu território. Já no Mediterrâneo, infelizmente, não deixa de ser uma forte triagem natural que se faz, já que as pessoas têm de o atravessar para chegarem ao continente europeu.

Há uma mistura de falta de vontade política para ativar mecanismos de proteção imediata em 2015 e uma vontade política para ativar uma resposta geoestratégica, porque nesse caso havia uma fronteira direta com a própria União Europeia.

O eurodeputado do CDS-PP Nuno Melo escreveu recentemente que a pretensão de fronteiras abertas é um disparate que não existe em nenhuma parte do mundo, e “destruiria o projeto europeu”. Que comentário faz sobre esta declaração?

Depende do tipo de fronteiras abertas. Não me considero sequer uma pessoa liberal. As pessoas normalmente mais voltadas para essas ideias defendem as fronteiras abertas.

Deve-se ter sempre um bocado de atenção com as fronteiras. Não no sentido de criminalizar as pessoas que passam, mas em protegê-las. Há cada vez mais casos de crianças que são traficadas na fronteira, por exemplo. Não advogo pelas fronteiras abertas, mas também não advogo por fronteiras fechadas e que criminalizam. Deve existir um meio-termo entre as duas situações.

As fronteiras não podem ser inultrapassáveis, mas devem garantir a proteção das pessoas, nomeadamente a possibilidade de identificar se aquele estrangeiro, por exemplo, está a ser vítima de tráfico humano, bem como identificar as vulnerabilidades relacionadas com a própria fronteira. Isso não significa defender detenção nas fronteiras, nem defender que as pessoas não tenham direitos nas fronteiras.

Segundo os dados do Internal Displacement Monitoring Center, de 2008 a 2022 que um total de 376 milhões de pessoas foram forçadas a fugir por cheias, tempestades e secas. Mas a Convenção de Genebra não prevê as questões climáticas como motivo para se receber o estatuto de refugiado. Esta questão devia ser adicionada na Convenção de Genebra?

Há muitas questões que podiam aparecer na Convenção de Genebra, mas, seja por causa da data em que foi construída ou por causa dos interesses políticos, não aparecem. Se este é o melhor momento para nos sentarmos e discutirmos alterações na Convenção de Genebra? Não. Há um aumento da extrema-direita aqui em Portugal e noutras partes do mundo. Não é o momento político adequado para se tentar alterar.

Porque se insiste em querer proteger as pessoas apenas pela Convenção de Genebra? O estatuto de refugiado é o mais completo em termos de proteção. Mas podem-se criar outros mecanismos de proteção para se permitir que as pessoas venham para o território de forma segura.

É preciso parar de insistir apenas na Convenção de Genebra, há provas disso. O Brasil, depois da questão ambiental no Haiti, criou vistos humanitários e as pessoas deste país puderam ir para território brasileiro. Não foram como refugiadas, mas tinham proteção. Há que usar a criatividade, porque o importante é garantir a proteção. Se formos perguntar a um ucraniano se ele é refugiado, é capaz até de dizer que sim, mas nem sequer foi recebido como refugiado. Será que isso importa? O que importa é que ele esteja num lugar seguro e protegido.

Há outros mecanismos de proteção que podem ser ativados. Em Portugal há o artigo 123.º da Lei de Estrangeiros: diz de forma clara que é uma proteção extraordinária que pode ser dada quando não se pode aplicar a Lei de Asilo. Aqui está a definição exata do que é uma pessoa que vem de um local onde há um desastre ambiental. Se houver vontade, pode-se olhar para o exemplo do artigo 123.º e perceber que já há uma previsão de garantia de proteção nessas situações. Agora, falta vontade.

Entrevista editada por Ricardo Cabral Fernandes.