Museólogo, Investigador no Centro de Estudos Transdisciplinares “Cultura, Espaço e Memória”, Universidade do Porto.

Radiografia de um embuste: o PS e a devolução das propinas

António Costa anunciou a devolução das propinas no Ensino Superior, mas as suas palavras não passam de marketing eleitoralista. O PS sempre rejeitou acabar com as propinas e continua a fazê-lo com maioria absoluta. Aliás, há 30 anos que vive uma história de amor na mercantilização do Ensino Superior com o PSD.

Ensaio
21 Setembro 2023

No turbilhão da crise que os jovens estudantes vivem no ingresso no ensino superior, o governo entendeu apresentar um pacote de medidas para as gerações mais novas. Nesse pot-pourri de coisa nenhuma, sobressalta o pomposo anúncio que o atual líder da Juventude Socialista não esperou em caracterizar como “o fim das propinas”. Será exatamente assim?

O anúncio da medida aconteceu no encerramento da Academia Socialista, pelo primeiro-ministro e líder do Partido Socialista. Em suma, António Costa disse que os estudantes que concluírem os seus estudos no Ensino Superior Público e ficarem a trabalhar em Portugal receberão o valor relativo ao pagamento de propinas de licenciatura no seu valor atual (697€) e, no caso dos mestrados, num valor estipulado em 1500€.

Por onde começar? Talvez pelo mais rápido de se resolver com uma resposta simples. O comentário que o líder da Juventude Socialista se apressou a escrever nas redes sociais (“A propina acabou!”) é falso. A propina não terminou, simplesmente foi transformada numa caução que, eventualmente, alguns dos jovens poderão vir a receber, mais tarde, através do IRS. 

Há algum desespero nesta pressa do anúncio. Imaginem o que seria um líder de uma juventude partidária que apoia um governo de maioria absoluta ter sido eleito com um discurso anti-propinas e passar quatro anos da legislatura a aplaudir uma equipa governativa que não vai baixar 1€ no valor de propinas. Até a conversa (também ela falsa) de que foi a Juventude Socialista que garantiu a descida das propinas durante o acordo parlamentar entre PS, Bloco e PCP fica tremida. Se conseguiram tamanha façanha num período onde dependiam de acordos parlamentares para aprovar orçamentos, qual é o real obstáculo numa conjuntura onde a medida só depende do PS? Há qualquer coisa de significativamente bizarro nesta narrativa.

Sobre o conteúdo da proposta, vale a pena ouvir as palavras de dois reputados membros do PS. No Expresso, a deputada Alexandra Leitão escreveu que “esta é uma solução que penaliza os alunos que — muitas vezes exatamente por causa das dificuldades económicas — não conseguem concluir o curso ou ficam desempregados durante muito tempo após a sua conclusão”. 

Por sua vez, no programa de comentário político O Outro Lado na RTP3, Paulo Pedroso disse: “não há nenhuma medida relativa às propinas. Não há fim de propinas nem devolução de propinas. O que há é uma coisa que o primeiro-ministro fez muito bem: um embrulho de marketing. A medida funciona como imposto negativo”. 

Há, como seria de esperar, críticas não só ao modus operandi do marketing político escolhido por António Costa como também às consequências negativas que a medida pode gerar a curto prazo. É evidente que por trás da ideia vivem vários truques políticos e contabilísticos. O primeiro de todos nem precisa de muita habilidade orçamental: basta querer devolver daqui a alguns anos uma propina paga hoje que o valor será obrigatoriamente inferior, basta aplicar a inflação.

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Uma estranha leitura no combate às desigualdades

Desde o início da década de 1990, quando o governo liderado por Aníbal Cavaco Silva aplicou esta taxa no Ensino Superior, que se criou uma barreira económica no acesso aos estudos superiores. Essa escolha deixou as classes mais pobres fora de um serviço público que, segundo a nossa Constituição, é “universal, gratuito e de qualidade”. 

A propina começou por custar o que equivale hoje a 6,50€, mas os estudantes sabiam bem que era o início de uma escalada sem fim. Assim aconteceu. Introduzida a lógica de utilizador-pagador num serviço público, a pressão sobre os estudantes e as suas famílias aumentou drasticamente. Criaram-se empréstimos bancários para as novas gerações acederem a um serviço público. Ao  mesmo tempo, o Estado desenvolveu um modelo de apoios assente numa ideia perigosa, disponibilizando bolsas de ação social aos mais carenciados para, em grande medida, pagarem às Instituições de Ensino Superior uma taxa que deveria corresponder ao investimento público que o próprio Estado deve garantir.

Na verdade, a propina não é mais do que uma dupla tributação que premeia os mais ricos da sociedade no acesso ao Ensino Superior e castiga aqueles que procuram entrar na aventura do prometido “elevador social”. Em 1994, um dos juízes do Tribunal Constitucional escreveu na sua declaração de voto no acórdão 148/1994:

“Nesta matéria a situação que, presentemente, se verifica em Portugal é profundamente inequitativa, na medida em que introduz uma discriminação negativa nas despesas das famílias portuguesas com a educação, resultando num maior benefício para as famílias de mais altos rendimentos, e contraria, por essa forma, a justiça distributiva visada pelo sistema fiscal. Acresce, ainda, que se trata de um valor igual para todos os alunos, independentemente da sua situação económica, o que introduz um outro factor de injustiça, uma vez que no ensino superior os benefícios revertem em parte para os próprios alunos”.

Percebe-se porquê: a escolha de reconfigurar um serviço público, gratuito e universal num mecanismo de prestação de serviços baseado na lógica de utilizador-pagador foi mesmo o primeiro grande passo para alterações de grande envergadura no sistema. 

É para isso que Alexandra Leitão alerta. A medida do governo, ao devolver a propina paga, anos mais tarde e a quem conseguir ficar a trabalhar no país, só está a criar um sistema ainda mais desigual. Aqueles e aquelas que não tiverem capacidade financeira para esse esforço no presente continuarão a ficar de fora (porque a propina não acabou) e os que conseguirem arcar com esse esforço serão premiados no futuro. 

Emigra e não recebe: uma dupla penalização

A medida é concebida não à luz de qualquer tipo de critério técnico mas de uma instantânea necessidade de plantar alguns bons títulos nos jornais. Até a particularidade de escolherem devolver o valor da propina através de IRS, anos mais tarde, a quem conseguir ficar a trabalhar em Portugal chega a ter contornos de alguma sátira. 

Somos a geração mais qualificada do país e apenas 3% dos jovens em Portugal ganham mais de 1.600 euros brutos por mês. A realidade é aterradora: 86% dos jovens empregados não vão além dos 1.158 euros por mês, sendo que existe uma grande percentagem que ganha pouco acima do salário mínimo. A qualidade do emprego deteriorou-se com a progressiva precarização. Seis em cada dez jovens empregados têm contratos precários: recibos verdes, contratos a termo, falsas bolsas, entre outro tipo de mecanismos criadores de instabilidade laboral. 

Apesar do aumento de diplomados no país, com todo o esforço que isso acarreta para a maioria da população que vive do seu trabalho, continuamos a ter uma geração catastroficamente próxima da linha vermelha da pobreza e da exclusão social. A isso soma-se a especulação imobiliária e uma total ausência de investimento público capaz de responder à crise social que expulsa os pobres da cidade e atira as suas casas para o casino do mercado imobiliário. 

Mais de 90% dos jovens vivem com os pais, mesmo quando têm contrato sem termo. Este país não é para quem cá estudou; a emigração é cada vez mais a alternativa para uma faixa etária com os canudos de licenciaturas, mestrados e doutoramentos na mão. Mesmo que encontrem emprego na sua área, sabem que “lá fora” é sempre melhor à partida. Talvez por isso António Costa esteja tão disponível para devolver a propina a quem tiver a ousadia de cá ficar.

Mestrados: obrigado!, dizem os ricos

Em Portugal, o teto máximo de propina estipulado por lei é apenas aplicado a licenciaturas e mestrados integrados. Nos restantes ciclos e noutros tipos de cursos, como pós-graduações, cabe a cada instituição de ensino superior fixar o valor da propina em cada uma dessas ofertas. É um debate que a Assembleia da República já fez vezes sem conta e no qual o PS, com a Direita a acompanhá-lo, votou sempre contra qualquer medida que criasse um teto máximo de propinas nestes ciclos de estudos.

Apenas em 2018, e passados 26 anos desde a implementação da propina, é que os estudantes viram este valor regredir. A medida nasceu de uma negociação orçamental entre o governo e o Grupo Parlamentar do Bloco de Esquerda, decorria o mês de outubro desse ano. No ano letivo seguinte (2019-2020), aplicou-se uma descida na casa dos 20%, o que representou um alívio de 212€ anuais na carteira dos estudantes e das suas famílias, passando o teto máximo dos 1068€ para 856€. 

A proposta voltou a ser apresentada e aprovada em 2019, na discussão do Orçamento do Estado para 2020. Esse novo corte, de novo na ordem dos 20%, fixou o atual valor da propina: 697€. Foi a única vez que o PS, fruto de uma negociação para garantir a aprovação do seu orçamento, aceitou mexer neste valor. Desde então, e na legislatura entre 2019 e 2021, o governo recusou qualquer programa de continuação da descida das propinas até à sua erradicação.

A liberalização do sistema tem custos altos. Temos hoje universidades públicas que se dão ao luxo de cobrar três mil euros de propinas por cada ano de mestrado. Neste encaixe financeiro, não sei onde se encaixa o serviço público.

Quando o governo informa que, no pacote da devolução de propina, inclui mestrados num teto máximo de 1500 euros, o que está a dizer é   que as classes mais altas que tiveram a oportunidade de usufruir de ofertas com valores proibitivos vão ser ressarcidas do seu investimento (ou pelo menos de parte dele). Di-lo ao mesmo tempo que continua a penalizar os mais desfavorecidos através da manutenção da propina. O PS conseguiu o brilhantismo de criar, finalmente, um teto máximo nas propinas de segundo ciclo. Talvez não se tenha apercebido do efeito altamente perverso que ele representa nos moldes em que foi apresentado.

Nos últimos anos, um dos argumentos mais usados pelo campo liberal de cada vez que se desceu o valor das propinas centrava-se na ideia de que cortar nesta taxa só serviria para ajudar os mais ricos. O raciocínio é curioso, dado que nasce de um equívoco sobre o próprio papel histórico que a propina desempenhou nas últimas três décadas. Não foi a descida da propina que ajudou os mais ricos, foi a sua criação que impediu os mais pobres de acederem a estudos superiores. 

A par desse argumento, chegava sempre outro de mãos dadas e prendia-se com a existência de um sistema de ação social que garantia bolsas a quem não apresentasse condições económicas para pagar as propinas. Em primeiro lugar, é importante relembrar a razão da existência das bolsas, que não foram concebidas para servir como um mecanismo paralelo de financiamento de sistema, no qual o estudante recebe um apoio para no mesmo momento o entregar à instituição onde estuda. 

No caso específico dos mestrados, a situação ainda é mais injusta porque é manifestamente impossível o Estado garantir uma bolsa a cada estudante que queira frequentar um curso com uma propina fixada em três mil euros. Seria uma total subversão do sistema e, até agora, ninguém teve a coragem - ou a indecência - de o propor.

Antes da contabilidade, há sempre o campo das ideias

Não parece difícil afirmar que a medida de António Costa tem contornos eleitoralistas e foi concebida de forma a permitir a implementação de um suposto apoio sem que, nos próximos anos, represente qualquer tipo de esforço orçamental - o que importa para o PS, recorde-se, são as contas certas. Pode dar-se até o caso de não ser este governo a executá-la. 

Mas há uma razão maior para a procura de mecanismos que correspondam a alguns anseios dos estudantes e tentem inclusive responder a reivindicações históricas do próprio movimento estudantil, como acontece com  o fim das propinas. O PS não acaba com as propinas no Ensino Superior porque é a favor delas. Não o introduziu no seu programa eleitoral e não está disponível para alterar a lei de bases do financiamento do ensino superior que estipula o modelo tripartido de financiamento do sistema (investimento estatal, esforço financeiro dos estudantes através das propinas e atração de fundos próprios por parte das instituições). Além disso, e de todas as vezes que existiram propostas de alteração do Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES) que visavam uma maior responsabilidade do Estado Central no financiamento do sistema, o partido de António Costa votou contra. 

Há uma sacrossanta convergência de visões sobre a mercantilização do Ensino Superior que nos últimos anos juntou PSD, CDS e PS e, mais recentemente, a Iniciativa Liberal. Uma história de amor com 30 anos une estes protagonistas. 

Muitos e muitas de nós dedicaram a sua militância e ativismo a esta bandeira, desde as grandes manifestações nos anos 1990, as mobilizações contra o Tratado de Bolonha no início do novo milénio, o combate contra as medidas da Troika no período da maioria absoluta de Direita, sem esquecer o esforço na defesa da Universidade enquanto instrumento público de conhecimento contra a pandemia. Queremos, um dia, poder gritar bem alto que “a propina acabou”. Para azar de toda a massa estudantil que paga propinas, ainda não será desta.