Investigador de pós-doutoramento no Instituto de Comunicação da Universidade Nova de Lisboa, com um projeto sobre Tecnovigilância no Brasil e em Portugal.

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A questão étnico-racial antes e depois das eleições legislativas

Quando o país esteve com as atenções voltadas para a eleição de um parlamento e consequente governo, o debate sobre a questão étnico-racial não foi colocado no centro das discussões. Quantas vezes os comentadores, que pareciam saber de tudo e mais um pouco, mencionaram algo sobre racismo e desigualdades?

Ensaio
21 Março 2024

Um não-tema. É assim que defino a questão étnico-racial nas eleições legislativas do último 10 de março em Portugal. Não é de todo um espanto, afinal este é o país que, negando toda a diversidade que povoa os seus transportes, as suas vias públicas e os seus bairros, insiste em não incluir nos Censos perguntas sobre dados étnico-raciais da sua população.

Ainda que apresente dados importantes para evidenciar como as desigualdades não são meramente conjunturais, o Inquérito às Condições de Vida, Origens e Trajetórias da População Residente em Portugal (ICOT) é limitado em diversos aspectos. Para não me alongar muito, reproduzo um trecho de um texto escrito pela socióloga Cristina Roldão, em janeiro deste ano no Público, recomendando a sua leitura completa: “é difícil compreender como é que um inquérito que surge para dar resposta à ausência de informação sobre diversidade e desigualdades étnico-raciais em Portugal acaba por não aprofundar estas questões e por as diluir noutras que lhe são laterais”.

A falta de habitação atinge todas as pessoas da mesma forma? As dificuldades no acesso ao Serviço Nacional de Saúde são sentidas igualmente por todos? Quem são as pessoas mais ameaçadas pela fome? Ter dados desagregados entre esses fatores e a origem/afirmação étnico-racial seria fundamental para um diagnóstico mais aproximado da realidade sobre os problemas enfrentados pela população portuguesa. Com um melhor diagnóstico, melhores condições para estruturar políticas públicas efetivas.

Quando o país esteve com as atenções voltadas para a eleição de um parlamento e consequente governo, esse debate não foi colocado no centro das discussões. Quantas vezes os comentadores, que pareciam saber de tudo e mais um pouco, mencionaram algo sobre racismo e desigualdades étnico-raciais? Quanto tempo de programação as televisões ou quantas páginas os jornais dedicaram para as manifestações antirracistas, em oito cidades, de  24 de fevereiro? Quantos segundos os candidatos dos partidos com assento na Assembleia da República usaram, durante os debates eleitorais, para defender propostas de combate ao racismo?

Propostas tímidas à esquerda

Talvez o único “lugar” em que alguns partidos – e apenas os de esquerda – ensaiaram abordar com alguma relevância a questão étnico-racial tenha sido nos programas de governo. Por exemplo, o Bloco de Esquerda, partido que incluiu dados do ICOT e defende um conjunto de temáticas importantes, como o combate ao colonialismo e suas narrativas pós-imperiais, não apresentou qualquer proposta sobre violência policial contra pessoas racializadas.

Está assim no programa do BE: “o racismo mata. É isso que provam os brutais assassinatos com motivações racistas de Alcindo Monteiro, no dia 10 de junho de 1995, e Bruno Candé Marques, em julho de 2020. Por outro lado, persistem os casos de violência policial contra pessoas afrodescendentes e ciganas que muitas vezes redundam na impunidade dos infratores. As pessoas racializadas são mais paradas e identificadas pela polícia, num processo de criminalização e controlo dos corpos negros. As agressões a vários moradores da Cova da Moura na esquadra de Alfragide em 2015, à família Coxi em janeiro de 2019 no Bairro da Jamaica e a Cláudia Simões em janeiro de 2020 por um agente da PSP na Amadora, são alguns dos casos mais recentes e mediatizados de uma violência policial que resultou em mais de dez jovens negros mortos pelas forças policiais desde o início deste século, quase sempre de forma impune”.

Sim, o racismo mata. Sim, as pessoas racializadas são alvos prioritários da violência policial. Mas quais as propostas efetivas para reverter este cenário? No item “20. Racismo”, do seu programa de governo, o Bloco de Esquerda apresentou cinco propostas, mas nenhuma sobre violência policial.

Já o LIVRE, que listou propostas para “combater o racismo estrutural e a xenofobia”, defendeu, entre outras coisas, “instituir formação obrigatória e regular antirracista para instituições públicas, incluindo as forças e serviços de segurança, serviços públicos, pessoal docente e não docente e profissionais de saúde, com avaliação contínua da eficácia e da qualidade da sua implementação”.

Outra proposta do partido liderado por Rui Tavares, e que me parece importante, foi “garantir a auscultação obrigatória de representantes de grupos tradicionalmente excluídos (incluindo, mas não se restringindo a, coletivos antirracistas, feministas, LGBTQIA+, de comunidades migrantes, de jovens ou de pessoas com deficiência) nos processos decisórios que os afetam, como discussão de projetos ou propostas de lei ou acompanhamento e avaliação das políticas”.

O PCP, por sua vez, limitou-se a discutir a questão étnico-racial na secção sobre Imigração. A palavra “racismo” foi, por exemplo, citada apenas duas vezes no programa de governo dos comunistas: “urge combater o racismo, a xenofobia, a hostilidade religiosa e o crescimento do discurso de ódio”; “para além da desigualdade social e económica – que cria dificuldades de inserção na sociedade portuguesa – continuam a registar-se discriminações e manifestações de racismo e xenofobia, a que há que dar forte combate”.

Em termos de propostas, o PCP defendeu “que se volte a conferir à Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR) um estatuto institucional mais robusto e autónomo, elevando-a à categoria de autoridade administrativa independente, a funcionar junto da Assembleia da República, dotando-a dos meios humanos, materiais e legais para actuar perante discriminações no exercício de direitos por motivos baseados na origem étnica, na cor, na nacionalidade, ou perante violações da Constituição e da lei por via de atitudes racistas e xenófobas”.

Além da timidez de muitas das medidas sugeridas, volto a perguntar: qual o espaço que essas propostas sobre a questão étnico-racial tiveram nos debates eleitorais?

A diversidade étnico-racial dos deputados eleitos pela esquerda

Uma outra possibilidade de a agenda étnico-racial vir a ser marcada pela devida centralidade é com a participação protagonista de pessoas racializadas enquanto candidatas.

Por concordar integralmente com as suas palavras, peço licença ao ativista antirracista Mamadou Ba para reproduzir um trecho do seu texto dias antes das eleições: “disse-o nas legislativas de 2019 e volto a dizê-lo de novo: enquanto os partidos políticos não tiverem a coragem de colocar pessoas racializadas a encabeçar listas nacionais, a tão propalada questão da representatividade será simplesmente uma mera questão de mercearia política ao sabor de taticismos eleitoralistas, sem qualquer compromisso programático”.

Pois bem, o Bloco de Esquerda elegeu cinco deputados, o LIVRE conquistou quatro mandatos, e a CDU garantiu quatro assentos. Qual o nível de diversidade étnico-racial dentre esses 13 deputados(as)?

Os resultados das últimas eleições legislativas evidenciam que a a luta por justiça étnico-racial terá ainda mais dificuldades na esfera institucional em Portugal.

Primeiro, a vitória de um projeto político-económico que é, por essência, contrário a qualquer perspectiva de redução das desigualdades étnico-raciais. Sim, porque um projeto baseado em privatizações, fragilização do serviço público, manutenção dos privilégios dos poderosos e reforço do estado policial é um projeto que apenas agrava a situação de vulnerabilidade das pessoas racializadas. É precisamente o programa económico da Aliança Democrática (PSD, CDS-PP e Partido Popular Monárquico) e do partido de extrema-direita Chega.

O segundo acontecimento tem tido repercussão nos media em Portugal e no Brasil: a eleição de um deputado negro, brasileiro, pelo partido Chega. Sim, Marcus Santos reforça toda a política anti-negro do Chega, fortalece um pensamento que é contra a sua própria vida. Em suma, presta um desserviço à luta contra o racismo. Muito já foi dito sobre o assunto, deixo apenas uma reflexão: além de direcionarmos a nossa necessária crítica a Marcus, a sua eleição deve ser vista como um alerta para a esquerda portuguesa! Quando os partidos de esquerda irão definir pessoas racializadas como porta-vozes dos seus projetos políticos?

Há uma frase atribuída a Barão de Itararé que faz muito sentido ao pensarmos no pós-eleições legislativas: “de onde menos se espera, é que não sai nada mesmo”. Então, não esperemos nada da composição da Assembleia da República eleita, nem do novo governo.

As respostas efetivas para o combate ao racismo, para a superação das desigualdades étnico-raciais em Portugal, e para a garantia do direito à vida das pessoas racializadas passam, fundamentalmente, pela ampliação da mobilização social e popular, pela luta política nos bairros, por um processo permanente de escuta e de articulação com os territórios racializados deste país. Só assim será possível garantir vida justa para todos e todas em Portugal.