Médica e resistente antifascista. Foi diretora do jornal Revolução e colaboradora do jornal Página Um. Autora dos livros Puta de Prisão, Vozes Insubmissas (com Lígia Amâncio), Histórias que as Mulheres Contam e Luta Armada

Quem é o povo de que se fala?

Quando empregamos a palavra “povo” e lutamos pela defesa do povo, é pressuposto que se trata da defesa da igualdade de todos os cidadãos. Ou não? Quando falamos de povo falamos dos proletários, produtores de mais-valia, um largo universo ou falamos dos proletários pobres? E nós, os de esquerda e que defendemos o povo, quem somos e de onde viemos?

Ensaio
19 Outubro 2023

Tolstoi publicou em 1857 o livro que intitulou Infância, Adolescência e Juventude. Ele nasceu em 1828 e, portanto, teria na altura da publicação vinte e nove anos. Para os parâmetros da altura, já era um homem suficientemente maduro para falar com distância daquilo que considerava a sua juventude. E descrevendo essa fase da sua vida e os conceitos e sentimentos que tinha em relação às pessoas que o rodeavam dizia que classificava os grupos sociais assim: “A minha divisão preferida, naquele tempo que estou a descrever, era em pessoas comme il faut e comme il ne faut pas. Estas últimas ainda se subdividiam em gente comme il ne faut pas propriamente dita e povo simples”.

Depois de se situar pessoalmente nos sentimentos em relação aos vários grupos diz que aos segundos, os que não eram comme il faut, os odiava e “os terceiros não existiam para mim, desprezava-os em absoluto”. Assim se confessava, em relação ao seu passado, o homem que no retiro de Iasnaia Poliana se quis vestir como os camponeses e identificar-se com eles. Tudo menos ser da classe dos que eram comme il ne faut pas

Não é difícil sobrepor esta classificação às designações vulgares usadas nas crónicas e nas conversas sociais, mais ou menos eruditas. Gente “fina” (e aqui há várias subdivisões possíveis) não suporta gente “pirosa” (mais uma vez com subdivisões possíveis que incluem o trabalhador manual com algum poder de compra), faz por esquecer que existem periferias, mas tem pena dos pobres. Destacam-se os que têm pena dos pobres em geral e abstrato, mas que são contra o aumento do salário mínimo no concreto, em relação ao qual são capazes de discutir cada cêntimo. Estes não hesitam em encher um saco com víveres suficientemente calóricos, para o entregarem à saída do supermercado para efeitos do Banco Alimentar.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.

 

Em relação à evolução que veio de meados do século XIX até agora, a forma como se olha o povo pobre mudou e as formas de caridade também. Já não é nada mau… Já existem, já são pessoas e há a noção de que necessitam de calorias suficientes para sobreviverem.

É preciso ser otimista… Estas formas de distribuição para a sobrevivência têm uma imagem muito diferente da transmitida por aquelas fotografias das senhoras das classes altas salazaristas que, de cima de varandas, distribuíam sacos de pão e pouco mais a umas humildes mulheres e crianças descalças que faziam cortejo em baixo. Isto veio até aos anos setenta do século XX, o conceito republicano de cidadão tinha sido proibido e os pobres (o povo?) eram de facto intocáveis. Até porque eram sujos e cheiravam mal.

A institucionalização do termo cidadão pela Revolução Francesa foi adotada, segundo a historiadora Miriam Halpern, pela nossa segunda Revolução Liberal, a de 1834. Ressurgiu de forma mais alargada e entre os mais avançados da nossa Primeira República e queria exatamente dizer que não havia “os senhores” e os outros, que todas as pessoas nascidas eram iguais em direitos e dignidade. Mas estava longe de significar uma igualdade de facto, pois todos eram desiguais no nascimento e na vida. No entanto, assim se pretendia apagar a diferença entre os nobres, mais ou menos sacralizados, e os outros, o povo. A palavra tinha então sentido.

E os escritores e artistas plásticos românticos e depois os naturalistas e os realistas criaram uma imagem, um conceito, que deu nobreza ao povo. Não é por acaso que a Câmara de Lisboa pagou em 1913 e 1914 aos escultores Costa Mota, tio e sobrinho, as esculturas do “Cavador” e da “Filha de rei guardando patos” que estão presentes no Jardim da Estrela.

O povo que trabalha

O “povo” tem atravessado, pois, cerca de dois séculos, com significados bem diferentes. É uma herança etimológica, com laivos de ideologias que foram passando. No entanto, o conceito do “povo que trabalha” pressupõe que os outros não trabalhavam e, de facto, assim era – os nobres vieram até aos nossos dias sem terem trabalho definido e as mulheres das classes altas e médias explicavam que não trabalhavam porque “não tinham necessidade”. O “povo que trabalha” foi-se reduzindo aos trabalhadores manuais.

E é na análise científica da realidade histórica e social que Karl Marx vai descrevendo a sua teoria do valor e apelando à associação daqueles que, nos países em industrialização, são criadores de mais-valia. Explorados, pois! É a 28 de setembro de 1864, numa pequena reunião em Londres, onde está presente Engels, mas não está Karl Marx, que fica decidida a criação do que veio a ser a Associação Internacional dos Trabalhadores, incluindo franceses, suíços, belgas, alemães e ingleses. Queria-se dizer trabalhadores manuais? Queria-se dizer criadores de mais-valia? Era uma Union Ouvrière como preconizava vinte anos antes Flora Tristan? Eram eles os operários de que tinha tratado Marx nos Manuscritos de 1844?

A verdade é que logo no primeiro Congresso foi decidido, após grande discussão, que os trabalhadores de profissões não manuais, como professores, médicos, jornalistas, escritores, tinham também direito a integrar a Associação. Nada fazia mais sentido, quando sabemos que muitos dos que tiveram a iniciativa não eram trabalhadores manuais e que entre estes últimos, os artesãos, embora trabalhando com as mãos, não eram os operários típicos da fábrica. No entanto, esta discussão vem até ao presente nas lutas ideológicas e eleitorais.

O chamado “ouvrieirismo” percorreu os partidos de esquerda, que reclamavam ter operários no seu seio e na sua direção e nos períodos eleitorais ostentam-se ainda hoje as ligações com o “povo”, fenómeno transversal a todos os partidos. De facto, os interesses das classes sociais são representados de forma diferente pelos vários partidos. Mas esclareça-se o que é o “povo” nas várias bocas. Quando o secretário-geral do Partido Comunista Português recorre com frequência à designação “o nosso povo”, de quem está a falar? Talvez seja possível uma conotação com os grupos sociais nascidos e vividos antes do 25 de Abril de 1974, que ainda têm memória da fome e da humilhação, um “povo” muito respeitável, que é nosso contemporâneo e que se revê nessas palavras. Mas há mais povo.

Há os filhos e netos dessa geração, de famílias que saíram de analfabetismo, da fome ou da escassez alimentar e que ascenderam à instrução, aos cursos secundários e superiores, alguns a pós-graduações académicas e que são a geração dos 600 a 1000 Euros, dos call-centers, da precariedade. Criadores de mais-valia com certeza, porque à medida que o seu número cresce, também cresce a desigualdade. Usufrutuários da comodidade a crédito, do consumismo, da ansiedade e da depressão, porque uma parte da vida se baseia no pagamento de uma dívida permanente, tal como o próprio Estado baseia o seu próprio funcionamento numa renda anual de pagamento da dívida, com juros tão grandes como o orçamento da Saúde.

Estes cidadãos, que são instruídos, que têm sofá, televisão e computador, são tão povo como os outros, que ainda trabalham com as mãos, porque nem tudo foi automatizado. Estes são os novos proletários e fica para a História da Arte e da Política a imagem romântica do cavador e do operário da ferrugem.

O “povo” que a Esquerda tem que defender tem, pois, muitas subdivisões. Para além dos operários e dos poucos trabalhadores rurais há estes novos grupos proletarizados e há os que estão nas periferias, os que estão nas margens e se sentem nas margens.

Porque entre os que trabalham, mas são trabalhadores pobres, os desempregados considerados como tal, mas que têm retaguarda familiar e os sem-abrigo que aparecem no serviço informativo das televisões em períodos de Festas, há uma zona cinzenta, que não se sabe como é que vive e que não tem visibilidade. E se ainda há uma nesga de projeto dum futuro vivível, pode-se pensar que após este período de desenvolvimento e de criação de emprego diferenciado que Portugal terá que ter, não é difícil imaginar que a automatização progressiva vai criar desemprego, um exército de desempregados, disponíveis a custo baixo e um exército de dispensáveis.

Para além dos sindicalizados e dos sindicalizáveis há, pois, todas estas fracções do “povo” que a nova realidade e os novos meios de produção impõem à análise e à prática. Há ainda outro “povo” no discurso. Quando o Presidente da República na mensagem do Ano Novo de 2018 falou do “povo”, “deste povo, do mais sofrido, do mais sacrificado, do mais abnegado” e que diz que “a palavra de ordem (…) vem do povo”, pressupõe-se pelo contexto que fala das populações do interior, mais isoladas, mais rurais, mais ancestrais, mais “do campo”, presentes nas narrativas tradicionais e nos estereótipos que os diferenciam dos “da cidade”. Isolados, pois, por mecanismos que vão muito além da vontade do Governo ou do Estado, entidades que aparecem confundidas no discurso e não são sobreponíveis.

E quando se diz que a palavra de ordem vem do povo, numa clara alusão ao “povo é quem mais ordena” do hino do Movimento do 25 de Abril, tão acarinhado pela esquerda, temos de facto aqui uma cebola de etimologia, que deve ser descascada.

Tanto para a Esquerda da Grândola Vila Morena como para o discurso presidencial, é perigoso falar do povo assim. Estamos a confundir classes e grupos sociais, populações e ordenamento geográfico, centralismo e descentralização. Claro que esta amálgama facilita o populismo, porque cada um se sentirá “povo” à medida do discurso e este será feito à medida do auditor predominante e da sua queixa da altura. É mais uma razão para a Esquerda ou a esquerda da Esquerda se debruçar sobre uma análise das classes na nova realidade criada pela evolução financeira e económica.

Genealogias da Esquerda

E nós quem somos? Qual é a nossa genealogia? Nós a “Esquerda” também temos tantas subdivisões quanto o “povo”.

Quanto à direita portuguesa, vai desde uma parte ligada familiarmente em sentido estrito a uma memória tradicional do Estado Novo e aos sectores mais conservadores da Igreja Católica, até à área dos antigos colonos deslocados, perdendo, a pouco e pouco, a ala mais ao centro da fração fundadora dos intelectuais insubmissos do marcelismo e ganhando os anjos, uns caídos, outros bem vivos, oriundos do oportunismo dos negócios.

Quanto à genealogia da Esquerda é também ela bem diversa. Como as circunstâncias nos têm reduzido às questões táticas e à chamada política do dia-a-dia, tanto a mais nobre, porque se reflete na vida das pessoas, como aquela mais mesquinha para que somos empurrados pelos casos particulares, deixou de se discutir ideologia e em termos de futuro queremos saber é o que se vai passar amanhã. Todos nos conformámos com a ideia de um dia de cada vez…

No entanto, transparecem as genealogias ideológicas mesmo quando se discutem as circunstâncias atuais. O Partido Socialista é uma manta de retalhos que vai desde os herdeiros dos velhos republicanos e opositores tradicionais ao regime da ditadura, até aos jovens que podiam ser do Bloco de Esquerda, mas que são pragmáticos e que quiseram pôr as mãos na massa agora. Dadas as circunstâncias, dificilmente conseguem ser herdeiros da ideia social-democrata europeia, que foi enterrada pela Terceira Via, mas pretendem sê-lo.

Quanto ao Partido Comunista, esse sim é herdeiro de uma estrutura ideológica, que pretende manter intacta e estática e, portanto, contrária a si própria e à sua origem. Mas já abandonou a ideia de pôr o operário ao peito e os mais jovens podem ter antecedentes no trabalhador tradicional, mas têm um grau de instrução superior.

Quanto à outra Esquerda, parlamentar e não parlamentar, na qual se inclui o movimento que tem expressão nesta revista, é uma Nova Esquerda, que veio com atraso em relação à dos países das democracias, como a Grã-Bretanha, a Alemanha Ocidental, a Itália, a Holanda, mas que apresenta novos aspetos. Tal como nesses países, a Nova Esquerda portuguesa vem de meios intelectuais e académicos.

No entanto, nos países das democracias do pós-guerra, a expressão política parlamentar foi essencialmente através dos partidos Verdes, sendo a ecologia uma espécie de cortina, para esconder um projeto de participação mais amplo, embora correspondesse ao sobressalto da angústia ecológica que sucedeu aos anos das revoltas dos jovens e das contraculturas. Nos países saídos das ditaduras – Portugal, Espanha e Grécia –, a Nova Esquerda tomou aspetos diretamente políticos e concluiu também que sem organização partidária não tinha expressão. É assim com o Bloco de Esquerda, o Podemos e o Syriza. São do povo ou vêm do povo?

Já nenhum deles se preocupa com pôr esse brasão ao peito. Mas não são a “esquerda caviar”, como a direita os designa depreciativamente, ou seja, a daqueles que sendo filhos das castas superiores ou das elites, redimem com posições à esquerda a má consciência pelas condições privilegiadas da sua classe de origem. Não é essa a genealogia da generalidade das pessoas destes movimentos. Pode dizer-se que são todos oriundos da “geração à rasca”, da contracultura, da informação alargada, da formação teórica especializada, em parte das redes sociais, mas também da angústia sobre o próprio futuro. Representam, de facto, novos problemas.

No entanto, podemos perguntar se este pessoal da democracia representativa e dos círculos a ela concêntricos é o tal povo, o “dêmos”, a quem deve ser dado o poder. É, de facto, o melhor que se pode arranjar, mas não é o poder do povo. Lá longe, nas reuniões à porta fechada das multinacionais que estão por trás do Fundo Monetário Internacional (FMI), lá longe nas reuniões dos poderosos de Billderberg, em Davos, decidem-se as grandes diretivas que vão ter reflexos sobre cada um dos cidadãos do Mundo. Estes, mesmo nas sociedades mais organizadas, na base, no bairro, na escola, no centro de saúde, só poderão decidir sobre detalhes, quando querem decidir, o que é raro. A forma mais comum é o protesto, ou seja, um gesto contra a decisão que vem de cima e não uma decisão em si. O Estado representa essa decisão que vem de cima e é considerado “o cobrador de impostos”.

Muitas são as interrogações e poucas as respostas para perceber os caminhos a tomar por aqueles que lutam para que cada cidadão tenha poder de facto para decidir da sua vida e para que se parta da igualdade, cada um estabelecendo as suas diferenças. Mas isso é o início de toda uma nova discussão.

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