Enfermeiro especialista em Saúde Infantil e mestre em Saúde Pública. Escreve regularmente sobre saúde, política e ambiente na imprensa.

Para onde vai a Saúde? O empurrar com a barriga da maioria absoluta do PS

Médicos e enfermeiros ganham hoje menos que antes da troika. Carreiras desadequadas, falta de profissionais, ausência de método para avaliar chefias e desinvestimento no Serviço Nacional de Saúde. Os profissionais de saúde merecem políticas públicas que os valorizem e fortaleçam a saúde pública. Quem vive e trabalha em Portugal merece um SNS de qualidade.

Ensaio
29 Junho 2023

Marta Temido tomou posse como ministra da Saúde a 30 de março de 2022. Com tanto que aconteceu desde então, até custa a acreditar que foi apenas há 15 meses que o governo de maioria absoluta do Partido Socialista iniciou funções.

Os anos anteriores foram marcados pela pandemia de covid-19. Não estávamos preparados para enfrentar esta ameaça e, em bom rigor, ninguém realmente o estava. A Saúde viveu dois anos de um paradoxo nunca antes experienciado: foi o centro de todas as atenções, nunca se falou tanto e durante tanto tempo dela, mas continuou a ser gerida numa lógica de curto prazo. O foco foi sempre apagar o fogo mais recente, que invariavelmente deflagrava, em vez de se planear e reorganizar todo o seu ecossistema.

Em poucos meses, a então ministra passou de uma das mais populares do governo para parecer dispensável. Uma sucessão de casos nas urgências em geral, na área da saúde materna em particular, expôs as fragilidades do sistema e selou o seu destino. Não conseguiu mobilizar o seu capital político para reformar e fortalecer o setor. Foi vítima do garrote exercido pelo Ministério das Finanças. Regressado de Bruxelas, Manuel Pizarro foi o seu substituto.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.

Nos últimos meses, o serviço público de saúde passou por alterações substanciais. Foi criada uma direção executiva, que pretende separar a gestão operacional da gestão política. Igualmente relevante, foi anunciada a intenção de extinguir as atuais Administrações Regionais de Saúde (ARS) e uma aposta séria e rápida em Unidades Locais de Saúde (ULS), estando previsto que, a curto prazo, 80% da população seja servida por 33 unidades.

Mas vamos por partes. Há uns meses, numa conversa com o antigo diretor geral de Saúde, Delfim Rodrigues, ouvi que os problemas na área da Saúde estavam sistematizados num triângulo de impossibilidades: as dimensões do acesso, a qualidade e o financiamento dos cuidados de saúde. 

De forma a melhor estruturar este ensaio, divido-o nestas três dimensões. Terá, no entanto, um foco prévio no diagnóstico sobre os profissionais de Saúde, que se justifica pela forma como condiciona todos os restantes níveis de análise.

Fortalecer as carreiras e salários dos profissionais de Saúde

Temos assistido a nível internacional a uma renovada preocupação com os profissionais de Saúde na sua dimensão laboral. Começando pela Organização Mundial de Saúde (OMS), passando pela OCDE ou pela própria Comissão Europeia, tem crescido o consenso de que é necessário melhorar as condições de trabalho destes profissionais. Não se consegue reter profissionais sem oferecer carreiras e salários adequados, para não dizer dignos. Sem estes profissionais não há prestação de cuidados de saúde. A necessidade de investir na sua formação e retenção é mais do que evidente.

O fim da pandemia destapou uma dura realidade. Ao fim de dois anos em que não houve lutas sindicais relevantes, pois a prioridade foi dar a necessária resposta à emergência de saúde pública, o cansaço acumulado, conjugado com baixos salários e ausência de estratégias de retenção, provocaram uma sangria nos recursos humanos do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Seja para o setor privado seja para estrangeiro.

Os anos anteriores foram marcados pela pandemia de covid-19. Não estávamos preparados para a enfrentar, ninguém realmente o estava. A Saúde foi o centro de todas as atenções, nunca se falou durante tanto tempo dela, mas continuou a ser gerida numa lógica de curto prazo. Apagaram-se os constantes fogos sem se planear e reorganizar todo o seu ecossistema.

O problema é mais grave nos médicos especialistas que, na maioria dos casos, concluem a sua formação entre os 32 e os 34 anos. A partir dos 50 anos, os médicos que queiram estão dispensados de fazer urgências noturnas e, a partir dos 55, estão dispensados de fazer urgências, tanto no período diurno como no noturno. Torna-se evidente a necessidade de estratégias eficazes para reter estes profissionais. São estes especialistas que garantem as urgências abertas. São também eles que mais abandonam o SNS, expondo as fragilidades de um sistema que sempre usou as urgências como rede de salvaguarda.

Médicos e enfermeiros ganham hoje menos, em termos reais, do que ganhavam na fase pré intervenção externa da troika (2011-2014). Esta realidade não começou nestes tempos de inflação elevada, mas foi naturalmente agravada pela pressão inflacionária. Carreiras desadequadas, ausência de método para selecionar e avaliar chefias intermédias, sistemática ausência de investimento em infraestruturas e equipamentos e ausência de esforço para responder às expectativas dos trabalhadores da saúde (horários e desenvolvimento profissional) completam os problemas sentidos no terreno. Problemas que afastam profissionais do serviço público.

É preciso relembrar que Portugal continua a ser uma exceção na OCDE na forma como organiza a prestação de cuidados de saúde. Os papéis sociais da Saúde continuam demasiado centrados na figura médica, com óbvios prejuízos para o cidadão. A tese de doutoramento de Marta Temido abordava este problema, mas a ex-ministra não teve coragem, ou apoio, para enfrentar o forte corporativismo e conservadorismo no setor.

Estes 15 meses de governação trouxeram a promessa de finalmente se resolver o problema da ausência de uma carreira para os assistentes operacionais. Luta justa. Todos os trabalhadores merecem uma carreira adequada às suas funções. Nas restantes profissões continua tudo semelhante à situação pré-pandémica. Persistem as desigualdades entre funcionários públicos e trabalhadores com contrato individual de trabalho em funções públicas, sendo sempre importante relembrar que os últimos são a grande maioria nos hospitais. Têm carreiras desadequadas e salários reais que diminuem ano após ano. A nível europeu, a remuneração dos enfermeiros que trabalham em Portugal é a antepenúltima, apenas acima da Letónia e da Lituânia. 

Em 2022, o SNS pagou 108 milhões de euros aos médicos por horas extraordinárias em serviços de urgência. Este valor permitiria contratar 2775 novos médicos. Foram igualmente pagos 140 milhões de euros a empresas de prestação de serviços que subcontratam médicos para os serviços de urgência. Por este valor, poderíamos contratar 3597 novos médicos. Ou seja, o que nos afasta de construir serviços de urgência de qualidade com profissionais especializados em número suficiente não são problemas financeiros. São opções de política pública.

O SNS não pode depender das urgências

Longe vai o ano de 2018, quando após três anos de redução, apenas 690 mil residentes não tinham médico de família. O primeiro-ministro António Costa estava otimista e prometia uma equipa de família completa para todos. A realidade foi cruel. 

Os últimos dados disponíveis, já deste ano, apontam para 1.708.745 utentes sem acesso a médico de família. O acesso a cuidados preventivos e de promoção da Saúde está seriamente condicionado, o que provoca pressão adicional nos serviços de urgência. Mas a resposta para aliviar a pressão destes serviços tem sido estranha. Desde encerramentos até planos para que o uso da urgência se faça apenas por referenciação. Empurramos as pessoas para os serviços de urgência, para depois ficarmos muito surpreendidos por existirem tantas “urgências injustificadas”. 

O problema das urgências é multifatorial, não pode ser reduzido apenas a uma causa. Mas é inegável que quanto mais dificultado o acesso aos cuidados de saúde primários, mais pressão se fará na única porta do SNS que permanece aberta.

Ao fim de dois anos em que não houve lutas sindicais relevantes, o cansaço acumulado, conjugado com baixos salários e ausência de estratégias de retenção, provocaram uma sangria nos recursos humanos do SNS. Seja para o setor privado ou para estrangeiro.

Ainda no tema das urgências, e revelador do da diminuição de capacidade de resposta que estes serviços apresentam, o número de utentes que esperava pelo menos seis horas situava-se nos 15% em 2017. Este ano o valor ascende a 23%. Este aumento não é apenas um castigo para quem espera. É um problema de saúde pública. Ao fim de quatro horas de espera, o risco de mortalidade nos dias após o uso da urgência aumenta em proporção da espera.

Na dimensão do acesso nem tudo tem sido negativo. A produção cirúrgica bateu um novo recorde em 2022 e tudo indica que ultrapasse este valor este ano, estabelecendo o inédito feito de três anos consecutivos de novos máximos de produção cirúrgica. A criação de novos modelos de gestão intermédia, de centros de responsabilidade integrada, onde as equipas têm autonomia e são responsabilizadas pelos seus resultados, tem alavancado esta subida de produção. Isto demonstra que o serviço público de saúde tem potencialidade para produzir muito mais, dando resposta a mais necessidades em saúde, contribuindo para os projetos de vida dos indivíduos e para o bem estar da comunidade. Já sabemos que há dinheiro para investir, é preciso que haja vontade política para tomar as decisões certas e aumentar a capacidade instalada do SNS.

A saúde mental, tanto nos adultos como na idade pediátrica, tem imensas lacunas. Tanto a nível do atendimento de urgência, onde as respostas são cada vez menos, como a nível do seguimento na comunidade, promovendo a saúde, prevenindo a doença e gerindo-a da doença. Nunca foi fácil dar resposta a estas situações. 

Quem está no terreno sente que é cada vez mais difícil. As opções escasseiam, os fluxos de doentes são intensos, havendo regiões do país onde virtualmente não há resposta. No Algarve apenas existe um pedopsiquiatra, a meio tempo (!); no Alentejo existem dois; na região de Lisboa e Vale do Tejo, a oferta é condicionada, com horários reduzidos e elevado tempo de resposta.

Merecemos um SNS de qualidade

Qualidade em saúde é um conceito demasiado abrangente para ser abordado em meia dúzia de parágrafos. Dada a hegemonia do pensamento centrado no valor económico - ou em serviços de saúde lucrativos -, a qualidade tende a ser confundida com a perceção subjetiva dos utentes. Neste ponto, o inquérito europeu sobre a satisfação com os serviços de saúde refere que em Portugal, apesar de toda a publicidade negativa, 64% das pessoas diziam-se em 2022 satisfeitas com o SNS, uma redução de dez pontos em comparação com 2021. É de realçar tratar-se de um valor em linha com o encontrado noutros países europeus.

Os restantes indicadores clássicos de qualidade, na vertente dos resultados, têm evoluções díspares. A mortalidade materna tem apresentado uma tendência de subida no período 2017-2020, apresentando uma descida de 58% no ano 2021. Ainda não temos dados referentes a 2022 para averiguar se a descida foi resultado de uma alteração estrutural ou um fenómeno isolado. 

Para evitar alarmismos: o pico atingido em 2020 foi o valor mais elevado nos últimos 38 anos. No entanto, há algumas circunstâncias a ter em conta. Até 2016, a mortalidade materna encontrava-se subnotificada. O aumento da idade das pessoas grávidas, e a correspondente comorbilidade associada, também contribui para o aumento do risco de mortalidade. É inegável que tenha ocorrido um aumento sustentado desde que o sistema de notificação foi melhorado, seguido de uma descida em 2021.

O serviço público de saúde tem potencialidade para produzir muito mais, contribuindo para os projetos de vida dos indivíduos e para o bem estar da comunidade. Há dinheiro para investir, é preciso que haja vontade política para tomar as decisões certas e aumentar a capacidade instalada do SNS.

Quando tivermos os dados de 2022, poderemos ter mais certezas sobre esta tendência. Não deixam de ser preocupantes os relatos do aumento de dificuldades das grávidas em ter a sua vigilância de saúde feita nos momentos certos, o que, acrescentado aos encerramentos dos blocos de partos, traça más perspetivas para o futuro imediato.

A mortalidade infantil apresentou um ligeiro aumento em 2022, depois de cinco anos de descida constante. Mas esta leitura é simplista. Entramos no reino dos pequenos números, onde pequenas oscilações provocam variações nos resultados finais. O aumento verificado em 2022 corresponde ao 4º melhor ano de sempre neste indicador. Estes resultados obtidos permitem demonstrar a qualidade dos cuidados prestados nesta faixa etária. Apesar de termos piores indicadores socioeconómicos, o que diminui o nosso potencial de saúde, conseguimos obter resultados superiores à média europeia.

Noutros indicadores menos escrutinados, observamos que a mortalidade por Acidente Vascular Cerebral (AVC) apresenta uma tendência de descida e o número de doentes com cirurgia efetuada em 48 horas por fratura da anca não sofreu alterações. 

Em média, os doentes permaneceram nove dias internados nos hospitais públicos, enquanto nos hospitais privados se atinge os 11 dias. Considerando que o serviço público recebe doentes tendencialmente mais complexos, tem médias de internamento inflacionadas pelos internamentos sociais e mesmo assim consegue apresentar menos dois dias de internamento, demonstra-se a eficiência do SNS em situação de doença aguda. É um serviço que deve ser preservado e reforçado.

Os próximos meses serão essenciais para esclarecer estas dinâmicas. Precisamos de mais dados que permitam esclarecer a evolução recente da qualidade dos cuidados prestados. Sem cair nos dois extremos: no alarmismo injustificado e na desvalorização e inação.

Não devem ser as famílias a pagar pelo acesso à Saúde

O financiamento dos cuidados de saúde em Portugal é um paradoxo. Temos um sistema beveredgiano, baseado em impostos, mas no qual o papel do Estado tem recuado no financiamento dos cuidados de saúde: em 2019, o financiamento estatal ficou-se pelos 63% do total. O recuo do Estado não correspondeu a um aumento do papel dos seguros, mas sim a um aumento do papel das famílias. Ou seja, o sistema tornou-se mais desigual.

Os locais onde as famílias mais gastam também é revelador das dificuldades de acesso que o SNS apresenta. Copagamentos a hospitais privados, de ambulatório privado, seja para urgências, seja para consultas e exames, a farmácias, a serviços de saúde oral e de visão e,por fim, cuidados continuados. Investir e aumentar a oferta de serviços do SNS significa diminuir as desigualdades socioeconómicas. 

Poderíamos no curto prazo rever o regime de comparticipação do medicamento, aumentando-o para grupos etários específicos, como para menores e após os 65 anos. Melhorar a acessibilidade ao ambulatório público teria igualmente efeitos bastantes positivos no equilíbrio do financiamento dos cuidados de saúde, garantindo igualmente uma melhor prevenção da doença.

Nos últimos anos têm-nos sido prometidos investimentos cada vez maiores, mas a execução defrauda sempre as expectativas. Em 2022 ficou mesmo 70% abaixo do previsto. Poupanças de curto prazo correspondem apenas a maiores custos no longo prazo e à degradação dos serviços. A história recente deste indicador não augura boas expectativas para este ano. E o SNS precisa urgentemente de um robusto plano plurianual de investimentos.

Empurrar as carreiras com a barriga

Os 15 meses de maioria absoluta do PS corresponderam, até agora, a um empurrar para a frente das condições laborais dos profissionais de saúde. O acesso aos cuidados de saúde na comunidade e urgência apresenta degradação, consequência da carência de profissionais, ainda que tenha havido um aumento da eficiência na produção cirúrgica. A qualidade dos cuidados aparenta não ter sofrido alterações. É cedo para se fazer uma análise profunda da dimensão do financiamento, mas o histórico recente não augura boas perspetivas.

A aposta em Unidades Locais de Saúde (ULS) pode ser positiva. Precisamos de integrar cuidados, por todos os motivos: centrar os cuidados no cidadão, ganhos de eficiência e de qualidade. Mas é preciso não esquecer que não serão as ULS a resolver este problema. É preciso mudar a cultura organizacional de todo o sistema, incluindo a componente jurídica e a forma como financiamos os cuidados de saúde.

É importante saudar o esforço que a Direção Executiva tem feito na simplificação de processos relativos a baixas médicas. É verdade que há um ganho imediato para o sistema, ao libertar tempos de consulta médica, mas também há um enorme ganho para o cidadão. Ele fica no centro dos cuidados e é mais respeitado, sendo dispensado de processos redundantes e repetitivos. E é retirada, ou atenuada, a aura de eterna desconfiança sobre a doença dos cidadãos. 

Não nos podemos esquecer do que queremos para a Saúde. Não ficamos contentes com manutenção do SNS. A luta por um serviço público de saúde geral, universal e (tendencialmente) gratuito envolve bem mais do que lutar pela sua existência. É preciso oferecer uma alternativa de expansão dos serviços e aumentar o acesso e a qualidade dos cuidados prestados. Sem descurar a equidade no seu financiamento. 

O SNS cria coesão social, permite que prossigamos com os nossos projetos de vida e cria crescimento económico. Para quem gosta de números: o retorno económico do SNS em 2022 atingiu quase oito mil milhões de euros. O serviço público de saúde acrescenta valor à comunidade, temos de o preservar e investir na sua expansão.