O tempo que o tempo tem

Nas reportagens televisivas de média e longa duração, o planeamento e a produção assumem particular relevância, sobretudo em lugares remotos, onde as possibilidades de repetir uma entrevista ou sequência de imagens são praticamente inexistentes. Por muito que o repórter desbrave terreno, há aspectos que fogem ao seu controlo.

Ensaio
3 Março 2022

Contar antes dos outros, editar em contra-relógio para contrariar a inexorável dança dos ponteiros, encaixar a história num tempo necessariamente curto, cortar, escolher, decidir, são práticas presentes no dia-a-dia dos jornalistas de todas as latitudes. Nos regimes democráticos, as redacções são - regra geral - espaços de liberdade, debate e troca de opiniões entre os jornalistas, mas, paradoxalmente, estes vivem subjugados à ditadura do tempo, desde o processo de preparação e produção do trabalho à extensão e ao pulsar da própria reportagem.

Nas reportagens televisivas de média e longa duração, o planeamento e a produção assumem uma particular relevância, sobretudo em lugares remotos, onde o tempo de permanência é limitado e as possibilidades de repetir uma entrevista ou uma sequência de imagens são praticamente inexistentes. Por muito que o repórter desbrave terreno, há aspectos que fogem ao seu controlo se não forem atempadamente planeados.

Em 2016, viajei com o repórter de imagem Luís Pinto para as Ilhas Svalbard, a convite do Conselho Norueguês das Pescas – Norge – que, ciclicamente, promove expedições com grupos de jornalistas de diferentes nacionalidades. O arquipélago é o último reduto habitado antes do Polo Norte. O programa incluía cinco dias de permanência na capital, Longyearbean, e uma viagem-relâmpago de avião ao Centro Internacional de Investigação Científica do Ártico, em Ny Alesund, para filmar os glaciares e contactar com as equipas de investigadores de 10 nacionalidades que ali estudam as causas e os efeitos das alterações climáticas.

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Ny Alesund, como se percebe, é uma fonte inesgotável de informação, mas as regras são claras: não é permitido permanecer mais de 6 horas no território. Esta limitação temporal acabou por condicionar substancialmente a reportagem, à semelhança do que ocorreu, no mesmo período, em Longyearbean, onde tínhamos planeado gravar uma história no único banco de sementes do planeta, construído para fazer face a eventuais catástrofes ambientais ou conflitos nucleares que ocorram numa determinada zona do globo.

Por razões de segurança, o acesso de jornalistas ao enorme bunker cravado no subsolo gelado das Svalbard só é possível mediante um pedido dirigido às autoridades norueguesas, com uma considerável antecedência. O pedido foi formalizado ainda em Portugal, mas a resposta não chegou em tempo útil. E assim se perdeu uma oportunidade que dificilmente voltará a surgir.

São exemplos dos constrangimentos ditados pela escassez de tempo de permanência no terreno ou na fase de produção do trabalho, mas há também situações em que o “arrastar” de uma determinada reportagem ou investigação jornalística acaba por condicionar ou comprometer a própria história. Em Maio de 2020, a SIC decidiu produzir uma série de trabalhos sobre os efeitos da covid-19 no quotidiano dos portugueses, a emitir a partir de Outubro. As equipas de reportagem fizeram-se, de imediato, à estrada, para tentar captar a realidade do período pós-confinamento.

Mas, no quadro de incerteza e evolução da pandemia, quantas das informações, das imagens e dos depoimentos recolhidos nesse momento-chave resistirão à passagem dos dias? São dúvidas e angústias que assaltam todos os jornalistas, naquela que é uma das fases mais complexas do processo de construção da reportagem: escolher o que fica e o que sai e decidir o rumo final que a história vai tomar.

O tempo da narrativa jornalística

Walter Benjamin dizia que “contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo”, numa alusão ao modelo narrativo baseado na tradição oral, cujo declínio se inicia com o advento da imprensa. Transpondo a formulação do filósofo e ensaísta alemão para a realidade mediática dos dias de hoje, diríamos que contar histórias é a arte de as contar pela primeira vez, o que, num cenário de informação pulverizada e em constante actualização, coloca os jornalistas perante o desafio de conquistar, a todo o momento, a atenção daqueles a quem os seus artigos - escritos ou audiovisuais - se dirigem.

No caso da televisão, a agilização dos directos e o recurso a elementos gráficos e formas de captação e edição de imagem cada vez mais sofisticados, desempenham um papel de relevo neste “jogo de sedução” permanente. Mas é no valor da história e na organização da estrutura narrativa que tudo se decide.

Dimas Kunsch, doutor em ciências da comunicação pela Universidade de S. Paulo (USP) defende que “a boa narrativa jornalística conversa com a literatura e a arte, o mito, o símbolo, a metáfora, esses reservatórios inesgotáveis de estímulos para um pensamento que se promove no diálogo dos diferentes, no cultivo do pluralismo”. Nesta linha de raciocínio, o jornalista é chamado a dominar um conjunto de recursos estéticos e linguísticos que lhe permitam “urdir” uma história acessível a um conjunto alargado de indivíduos, sem desviar o foco da realidade. Uma prática que devia integrar o ADN de todas as redações, como sucede, por exemplo, na Sky News, cujo modelo narrativo alia rigor, credibilidade e sobriedade.

Para além da elegância da escrita, simples e sensorial, e da expressão oral cuidada, os jornalistas da cadeia britânica imprimem às reportagens uma cadência peculiar, assente em frases curtas e assertivas, entrecortadas por pausas - “respiros” - que nos transportam para o palco dos acontecimentos e nos remetem para os alicerces da narrativa de tradição oral, fonte primeira do processo de comunicação humana. Foi pela repetição da palavra que, durante séculos, se perpetuou a memória das civilizações. Os exemplos abundam. A descrição da origem do povo Angolar - uma pequena comunidade de São Tomé e Príncipe - exibida pela RTP2 em finais de Julho na série documental “As Rotas da Escravatura” é, a todos os títulos, notável. Rodeado por um grupo de jovens que o escutam em venerando silêncio, um ancião relata, em crioulo, a saga do navio negreiro que, há 500 anos, naufragou próximo da ponta sul da Ilha de São Tomé:

“O navio vinha de Angola e trazia pessoas. O navio partiu-se e as pessoas nadaram para se salvar. Quatro delas nadaram até à Praia Celeste. Quando chegaram à Praia Celeste ficaram lá muito tempo. Constituíram família e tiveram filhos.”

O nascimento de um povo condensado num relato de 30 segundos é um assinalável exercício de comunicação verbal. O jornalista e académico brasileiro Luiz Gonzaga Motta, autor de Análise Crítica da Narrativa diria que o velho angolar “empalavrou” o tempo.

A tanto se resume este nobre ofício de contar as histórias que o tempo tece.

O autor escreve segundo o antigo acordo ortográfico.

Este testemunho foi originalmente publicado no Manual de Reportagem REC, organizado por Pedro Coelho, Ana Isabel Reis e Luís Bonixe, e editado pelos Livros Labcom em 2021.