Escritor palestino, autor de The History and Politics of the Bedouin e My Life As An Alien

O Massacre da Farinha é mais um horrível crime de guerra israelita

Israel continua o seu ataque implacável contra civis em Gaza. As tropas israelitas mataram mais de 100 palestinianos esfomeados que esperavam pela farinha dos camiões de ajuda humanitária.

Ensaio
7 Março 2024

No passado dia 29 de fevereiro, as tropas israelitas dispararam ao amanhacer, na cidade de Gaza, contra uma multidão de palestinianos esfomeados que aguardavam os camiões de ajuda humanitária. Mataram mais de cem pessoas e feriram mais de mil. Prevê-se que o número de mortos aumente, uma vez que a maioria dos hospitais de Gaza deixou de funcionar por falta de combustível, medicamentos e sangue.

As imagens mostram soldados israelitas a disparar indiscriminadamente contra milhares de civis que se reuniram na rotunda de al-Nabulsi, na rua al-Rasheed, para receberem farinha dos camiões de ajuda humanitária. Fontes médicas referem que a maioria das vítimas foi atingida diretamente na cabeça, no peito e no estômago. Jadallah al-Shafei, diretor de enfermagem do hospital al-Shifa, no norte de Gaza, disse à Al Jazeera: "Todos os ferimentos resultam de tiros e projéteis de artilharia, as alegações [israelitas] de uma debandada são inteiramente fabricadas".

Os tanques israelitas passaram por cima de cadáveres e feridos. Muitas vítimas foram levadas para os hospitais em carroças de burro, uma vez que as ambulâncias não conseguiram chegar ao local para recolherem todos os mortos e feridos.

O cenário assemelhava-se a um matadouro. A maior parte das vítimas eram crianças. Ouviu-se uma mãe desolada gritar entre a multidão: "A minha menina foi-se, está a morrer de fome há sete dias". No hospital de Kamal Adwan, uma mulher implorava ao mundo: "Estamos a ser cercados. Tenham pena de nós. O Ramadão está quase a chegar. As pessoas deviam olhar para nós. Tenham pena de nós".

O massacre é um crime de guerra em cima de outro crime de guerra, uma vez que Israel massacrou civis que tem vindo a matar de fome há meses, e cujo único crime foi fazer fila para receber farinha para as suas famílias. Os responsáveis palestinianos descreveram a carnificina como um "massacre a sangue frio". Os palestinianos chamaram-lhe o Massacre da Farinha — ou, talvez mais apropriadamente, o Massacre da Farinha Vermelha, em referência à farinha manchada de sangue deixada espalhada pelo chão.

O Conselho de Segurança das Nações Unidas convocou uma reunião de emergência. O chefe da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA) descreveu "mais um dia de inferno" em Gaza, enquanto o chefe da ajuda da ONU, Martin Griffiths, lamentou a "vida que se esvai de Gaza a uma velocidade assustadora". Na sequência do massacre, o presidente colombiano Petro Gustavo suspendeu a compra de armas a Israel, afirmando: "O mundo inteiro devia bloquear [Benjamin] Netanyahu".

Entretanto, Itamar Ben-Gvir, ministro da Segurança Nacional de Israel, saudou os soldados que cometeram o massacre como "heróis", prometendo apoio total às tropas israelitas em Gaza. Utilizando drones fabricados nos Estados Unidos, as forças israelitas registaram a carnificina a partir do ar para se divertirem. Os canais de Telegram israelitas celebraram o massacre de palestinianos esfomeados, aplaudindo a perspetiva de canibalismo. Muitos israelitas têm defendido a morte dos palestinianos famintos em Gaza.

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O número de mortos na Palestina já ultrapassou os 30 mil, na sua maioria mulheres e crianças. Mais de 70 mil pessoas já ficaram feridas. Cerca de dois milhões de civis foram deslocados. Metade da população está a passar fome. Pensa-se que várias centenas de milhares de palestinianos permanecem no norte de Gaza, apesar das ordens israelitas para se evacuar a área; muitos foram reduzidos a comer ração de animais para sobreviver. As imagens de crianças magras a vomitar alimentos de origem animal e depois a morrer chocam quem as vê. Os médicos de Gaza têm vindo a alertar para o facto de a crescente fome em Gaza estar a "transformar as crianças em esqueletos".

O mundo está a testemunhar a desumanização brutal de todo um povo em plena luz do dia, uma vez que milhares de palestinianos esfomeados se aglomeram diariamente ao longo da praia de Gaza, acenando desesperadamente aos aviões de ajuda que lançam comida para longe e para o mar.

As organizações internacionais estão a agir de forma impotente. As organizações de ajuda humanitária dizem que se tornou quase impossível entregar o que seja em Gaza, por causa da presença do exército israelita. No início deste mês, o Programa Alimentar Mundial (WFP) da ONU anunciou que estava a suspender as entregas no Norte devido ao caos crescente e aos bombardeamentos incessantes, apesar de ter avisado que "a fome é iminente".

Durante quase cinco meses, e apesar dos apelos internacionais para se permitir a entrada de ajuda em Gaza, Israel privou a Faixa sitiada de alimentos, água e medicamentos. Selou a passagem de Rafah com o Egito, enquanto os colonos e soldados israelitas continuam a bloquear os camiões de ajuda no posto fronteiriço israelita de Kerem Shalom. Entretanto, multidões de colonos israelitas, que têm exigido autorização para recolonizar Gaza, invadiram o posto de passagem de Erez, junto ao muro da fronteira com Gaza, numa tentativa de construir colonatos sobre as ruínas dos palestinianos deslocados.

Falando em vidas palestinianas, o presidente dos EUA, Joe Biden, afirmou que a morte de mais de uma centena de palestinianos junto a camiões de ajuda humanitária vai complicar as conversações de cessar-fogo. Mas a verdade é que a administração Biden é ela própria culpada por estas atrocidades, tendo vetado três resoluções da ONU que apelavam a um cessar-fogo em Gaza, ao mesmo tempo que enviava equipas da sua Força Aérea para Israel, para ajudar nos seus crimes e no genocídio em Gaza.

Os Estados Unidos também têm sido parceiros na fome dos palestinianos em Gaza, o que constitui um crime de guerra, um crime contra a humanidade e um ato de genocídio. A administração Biden continua a suspender a ajuda à UNRWA, mesmo quando os funcionários dos EUA alertam que Gaza está a "transformar-se em Mogadíscio". Agindo como impotentes perante Israel, os Estados Unidos estão agora a explorar a possibilidade de "largar" alimentos de aviões militares americanos sobre Gaza — em vez de tentarem parar o ataque que torna esses lançamentos aéreos necessários.

O massacre da rua al-Rasheed põe a nu o desprezo flagrante que Israel tem pela justiça internacional. Aconteceu um mês depois de o Tribunal Internacional de Justiça ter ordenado a Israel que pusesse termo ao seu "genocídio plausível" em Gaza. E aconteceu apenas um dia depois de o Parlamento Europeu ter apelado a um cessar-fogo permanente em Gaza.

Encorajado pela cumplicidade dos Estados Unidos, Israel continua a agir impunemente em Gaza, numa violação flagrante das leis e normas internacionais. Mas, como Israel continua a beneficiar do apoio incondicional da administração Biden, é difícil perceber por que razão deveria parar de massacrar os palestinianos.

Ensaio publicado originalmente na Jacobin Magazine.