Economista, professor no Instituto Superior do Trabalho e da Empresa, do Instituto Universitário de Lisboa, e investigador no Dinâmia’CET. Escreve regularmente no blogue de economia política Ladrões de Bicicletas.

O Estado para além das falhas de mercado

É habitual ouvir-se que o Estado existe para corrigir as falhas dos mercados. A expressão é usada de forma vaga, mas na sua origem tem um significado preciso. Ao reconhecer a existência de falhas, a Economia convencional abre portas à intervenção do Estado. No combate político, o argumento é útil para quem defende a importância da ação pública, mas é um conceito que deve ser usado com sentido crítico.

Ensaio
7 Dezembro 2023

O equilíbrio de mercado em concorrência perfeita constitui uma referência para a teoria neoclássica, o paradigma dominante na ciência económica desde meados do século XX. Um mercado em concorrência perfeita é uma abstracção. Consiste numa situação ideal caracterizada por um grande número de vendedores e de compradores, em que cada um deles teria como objectivo maximizar o seu bem-estar individual, todos teriam acesso a toda a informação disponível, os bens oferecidos por diferentes produtores seriam indistintos, nenhum dos intervenientes teria a capacidade para determinar os preços de mercado, as acções de cada indivíduo não causariam qualquer prejuízo ou benefício imprevisto aos restantes, e nenhum dos intervenientes teria dificuldade em aplicar os seus recursos (trabalho ou capital) noutras actividades.

Um dos aspectos mais fascinantes da teoria neoclássica – e que explica uma parte do seu sucesso – foi a demonstração matemática de que um mercado com aquelas características asseguraria uma alocação perfeitamente eficiente dos recursos. No longo prazo, o preço de mercado seria igual ao custo médio de produção, todos os bens procurados pelos consumidores seriam produzidos e todos os bens que os produtores oferecessem seriam consumidos.

Em suma, o funcionamento do mercado em concorrência perfeita levaria a uma situação em que todos os intervenientes estariam a maximizar o seu bem-estar e nenhum recurso estaria a ser desperdiçado. Este equilíbrio de mercado corresponderia assim a um "óptimo de Pareto", ou seja, é possível melhorar a posição de um interveniente sem prejudicar a posição de algum outro. A teoria neoclássica conseguia assim ilustrar com rigor a intuição dos liberais clássicos segundo a qual os vícios privados geram benefícios públicos. Este ideal de perfeição exerceu desde então um fascínio inescapável junto de grande parte dos economistas.

Economia convencional e neoliberalismo

Na verdade, aprende-se nas faculdades desde cedo que a concorrência perfeita é uma construção hipotética, sendo raro ou mesmo impossível encontrar mercados reais a funcionar de acordo com os pressupostos referidos. Aprende-se também que se alguma das hipóteses não se verificar, deixam de ser válidas as conclusões sobre a optimalidade dos mecanismos de mercado.

Basta, por exemplo, que os produtos disponíveis não sejam exactamente idênticos, sendo valorizados de modo distinto pelos consumidores (como acontece com quase todos os bens oferecidos por diferentes marcas, que procuram distinguir-se umas das outras em certos atributos). Ou que nem todos os intervenientes tenham acesso à mesma informação sobre os preços, as quantidades ou a qualidade dos produtos (como se verifica nos serviços de saúde, no que respeita à relação entre médicos e pacientes). Ou que alguns indivíduos tenham dificuldade em alocar os seus recursos a outras actividades (como acontece aos trabalhadores menos  qualificados em contextos de desemprego elevado). Ou ainda que as acções de certos indivíduos  afectem positiva ou negativamente o bem-estar de outros, mesmo que não o façam de modo deliberado (o que se verifica nas actividades poluentes, ou que produzem informação e conhecimento).

É a estas e outras situações, em que o mundo real se afasta das condições hipotéticas da concorrência perfeita, que os economistas chamam falhas de mercado. Quando elas estão presentes, deixa de ser válida a conclusão de que as interacções de mercado, sem interferência externa, conduzem a resultados socialmente óptimos.

Pelo que escrevi acima, é fácil de entender que as falhas de mercado são a regra, não são a excepção. O facto de o mundo real funcionar sob condições muito distintas do modelo hipotético da concorrência perfeita permite justificar a intervenção do Estado nas economias sem sair do paradigma da teoria económica convencional. Ao contrário do que muitos julgam, a noção de que as autoridades públicas devem interferir nos mecanismos de mercado para melhorar o seu desempenho é compatível com a teoria económica dominante. Neste sentido, é um erro confundir a teoria neoclássica com o fundamentalismo de mercado típico do discurso neoliberal contemporâneo.

É interessante, a este propósito, constatar que uma das correntes teóricas em que assenta a doutrina neoliberal – a Escola Austríaca – afasta-se da teoria neoclássica, entre outros aspectos, na concepção de mercado. Para autores como Von Mises e Hayek, a noção de perfeição não faz sentido quando se analisa o funcionamento das economias. Na sua visão, o conhecimento dos indivíduos sobre o contexto em que se encontram e sobre o modo como o sistema funciona é disperso, local, parcial e largamente tácito, logo dificilmente partilhável. É a diversidade inerente a um tal sistema, associada à liberdade de cada indivíduo para agir como melhor entende, que asseguram a dinâmica do sistema capitalista. De acordo com os economistas austríacos, é precisamente por serem imperfeitos que os mercados são tão eficazes na produção de riqueza.

Ou seja, a concepção idealizada do mercado em concorrência perfeita, que serve de referência à teoria económica convencional, não é suficiente nem necessária para defender um Estado mínimo. Pelo contrário, o argumento das falhas de mercado, levado ao limite, pode justificar a interferência das autoridades públicas em vastas áreas da vida em sociedade. Isto não significa que a visão neoclássica seja ideologicamente neutra. Muito menos significa que constitua um modo razoável de compreender o mundo.

Quatro problemas do fascínio pelo mercado ideal

A tendência da Economia convencional para tomar a concorrência perfeita como ponto de partida das suas análises, mesmo aceitando o irrealismo daquele modelo, limita e deturpa o entendimento sobre o funcionamento das economias e das sociedades. Isto afecta também o modo como vemos o papel do Estado, por vários motivos.

Primeiro, atribui aos mercados um papel primordial no funcionamento das economias. Tal como o evangelho segundo São João nos diz que no princípio era o Verbo, a teoria neoclássica leva-nos a acreditar que antes de haver Estado existiam os mercados. Como se as trocas mercantis fossem o estado natural das coisas e a intervenção pública algo que surge para as perturbar ou melhorar. Esta visão está de tal forma inculcada na formação dos economistas que muitos não se apercebem que a existência de mercados pressupõe a definição prévia de direitos e obrigações, cabendo aos poderes públicos estabelecê-los e fazê-los cumprir.

Tal como Karl Polanyi e outros economistas institucionalistas evidenciaram, a ideia de que no princípio havia mercados é uma ficção histórica, que ignora os processos através dos quais se constituíram e desenvolveram as sociedades mercantis. Os Estados não são elementos estranhos aos mercados, são antes um instrumento fundamental para que aqueles existam e subsistam.

Segundo, ao ver a economia como um sistema assente em trocas mercantis a teoria convencional ilude o facto de que grande parte das actividades de produção, troca e acumulação de recursos se processa fora da esfera mercantil. A maioria das transacções em que nos envolvemos diariamente tem lugar no seio de organizações – empresas, escolas, hospitais, administração pública, sindicatos, instituições de solidariedade social, cooperativas, organizações não-governamentais, etc. No seu seio, as interacções entre indivíduos não estão sujeitas a lógicas fundamentalmente mercantis, mas antes a relações hierárquicas, a rotinas mais ou menos implícitas, a valores partilhados e a expectativas de comportamento apropriado. Através do seu poder para estabelecer regras e do seu papel como actor social destacado, o Estado influencia as relações não-mercantis que têm lugar dentro das organizações e entre elas.

Terceiro, e de forma relacionada, a obsessão da Economia convencional pelas trocas entre indivíduos em contextos idealizados leva-a a abstrair-se dos processos através dos quais se formam os gostos e os valores dos participantes. Como se estes fossem imutáveis, em vez de influenciados pelas dinâmicas sociais, incluindo a intervenção dos Estados. A intervenção pública não se limita a influenciar as decisões individuais dadas as preferências de cada um: o modo como os Estados actuam ajuda a moldar essas preferências.

Por fim, mesmo no domínio das trocas comerciais entre indivíduos mais ou menos isolados, o Estado não se limita a introduzir ajustamentos nos mercados existentes. Muitas vezes, a intervenção pública cria mercados onde eles não existem. Fá-lo não apenas por via da legislação (por exemplo, ao impor a obrigatoriedade de revisão periódica dos automóveis, o Estado deu origem ao mercado dos centros de inspecção), mas mais importante ainda pela promoção activa de avanços tecnológicos.

O último aspecto referido é central para a escola pós-schumpeteriana, que tem em Mariana Mazzucato, economista italo-americana, a sua mais destacada divulgadora na actualidade. Os trabalhos destes autores permitem perceber como e por que motivos as maiores inovações tecnológicas das últimas décadas surgiram a partir de universidades públicas, laboratórios do Estado e projectos empresarias fortemente financiados pelas autoridades. Em termos simples, o desenvolvimento de tecnologias radicalmente novas (como a internet, por exemplo) envolve níveis de incerteza técnica e comercial de tal forma elevados que dificilmente existiriam privados com interesse ou em condições de os financiar.

Em tais situações, a intervenção pública permite não só o desenvolvimento das tecnologias, como permite demonstrar através de aplicações não-comerciais a sua utilidade prática, assegurando também os meios necessários para desenvolver os modelos de negócio que viabilizam a comercialização das novas soluções. Por esta via, os Estados criam mercados onde os actores privados muitas vezes nem sequer anteviam a possibilidade ou a necessidade das aplicações em causa.

Argumento eficaz, teoria medíocre

Em suma, o papel do Estado é muito mais do que corrigir falhas de mercado. Na verdade, não existem nem existirão mercados sem falhas – o modelo que serve de referência de perfeição nunca será mais do que uma abstracção. O ideal de mercado perfeito segundo os critérios convencionais não é sequer o mais desejável, na perspectiva da evolução das economias e das sociedades.

No mundo real, o Estado não age para tornar os mercados mais próximos de um qualquer modelo hipotético. Age para influenciar a dinâmica do capitalismo em certas direcções, de forma mais ou menos deliberada, mais ou menos democrática, mais ou menos justa. Fá-lo através do estabelecimento de direitos e obrigações, restringindo ou impondo comportamentos, tentando moldar as expectativas e os valores dominantes, ajudando a desenvolver soluções que os agentes privados não vislumbram ou pelas quais não se interessam até que seja evidente o potencial de retorno lucrativo.

A noção de que o Estado existe para corrigir falhas de mercado é intuitiva e é legítima à luz da teoria económica convencional. Isso torna-a útil para quem combate o neoliberalismo na esfera política. Como teoria económica, no entanto, deixa muito a desejar.

O autor escreve segundo o antigo acordo ortográfico.