Antigo deputado do Partido Comunista Português na Assembleia da República e professor da Universidade Europeia, na Faculdade de Gestão e Direito.

O Estado e a Constituição

A efetivação das conquistas democráticas do povo português depende sempre da existência de um poder político comprometido com os seus objetivos. Um poder político adverso aos valores do regime democrático-constitucional conduz inevitavelmente a ofensivas para o descaracterizar. A luta do povo português e das forças democráticas em defesa do regime democrático e das suas conquistas é determinante para travar essas ofensivas.

Ensaio
2 Novembro 2023

Num artigo muito relevante, mas pouco citado, o artigo 9.º, a Constituição define as tarefas fundamentais do Estado.

São tarefas fundamentais do Estado, entre outras, garantir a independência nacional e criar as condições políticas, económicas, sociais e culturais que a promovam; garantir os direitos e liberdades fundamentais e o respeito pelos princípios do Estado de direito democrático; defender a democracia política, assegurar e incentivar a participação democrática dos cidadãos na resolução dos problemas nacionais; promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efetivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais.

Sendo o artigo 9.º da Constituição uma disposição programática, é fundamental para a sua concretização não apenas um texto constitucional subsequente que densifique em concreto estes objetivos mas, acima de tudo, um poder político determinado em levar por diante o projeto constitucional. Um poder político, isto é, um Governo e uma maioria parlamentar que não se identifiquem com as tarefas fundamentais do Estado constitucionalmente consagradas, podem convertê-las em letra morta ou, pior ainda, levar por diante um projeto político de confronto aberto com os princípios constitucionais.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.

Foi assim durante largos anos e, entre 2011 e 2015, sob o comando ou a pretexto da troika, o confronto entre as políticas governamentais e a Constituição da República assumiu particular gravidade.

A direita portuguesa nunca se conformou com a Constituição. Tentou impedir a sua aprovação em 1976, submetendo-a a referendo, mas não o conseguiu. Tentou afastá-la por via de um golpe constitucional derrotado nas eleições presidenciais de 1980. Conseguiu, é certo, mutilar gravemente a Constituição económica, política e social, devido às cedências do PS em sucessivas revisões constitucionais. Mas não desiste de tentar liquidar a Constituição nas suas bases mais sólidas: os direitos fundamentais, a separação de poderes, o Estado social de Direito. Na medida em que o regime democrático constitui um obstáculo ao seu domínio absoluto, o poder económico não esconde a sua natureza antidemocrática e os políticos que o servem não hesitam em assumir e pôr em prática uma política de afronta aos valores democráticos que a Constituição consagra.

Os propósitos do PSD e do CDS de rever profundamente a Constituição nunca foram segredo, particularmente no que se refere à Constituição laboral e à Constituição social. A revisão dos direitos dos trabalhadores e de direitos sociais fundamentais estiveram sempre na mira. Foi um dos primeiros propósitos enunciados por Passos Coelho logo que assumiu a liderança do PSD, ainda nem se falava da troika, e foi o propósito assumido na tentativa de revisão constitucional falhada em 2011.

Entre 2011 e 2015, com os três órgãos políticos de soberania – um Presidente da República, um Governo e uma maioria da Assembleia da República – profundamente adversos aos valores constitucionais, toda a ação governativa foi orientada para a negação da Constituição, dos direitos e dos valores democráticos nela consagrados.

Foram anos marcados pela liquidação de direitos dos trabalhadores, com cortes salariais, aumento das jornadas de trabalho, ataques à contratação coletiva, liberalização dos despedimentos, violações do direito à greve, perseguição aos representantes dos trabalhadores, repressão nos locais de trabalho, instrumentalização das forças de segurança na repressão a trabalhadores em luta.

Foram tempos de liquidação de direitos sociais, com o ataque ao Serviço Nacional de Saúde e à escola pública, com a negação do acesso à Justiça e aos tribunais e com a redução drástica de apoios sociais no desemprego, na doença e em situação de carência.

Foram tempos de desvalorização e degradação das funções sociais do Estado, com o ataque aos trabalhadores do Estado, com o desmantelamento de instituições públicas e com a entrega de funções inalienáveis à gula dos interesses privados.

Mas foram também tempos de degradação da democracia política, com a desvalorização da Assembleia da República, manietada pelo rolo compressor da maioria, e com o ataque à separação de poderes e à Constituição enquanto limite e fundamento do poderes do Estado, por via da recriação da teoria das forças de bloqueio e da criação de uma nova teoria segundo a qual um país em crise não se pode dar ao luxo de ter Constituição.

Não foi de somenos que na legislatura que decorreu entre outubro de 2015 e de 2019 não tenha havido qualquer retrocesso constitucional nem qualquer querela constitucional em torno de retrocessos inconstitucionais inscritos em Orçamentos do Estado. Houve, é certo, a tentativa declarada inconstitucional de permitir o acesso dos serviços de informações a dados de comunicações privadas e o retrocesso em matéria laboral que se encontra pendente para decisão do Tribunal Constitucional. Ou seja, as questões de inconstitucionalidade surgiram onde o PS se aliou à direita.

A democracia que o povo português conquistou com a Revolução de Abril comporta inseparavelmente uma dimensão política, económica, social e cultural. Os ataques à democracia levados a cabo pelas políticas de direita afetaram todas estas dimensões.

Mesmo que em determinado momento histórico haja um Governo que não a cumpra e um Presidente que não a faça cumprir, a Constituição está longe de ser inócua. Se o fosse, a direita não continuava tão fortemente determinada em levar por diante novas revisões constitucionais.

Mesmo que em determinado momento histórico haja um Governo que não a cumpra e um Presidente que não a faça cumprir, a Constituição está longe de ser inócua. Se o fosse, a direita não continuava tão fortemente determinada em levar por diante novas revisões constitucionais.

A verdade é que as privatizações dos sectores básicos da economia portuguesa só foram possíveis depois da Revisão Constitucional de 1989 que, com o acordo do PS, eliminou a irreversibilidade das nacionalizações. A verdade é que a imposição de taxas moderadoras no Serviço Nacional de Saúde só foi possível depois da Revisão Constitucional em que o SNS passou de gratuito a “tendencialmente gratuito”. Os exemplos poderiam multiplicar-se. Se a Constituição fosse inócua, os efeitos das revisões constitucionais também o seriam. Mas não foram.

Se a Constituição fosse inócua não teria havido as declarações de inconstitucionalidade de sucessivos Orçamentos do Estado desde 2011, que fizeram estalar o verniz do Governo e da maioria contra os juízes do Tribunal Constitucional e que levaram uma vice-presidente do PSD a defender a impensável imposição de sanções jurídicas contra os juízes do Tribunal Constitucional.

A Constituição tem uma força jurídica incontornável. Contém um conjunto de direitos fundamentais que vinculam diretamente entidades públicas e privadas. A validade das leis depende da sua conformidade com a Constituição. Os tribunais têm o dever de não aplicar leis inconstitucionais. Em suma, o regime democrático, tal como a Constituição o configura, contém dois elementos básicos com que a direita nunca se conformou, mas que nunca conseguiu contornar: os direitos fundamentais e a separação de poderes.

Os direitos fundamentais têm força jurídica. São diretamente aplicáveis, vinculam as entidades públicas e privadas, só podem ser restringidos nos termos admitidos pela Constituição para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos e existem mecanismos destinados a garantir a efetividade desses direitos: a independência dos tribunais, incluindo obviamente a do Tribunal Constitucional (não obstante a designação política dos seus juízes), a autonomia do Ministério Público, o direito de oposição democrática, a proporcionalidade das leis eleitorais, os direitos dos trabalhadores, os direitos de participação política, os direitos de reunião, de manifestação e demais liberdades públicas.

É a consagração constitucional destes direitos e o seu exercício pelo povo português, no plano político, social e cultural, que constituem o mais sério obstáculo ao domínio absoluto do poder económico e dos governantes que o servem.

Voltando à questão do poder político, há dois imperativos do momento presente e do futuro próximo.

Primeiro, defender a Constituição dos ataques de que continuará a ser alvo, sendo certo que a Assembleia da República eleita em 6 de outubro detém a todo o momento poderes de revisão constitucional.

Segundo, impedir o acesso ao poder por parte de executores das políticas de direita que negam na prática a efetividade das disposições constitucionais e de muitos dos direitos constitucionalmente consagrados. Para que os direitos fundamentais sejam respeitados e para que as tarefas fundamentais do Estado sejam efetivamente cumpridas é necessário derrotar as políticas de direita, manter longe do Governo os seus executores e lutar por um poder político determinado em cumprir e fazer cumprir a Constituição.

As soluções necessárias para a defesa da democracia em Portugal exigem o respeito pela Constituição e a concretização dos direitos nela consignados. Exigem a subordinação do poder económico ao poder político democrático. Exigem a fiscalização democrática de todos os poderes do Estado, a separação de poderes, a independência do poder judicial e a autonomia do Ministério Público. Exigem a dotação de meios para o combate à corrupção e à criminalidade económica e financeira, o respeito pela autonomia do poder local democrático, pelos direitos dos trabalhadores e das populações cujos direitos, tão duramente conquistados, devem ser abnegadamente defendidos.

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